Da Etnicidade ao Simbolismo: três olhares sobre a etnia Kuvale
A etnia Kuvale tem-se caracterizado por uma certa vivência marginal relativamente ao poder político, tanto no período colonial como no pós-colonial. Com uma tradição pastoril arreigada, encontram-se parcas descrições sobre o seu modo de vida, exactamente porque se foram sempre colocando na orla da construção identitária, primeiro do espaço colonial denominado Província de Angola, e, depois, do tecido nacional angolano, isto é, enquanto comunidade culturalmente definida com práticas sociais próprias nunca se integrou verdadeiramente no trajecto de modernidade que foi sendo traçado na geografia angolana. Sem acesso às fontes documentais históricas e sem produção documental (escrita ou iconográfica), validada pela historiografia de carácter positivista, que dominou durante a maior parte do século XX, resistindo às investidas da nova história e da história com uma perspectiva humanista e de alguma antropologia e sociologia mais criativas, a etnia kuvale, como tantas outras, aparece envolta num certo emudecimento. Silêncio adensado, neste caso, pela sua vivência de outsider ainda que no seio de uma perspectiva de construção unitária de um poder que se reclamava moderno e em ruptura com os poderes tradicionais. Este silêncio histórico abriu portas a outros caminhos e, igualmente, permitiu que se fosse cristalizando na memória colectiva do espaço unitário – Angola – uma visão dos kuvale enquanto outro, se bem que sendo naturais do próprio país e ali vivendo desde que a etnia se identifica enquanto tal.
A barreira de silêncio em seu torno calava a escrita da história e fazia surgir outros discursos, pois o discurso histórico não podia basear-se em factos inexistentes e limitava-se a relatar uma série de batalhas, conducentes à fixação da soberania portuguesa. Como falar de um povo que, mesmo derrotado, nunca se integrou na soberania política portuguesa e duvidou daquilo a que se chamou “construção nacional do Estado”? O silêncio a que a história remeteu os kuvale, tornando-os em mucubais, levando a que a colectividade assim os memorizasse e identificasse, foi recíproco, pois também os kuvale se limitaram a levar por diante histórias silenciosas e incontáveis fora do seu perímetro social.
Todavia, discursos mais plásticos que o histórico e confluindo várias percepções discursivas, entre estas a etnográfica e a histórica, trabalharam sobre o silêncio dos kuvale, produzindo imagens e discursos de fora para dentro. Assim, encontramos três autores que escrevem sobre os kuvale, um no período colonial, os outros dois no período pós-colonial, dois escrevem ficção e um outro uma narrativa de características literárias pela preocupação estética que apresenta. O discurso é marcadamente literário, as intenções de cada um dos autores bem diversas, mas na verdade todos vêm o kuvale como o outro, sabendo, contudo, individualizar e nalguns casos assumindo a personagem kuvale o papel de herói, se bem que secundário. Se a capacidade de individualizar o outro existe, a percepção de que ele está do outro lado igualmente está presente. Deste modo, veremos como três olhares diversos sobre a etnia kuvale nos mostram como esta foi simbolizando, em diferentes momentos, conceitos específicos e como estes mudaram de acordo com a construção política do país e a edificação de uma memória colectiva. Augusto Bastos, Pepetela e Ruy Duarte Carvalho dão-nos o mote.
Literatura, Memória, Identidade e Simbolismo
Os autores que pretendemos estudar utilizaram veículos diferentes, mas todos impressos. Se Augusto Bastos se fica pelo folhetim, muito popular na época em que escreveu (1919), Pepetela (1983) e Ruy Duarte Carvalho (1997) usam o livro para apresentar os seus discursos. No entanto, todos fazem uso da palavra escrita e da simbologia que conhecem e que reconhecem que provocará efeito nos seus leitores, também, eles diferentes, mas todos com capacidade de leitura e com uma aprendizagem segundo os cânones ainda herdados do positivismo académico. Deste modo, os aspectos determinantes são o conteúdo e a estética utilizados e o simbolismo que se cria a partir daí, mais do que o tipo de suporte da publicação. O discurso literário pela sua plasticidade e liberdade criativa pode associar vários tipos de discurso e criar sobre a realidade, antecipá-la quando propõe novos símbolos ou interpretações, mudar a visão sobre esta, escondendo-se por detrás da verosimilhança…
O discurso literário, nos casos em estudo, permite que o leitor experimente algo que ainda não faz parte do seu quotidiano, pois, vejamos quantos leitores já puderam interagir com um membro da etnia kuvale? Contudo, a partir da leitura destes textos ficarão com a impressão que conhecem algo sobre as vivências desta população e, provavelmente, até se sentirão capazes de emitir juízos de valor sobre a sua cultura, enquanto outros conhecidos e próximos do nós.
O tal entrelaçar dos discursos ajuda a essa leitura do texto, por exemplo, Augusto Bastos ancora a sua ficção na realidade, recorrendo ao discurso histórico e ao discurso pedagógico, mas tendo, igualmente, fins políticos, propondo uma fórmula para a construção do espaço colonial angolano; Pepetela recorrendo sempre do discurso literário, introduz elementos produzidos pelo discurso histórico e antropológico, não se furtando à introdução de pequenas notas explicativas que reflectem também um carácter pedagógico e orientador para a acção política, com base na apresentação de uma dicotomia entre o nós e o outro, em que o narrador é parte do nós, da cultura escrita, mas reconhecendo as injustiças feitas ao outro. Ruy Duarte de Carvalho expõe um discurso antropológico recorrendo à estética literária, ilustrando profusamente o conteúdo, num diálogo constante com o leitor, em que ele é o narrador que apresenta as provas do seu estudo, mas que também questiona as memórias, os métodos e os relatos que a cultura escrita impôs à cultura oral, tanto no pré com no pós independência, partindo de gravações próprias que teria feito para deixar a um amigo, ou seja, do oral para o escrito, querendo mostrar verdadeiramente como eram as populações pastoris. Cada um com os seus objectivos, criam discursos alternativos ao discurso positivado, esquecido das memórias orais, inapto para relatar o outro sem que ele esteja em nós…
Olhares antropo-literários
Se os três autores têm conhecimentos etnográficos que podemos atestar através das narrativas que produziram, é certo que dois deles foram mesmo estudiosos da etnografia: Augusto Bastos e Ruy Duarte de Carvalho. Embora todos se sirvam do discurso de características literárias para os seus textos, na verdade, somente dois são ficções, sendo o terceiro uma narrativa que o autor poderia ter optado por apresentar sob a forma de ensaio, o que prova a proximidade e as possibilidades que a relação entre discurso literário e discurso antropológico pode prover aos autores, permitindo soluções diferentes para a narrativa de estórias, mais apelativas para o leitor; aliás, actualmente, a antropologia faz uso da narrativa, esteja esta consignada oralmente ou registada em escrita, como fonte de informação, numa perspectiva humanista que se distancia do positivismo que caracterizou as mais antigas recolhas históricas e etnográficas. Considerando esta lógica, é fácil compreender-se a escolha do discurso literário para expor a própria reflexão do autor sobre determinados aspectos da realidade e, mais, transmiti-los ao leitor de modo a que este possa partilhar a sua visão sobre o passado, o presente e o futuro da sociedade angolana. Nos três casos, é visível uma preocupação de levar o leitor a raciocinar com o autor e a tomar parte na narrativa que vai sendo apresentada pelo narrador, de modo a que no final tenha uma opinião formada sobre os conteúdos expostos. Augusto Bastos apresenta uma aventura (a caçada) com raízes no passado, relacionadas com a ocupação de Moçâmedes e de Capangombe, nunca fornecendo datas precisas; na realidade, pretende actuar sobre o presente e o futuro, defendendo uma aliança entre colonizador e colonizado, simbolizada no jovem Nestor (de origem portuguesa) e no jovem Cangombe (apresentado como mucubal), que se pretende aplicável no presente e no futuro. Pepetela demonstra a intenção de contar o passado para que o leitor perceba e construa o presente; a sua narrativa termina com a obtenção do objectivo político maior – a independência – que teria resultado dessa luta de oposições de culturas, de opressões continuadas, personalizadas no colonizador – família Semedo – e no colonizado – mucubais ou kuvale, agora tinha chegado o tempo de construir a nacionalidade que, apenas, por intromissão e incompreensão colonial tinha ficado retalhada, com base no constante apoio aos conflitos inter-étnicos. Ruy Duarte Carvalho parte do presente, expondo modos de vida, percepções, simbolismos, em que assume a posição do estudioso, externo ao seu objecto de estudo, mas tentando apresentá-lo tal como é e mostrando, igualmente, como é visto.
Os três autores, recorrendo ao exotismo que os kuvale, como povo cujas história e cultura são desconhecidas, representam junto dos leitores, maioritariamente gente citadina, educada como estrangeirada ou segundo moldes educativos de outros países (mesmo que em território nacional), aguçam a curiosidade em torno de tão estranhos elementos, mas subvertendo a lógica e destruindo esse mesmo tom de singularidade quando tornam os kuvale humanos, iguais às outras personagens que povoam a narrativa. Assim sendo, se o apelo à leitura é o mostrar o outro, enquanto elemento de alteridade, na verdade, o conteúdo transforma-se na explicação do outro, enquanto um possível nós, mesmo que o autor, também ele, lhe seja estranho e marginal. Se existe exterioridade face ao elemento kuvale, esta também existe em relação às outras personagens ou indivíduos (no caso de Ruy Duarte de Carvalho), só que com caracteres de identificação que os tornam mais próximos que os referidos kuvale.
No caso das ficções, Augusto Bastos e Pepetela criam um mundo possível, com traços de verosimilitude, facilmente identificáveis para o leitor. Nas suas narrativas quem é o kuvale? É o indivíduo identificado como mucubale nos meios urbanos, que viva nos sertões para onde se foi expandindo a colonização. Conhecendo como ninguém o seu espaço, desenvolvia com este uma relação de harmonia, mas também de domínio… O seu encontro com o colonizador era ocasional e nunca fruto da sua vontade, ou seja, a situação de encontro era sempre fortuita. Ancorando as suas ficções na realidade ambos os autores procuram acontecimentos históricos para rechear a sua narrativa, incrementando o seu grau de credibilidade. É a partir de aqui que se possibilita a integração da experiência da leitura do texto na experiência de vida do leitor, porque este parte de algo que lhe parece possível no mundo real e a partir daí está possibilitado não só de acompanhar a narrativa como de partilhá-la. Ao fazê-lo compartilha da lógica do autor que o leva a conhecer outras realidades e desse modo incorpora na sua experiência de vida, porque consegue desmontar todos os conceitos e simbologias, e integrar aquele novo conhecimento. No caso da narrativa de Ruy Duarte de Carvalho, baseada na sua própria experiência, enquanto investigador académico, a verosimilhança é assegurada pelo relato em si, com referências sociais, antropológicas e históricas factuais, facilitando que o leitor a agregue como conhecimento adquirido do real. Também para Ruy Duarte de Carvalho, o kuvale tem uma identidade própria, num constante relacionamento com a natureza envolvente e com os vários grupos culturais em seu redor; para si é sempre kuvale, para a maioria dos seus leitores é ainda o mucubale ou o desconhecido, e, por isso, ele desmistifica, indo ao passado longínquo, como, por exemplo, às figuras bíblicas de Abel e Caim para demonstrar como as populações pastoras sempre foram de algum modo marginais no processo de sedentarização das comunidades e de estabilização e centralização do poder político.
Conclusão
Como anteriormente referimos, a obra de arte, em que se insere o texto literário, se expressa a realidade também é construtora dessa realidade, pelas oportunidades de recriação e reinterpretação que proporciona. As três obras que acabámos de analisar são testemunho dessa vontade criadora e também desse reflexo da realidade. Por razões diferentes desconstroem conceitos e propõem outros novos, identificando estas personagens de origem étnica kuvale com novos simbolismos. Assim, dos mucubais passamos aos kuvale, de uma identidade marcada apenas pela exterioridade passamos à procura de marcas auto-identitárias e da explicação de determinados percursos. A mudança de denominação é acompanhada da transformação político-social que se opera na geografia angolana e de aproximar o outro. Contudo, o kuvale enquanto elemento exterior à vivência urbana continua a ser factual, se em teoria faz parte de uma construção nacional, na verdade, permanece a sua classificação como outro, se bem que já alguns dos seus membros colaborem com o Estado moderno e até já haja kuvales a viver na cidade.
Contudo, o mais interessante é vermos como os autores aproveitam o silêncio dos kuvale para os desvendar perante os leitores e contarem a sua palavra de forma indirecta, tendo o discurso literário colmatado uma falha nos discursos histórico, político e até etnográfico. É neste sentido que estes textos desempenham o papel deixado por essa brecha da memória, pois sendo parte de Angola ainda não foram apresentados como tal. Os autores, usando cada um deles uma perspectiva diferenciada, constroem um simbolismo em torno dos kuvale com pontos convergentes, como o reconhecimento de que são pastores, de que teriam um modo de vida próprio e uma relação com o meio envolvente muito forte, e com pontos divergentes, consoante os objectivos de cada um. Para Augusto Bastos o outro (mucubale) deveria ser atraído até nós, para Pepetela o outro (cuvale) era agora, na independência, parte do nós, para Ruy Duarte de Carvalho o outro tinha afinal estado sempre em nós e na nossa relação com o território, mesmo que não o soubéssemos.
Deste modo, não será leviano dizer-se que estamos perante três construções simbólicas, condicionadas por três percursos diversos: Augusto Bastos inaugurando um proto nacionalismo, assente no reconhecimento da especificidade daquela sociedade, Pepetela buscando a construção de uma nacionalidade, Ruy Duarte Carvalho reflectindo essa construção nacional e demonstrando como ainda subsistiam antigos fantasmas que era necessário equacionar. Portanto, recorrendo a uma mesma etnia e a uma realidade etnográfica semelhante, foram construídos três olhares antropo-literários singulares que tiveram o mérito de funcionar como guardiães da história e da memória de um povo, quase apagado da historiografia oficial, tanto no período colonial como no pós-colonial.