Recaredo Silabo Boturu, Luz en la noche: Poesía y teatro
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar
Excerto de O guardador de rebanhos, Fernando Pessoa
Parece estranho começar a apresentação de um livro de um autor da Guiné Equatorial, escrito em espanhol, citando um poeta português, mas é mesmo assim que este livro termina, com um epílogo, intitulado Carta Muerta de César A. Mba a Boturu, redigido pelo escritor César A. Mba, também ele equato-guineense, cujo assunto é “El guardador de rebaños”, numa alusão directa ao poema escrito por Pessoa entre os anos 1911-1912. Iniciamos, pois, a nossa viagem através deste livro, começando pelo final ou talvez não… O que faz do autor, Recaredo Silabo Boturu, esse guardador de rebanhos que talvez o seja sem o saber? Diz-nos César A. Mba que Recaredo Silabo Boturu é um dos guardadores da expressão intelectual equato-guineense que com afinco cria literariamente e com a mesma dedicação mantém um grupo de teatro chamado Compañia Teatral Bocamanj. É, por essa razão, um dos guardadores dessa expressão cultural, às vezes falha, num país onde as oportunidades para as realizações culturais são diminutas.
Mas passemos a conhecer o autor: Recaredo Silabo Boturu nasceu em 1979, na Guiné Equatorial, mais propriamente na ilha de Bioko, antiga Fernando Pó, onde continua a viver. Vencedor de vários prémios literários, desde cedo, destacou-se na poesia e no teatro, tendo com o seu trabalho poético ganho o seu primeiro prémio em 1998, portanto, antes de alcançar os vinte anos. Volta a ganhar prémios em 2002, 2007, 2008 e 2009, mas sem publicar. Apenas em 2010 publica este primeiro livro, intitulado Luz en la noche, reunindo vinte e cinco poemas e duas peças de teatro, no fundo, os produtos da sua escrita que se divide entre estas duas expressões literárias, de que agora damos notícia. Editado em Espanha, Recaredo Silabo Boturu segue a tradição dos autores do seu país que, privados, por várias razões, de publicar na sua terra natal, têm como a opção mais próxima e fácil publicar na antiga metrópole, ou seja, em Espanha. Provavelmente mais conhecido pela sua obra teatral por ser director da única companhia de teatro regular da Guiné Equatorial, anteriormente referida, cujo nome, explica-nos Gloria Nistal, no prólogo, é uma combinação de um prato bubi com um prato fang. A poesia, contudo e como vimos, não é um fenómeno novo para si, daí esta articulação entre poesia e teatro num mesmo livro, mostrando as duas facetas do autor.
Luz en la noche, como o próprio título anuncia, parece uma combinação de paradoxos, sem o ser. É, antes de mais, definível através de duas palavras: desencanto e esperança, sendo que esta última marca a sua presença no derradeiro poema, que dá nome ao livro, de forma indelével. A secção de poesia termina, pois, com:
Mañana
El día será día
Y saldrá el sol
Y pasará triste y negra la noche
Y, por fin,
El día será día.
Mañana
Seremos hermanos.
Uma esperança concretizada fruto de uma luta e vontade de resistir e insistir que não deixa de ser confiança no futuro e vontade de dominar o devir. Estes dois eixos, desencanto e esperança, que marcam a obra poética, também, cunham as ilustrações da autoria de Ramón Esono que oscilam entre a paz e harmonia, nos temas amorosos e de esperança no futuro, e a exposição da dor num traço forte, marcado pelo sofrimento, nos temas de denúncia ou de revolta. A própria capa, da autoria do mesmo artista plástico, encerra em si a dureza dos tempos presentes, mas anuncia um caminhar que se espera de vontade de mudança. Se o sangue das pegadas denuncia a persecução, o continuar a caminhada é testemunho de força e de ter esperança. Aliás, poesia e ilustrações encontram-se na perfeição e complementam-se, formando um todo que permite ao leitor captar interpretações mais fortes em torno de duas práticas artísticas que aqui se encontraram com mestria.
Se o ilustrador assume um papel mais discreto, por não se tratar de uma obra de ilustrações, o autor preenche todos os silêncios possíveis e inicia a sua obra com um poema, denominado Cantos y añoranzas, em que revela para quem escreve, a quem quer dirigir a sua obra, nada mais do que todos, incluindo aqueles a quem foi tirada a voz… Ouçamos o seu canto:
Yo canto con mis versos
A aquellos que saben cantar,
Sino a aquellos muchos que no pueden cantar,
Porque sus voces fueron anochecidas
En las noches tormentosas
Vai mais longe e refere porque canta, porque escreve, porque não pode calar a sua própria voz:
Escribo para extirpar
El egocentrismo
La ambición
El despotismo
El racismo…
Las injusticias
Que tanto enturbian este orbe
Depois de definir para quem escreve e por quem escreve, o autor percorre a história recente do seu país mesmo que, algumas vezes, isso não seja feito de forma directa. Em Elegía I refere-se explicitamente a uma data, manchada por um acidente de aviação muito mortífero, já em Canto a mi mamita essa referência é esfumada por uma única expressão once años duró el vendaval que te destruyó y nos destruyó. Em Ellos prefere deixar pistas que regista logo na frase que antecede o poema: En la tierra hay hombres que se creen dioses, sem, no entanto, explicitar quem são estes “eles”. Repetindo a expressão “duermo”, dá-nos a ideia de uma sociedade paralisada pelo medo e conformada com a sua sorte:
Duermo
… y duermo, en este lodazal,
y camino como una silueta
en las noches negras de tempestad
(…)
Porque nosotros, yo,
El cayuco que se mueve
Por la corriente de la marea,
No somos,
Sino la corriente, la marea
Que mueve a la canoa.
Para fechar o poema, converte o desespero em esperança. Situação que se repetirá em Flor Mía, ou seja o caminhar em direcção à esperança consta de vários poemas e, no fundo, constitui o desejo do autor para o seu próprio país e respectiva sociedade.
Y yo te digo:
Que mañana de esta jaula saldré;
Y entonces
Si escobilla hoy soy,
Palmera, mañana
Seré.
Claro que entre esta esperança que se tem e se deseja que se afirme e o desencanto que é o seu quotidiano, existem momentos de vacilação como é perceptível na frase que abre o poema Turbulencias: A veces cuando no vemos claro el mañana porque el hoy está sombrío, nos sentimos desesperados. Essa hesitação é superada pelo imaginário, pelo sonho, pela capacidade que cada indivíduo tem de despegar-se do mundo puramente material, como escreve em Sueño ou em Soñar es vivir: La miseria no nos permite soñar, pero vivir sin soñar, no es vivir. Nesse poema está patente uma outra característica que encontraremos em alguns dos textos, a intertextualidade, fundada ora na figura de D. Quixote e Sancho Pança, ora na alusão a Cervantes, também na evocação de escritores do seu país (Laurel, Boneke, precursores na arte da poética, por exemplo,) ou na reprodução de tipos discursivos (políticos, jornalísticos, etc.) já no contexto da obra teatral.
Día y noche soñaba Quijote
Y al soñar
Despertó a Sancho del insomnio
En el que estaba sumergido.
Esta intertextualidade associada à evocação de momentos em terras outras em que sonhar foi, mais do que possível, necessário, lança-nos numa outra reflexão: os grandes dramas humanos são comuns, como a liberdade, o direito à diferença, o direito ao respeito, etc., o que nos torna muito lógico um certo retomar de linhas de escrita com raízes longas, mas que ainda parecem fazer algum sentido… Assim vemos o autor o autor retomar uma linha antiga na senda de autores africanos e que se reporta à rejeição dos poderes alienígenas em solo pátrio, isto é, Recaredo Silebo Boturu retoma os temas pan-africanos, tão comuns antes das autodeterminações, referindo-se a uma África explorada e que, apesar de independente, continua numa posição submissa que impede a concretização dos seus filhos. As angústias partilhadas e o desejo de um futuro melhor são alargados a todo um continente que parece continuar a sofrer dos mesmos males e que, todavia, mantém-se, igualmente, como a terra prometida. Leiamos Canto a África:
Para mí, África, siempre serás:
Lluvia, sol y manto
(…) son los tiburones
Que se comen
A los peces más pequeños
Para impedir su progreso
(…)
No llores África:
Para mí siempre serás santa
Maestra en mi danza,
Profesora de mi cante.
Para mí, África, siempre serás:
Lluvia, sol manto.
Alternando com estes temas mais colectivos, o autor introduz-nos outros que nos remetem para a esfera individual como Elegía II ou A Boitta, mi angelito ou Luna, em que canta o amor, a perda, a solidão, como no primeiro poema que referimos:
Nueve lunas viviste,
Seis noviembres pasan
Y después. Te fuiste.
Noutros casos é o individual que se torna intrínseco ao colectivo, como em Homenaje a un héroe:
Tu sangre
Há nutrido nuestro coraje
Por seguir luchando
Sin defensa
Por libertar
El verdor de nuestra selva
Tu selva.
Esta ideia repetir-se-á nas duas peças de teatro que nos apresenta, ambas com títulos em língua local: É Bilabba (Os Assuntos) e Ö Börukku (A Nostalgia) e que nos remetem para a sociedade contemporânea, na Guiné Equatorial e também fora do país. Em ambas peças, há uma forte presença das autoridades: se numa encontramos guardas que, apesar de personagens secundárias, detêm um valor simbólico considerável; na segunda encontramos guardas, juízes e políticos. No primeiro caso, estamos em presença de uma peça com final feliz e com uma forte componente moral e ética, em que o bem vence o mal e em que as personagens são as pessoas que se cruzam diariamente numa sociedade pobre e angustiada. Na segunda peça, entram em interacção vários tipos de poder e à vivência do cidadão comum é contraposto o discurso oficial, aflorando temas da maior contemporaneidade como a imigração ilegal, a pobreza, a cooperação, a segurança dos estados e segurança colectiva internacional, o papel da sociedade civil, etc., num caso em que o desfecho é triste e mais próximo da própria visão que o autor tem da realidade.
Não só em termos de discursos em confronto, como também em termos de complexidade formal e das personagens em que está representado o individual e o colectivo, a segunda peça apresenta características que a distanciam da primeira, nas quais se insere, por exemplo, a recuperação de um dos eixos das peças teatrais clássicas, o coro, que serve de contraponto à própria acção ou anuncia o seu destino, que canta numa língua local, enquanto todo o restante texto está escrito em espanhol. Verificamos, pois, que a segunda peça obedeceu a uma construção mais intrincada, em que diversos mundos se encontram: norte/sul; desenvolvido/em vias de desenvolvimento; individual/colectivo; rico/pobre; democracia/ditadura; segurança do estado/segurança do indivíduo; etc.. As dicotomias são observáveis em toda a acção e aparecem-nos de uma forma quase insuperável, ao contrário do que acontecia na primeira peça em que a moral prevalecia e superavam-se todos os comportamentos desviantes.
Terminamos a nosso percurso por este primeiro livro de Recaredo Silebo Boturu, voltando às palavras com que abrimos esta breve reflexão sobre esta obra: Recaredo talvez nunca guardasse rebanhos, mas aprendeu a conhecer-lhes a sua própria natureza e o meio que os rodeia. Ao escrevê-los quer repetir infinitamente aquele mesmo verso com que fecha o seu poema Dragoncito: ¡Levántate y sal fuera! Expiando todos os males que vê e sente…
Podemos afirmar que, ainda num registo, em que amiúde a estética é condicionada ao conteúdo que se quer transmitir, esta obra constitui um testemunho literário de uma geração e de uma situação sociocultural ainda dramática e por resolver, para além de testemunhar a coragem de continuar num país onde é quase impossível começar. Cremos que Recaredo Silebo Boturu continuará o seu caminho e enriquecerá o panorama cultural equato-guineense nos próximos anos, partilhando com o leitor o seu olhar, se bem que poético, contudo, revelador de uma dureza real em que sonhar ainda é possível.
Recaredo Silabo Boturu, Luz en la noche: Poesía y teatro, Madrid, Editorial Verbum, 2010, 126 pp.