“África de ida y vuelta”: uma viagem musical por Isabela Aranzadi
He encontrado en este trabajo la raíz que me ha alimentado desde algún lugar en mi mente, a la hora de componer temas con influenzas africanas. En ese país nací, crecí, escuchando sus músicas que me llegaron sin apenas darme cuenta… En mis composiciones he buscado sin ser consciente de ello, los temas sencillos y la repetición como necesidad, sin encontrar lo sobreentendido sino la sorpresa, supongo que como legado personal he recibido en los años que conviví con esa manera especial de hacer música, en la que el tiempo es circular y respira fresco y nuevo en cada repetición. Isabela Aranzadi
Partindo do livro de Isabela Aranzadi, Instrumentos Musicales de las Etnias de Guinea Ecuatorial, publicado em 2009, em Espanha, numa edição da Apadena e reunindo vários apoios, entre estes o do Ministério da Cultura e Ministério dos Assuntos Exteriores e Cooperação de Espanha, a Casa de África e o Ministério da Informação, Cultura e Turismo da Guiné Equatorial, empreendemos uma viagem com a autora que nos leva não só pelas tradições musicais equatoguineenses como nos mostra como as possibilidades de contacto acabaram por traçar novos rumos culturais. É importante referir, ainda, que este livro nasce em coordenação com um projecto museológico que se traduziu na mais completa exposição até hoje realizada sobre o tema, daí as diversas abordagens que introduz e as diferentes perspectivas pelas quais pode ser lido.
Isabela Aranzadi nasceu em Santa Isabel, hoje Malabo, na Guiné Equatorial, contactando com muita proximidade, desde os primeiros anos da sua vida, com a cultura local. Licenciada em história e em sociologia pela Universidade Complutense de Madrid, formou-se, também, na área da música, tendo hoje o título de professora titular pelo Conservatório de Musica Teresa Berganza de Madrid. É chefe de departamento no I.E.S. Rosa Chacel de Colmenar Viejo em Madrid e trabalha no grupo de pesquisa MUSYCA (Música, Sociedade e Criatividade Artística) da Faculdade de Ciências Políticas e Sociologia da Universidade Complutense de Madrid. Desenvolve, ainda, as suas próprias composições musicais, fruto muitas vezes da inspiração que as suas recolhas lhe fornecem. A interdisciplinaridade, permitida pela sua formação académica, favorece indubitavelmente o tipo de abordagem, bastante enriquecedora, pela qual opta neste seu livro, espelho de boa parte do trabalho de investigação que tem vindo a desenvolver. Assim, mais do que um livro em que várias disciplinas se tocam, estamos em presença de uma abordagem que as tenta conjugar e criar um discurso único, se bem que tomando como ponto de partida o aspecto musical. Composto por doze capítulos e integrando um glossário descritivo, uma bibliografia muito completa e, ainda, fornecendo um CD em que se podem escutar as músicas e respectivos instrumentos referenciados ao longo do livro, estamos perante uma obra bastante completa e enriquecedora que permite ao leitor mais do que uma mera leitura passiva, pois proporciona-lhe a oportunidade de recriar os sons e as danças através de uma possível audição pró activa dos materiais facultados.
Ultrapassando uma mera contribuição para a música da Guiné Equatorial, estamos em presença de uma obra marcante no que concerne não só à apresentação da diversidade cultural como à introdução de elementos que nos demonstram como os contactos entre culturas diferentes foram profícuos e resultaram em soluções específicas. Aliás, estes aspectos da obra são referidos na apresentação de José Manuel Lopez que destaca o facto de estarmos presente um conjunto de recolhas de música funcional, ou seja, com um determinado objectivo que não apenas a fruição estética, contextualizadas e explicadas ao leitor, não só como labor musical mas também enquanto objecto social e de socialização.
Antonio Álvarez destaca o carácter de alguma novidade que a obra traz pelo facto de se dedicar a uma área ainda com fortes lacunas na academia espanhola, cujos estudos musicológicos continuam pouco desenvolvidos. Carlos González Echegaray refere, ainda, a importância do estudo do folclore crioulo, até agora pouco estudado, bem como, a abordagem às especificidades de espaços culturais, até agora marginalizados, como é o caso de Ano Bom, situação que a própria autora corrobora na sua introdução, apontando a ausência de bibliografia sobre estes dois grupos sociais que desde o século XVI, no caso de Ano Bom, e do século XIX, no caso de Fernando Pó (hoje Bioko) se tinham constituído neste país.
Aliás, o carácter de novidade intrínseco ao livro, é exposto pela própria autora que conta da recepção junto do público da exposição sobre instrumentos musicais, mesmo na Guiné Equatorial, que serviu para que pudesse medir o interesse de um potencial público e o desconhecimento da diversidade cultural mesmo no interior do próprio país. Recorrendo à observação directa, como complemento às suas investigações, Isabela Aranzadi constrói um panorama sobre o estado cultural e a vivência sociológica da música nestes grupos populacionais, alguns destes fortemente marcados por um passado de escravatura e pela presença de uma divisão identitária, quando as fronteiras do estado moderno se sobrepuseram às fronteiras étnicas que estabeleceram durante séculos os paradigmas identitários e culturais daquelas populações. Reflexiva da preocupação em acompanhar as novas tendências, ou seja, em apresentar um trabalho contemporâneo sobre o tema, é a incursão que a autora faz não só sobre os instrumentos musicais e danças como também pelo modo de vida actual, tentando captar os desencontros geracionais, as tensões entre a população urbanizada e a rural e o acto de comunicação intra e inter comunitário, essencial para a conservação de uma identidade própria, sem que esta caia apenas na representação folclórica para divertimento colectivo, mesmo daqueles que não a entendem por desconhecerem o seu conteúdo.
A Música na Guiné Equatorial: convergências e divergências culturais
Isabela Aranzadi, consciente da importância do desempenho sociológico das músicas que recolhe e trabalha nesta sua obra, parte do geral para o particular, caracterizando geográfica e socialmente o país que lhe serve de ponto de partida, introduzindo, depois, a organização de cada uma das etnias, intimamente ligada à performance musical e à expressão na dança, lembremos que estamos a falar de um tipo de música funcional, associado a manifestações culturais muito próprias de uma determinada comunidade. Assim, antes de mais, a autora apresenta uma série de referências esclarecedoras quando à etnia ou grupo social que vai expor, apresentando a sua origem (com base nas narrativas criadas pela própria populações, sobretudo, registadas na memória colectiva através do registo oral), língua, crenças, tradições, ritos, estrutura familiar, organização social e política, tipo habitacional e as suas manifestações culturais em que se inclui a música e a dança. Esta apresentação justifica-se pelo facto de as músicas de associarem a determinados aspectos da vida quotidiana, como anteriormente referimos, e, portanto, constituindo os instrumentos um meio de expressão vital dessa comunidade e uma fonte importantíssima se coesão social.
Ultrapassada esta descrição mais genérica, essencial para situar o leitor geográfica e culturalmente, passa-se à enumeração e descrição dos instrumentos, agrupados por famílias, devidamente ilustrados por fotografia ou desenho e explicando o seu uso e as ocasiões em que é utilizado na vida social. Para além de assinalar momentos importantes da vida comunitária, é preciso lembrar que a música desempenha, também um forte papel religioso, sendo por vezes o elemento mediador entre o mundo imanente e o transcendente que pode estar incarnado nos antepassados ou nos elementos da natureza, consoante o grupo cultural de que falemos, chegando mesmo a ser atribuído um poder mágico a determinados sons. Outro aspecto a considerar é a função comunicacional da música e os atributos de alguns instrumentos que serviam para comunicação a largas distâncias, sobretudo, nos espaços rurais.
Como na música africana em geral, a música equatoguineense assenta, sobretudo, no elemento ritmo que é o preponderante, prevalecendo sobre a harmonia e a melodia. Este elemento não é desprezível não só na música africana como em várias manifestações de música, tanto entre a dita erudita como a popular, em que se podem citar o jazz, o rithm and blues, o rock and roll, o pop, etc.. Isabela Aranzadi vai mais longe e explica como estas populações, de certo modo, absorveram as repetições e ritmos da natureza e os incorporaram, o que está patente nas línguas de origem banto, por exemplo, repletas de onomatopeias de animais e de sons que nos transportam para os espaços, concentrando acentos de intensidade e de duração do som, dando um toque musical particular. A música tal como a dança, como parte da vida da comunidade, são partilhadas entre todos, sendo o espaço da performance penetrado pelo espaço do público e vice-versa, existindo uma interacção diferente da que se assiste nas culturas ditas ocidentais. O papel da musicalidade é de tal ordem que certas tradições e a própria memória colectiva são passadas através de canções, de estribilhos e estrofes cantados alternadamente entre um indivíduo, enquanto executante, e o colectivo que participa do momento. A música, igualmente, atravessa todas as manifestações artísticas, sendo que em algumas línguas banto, como entre os bubi, a palavra poesia é a mesma que canção, assumindo-se que a palavra bela é tomada como um meio intrínseco à própria música.
Seguidamente às características gerais, a autora segue um outro caminho, o da relação de cada uma das etnias do país (Fang, Bubis, Ndowe, Bisio) e grupos mestiços (Ano Bom e crioulos fernandinos), explicando o conjunto de elementos que constituem o seu recurso musical, apresentando instrumentos, danças e o seu significado na vida de cada comunidade, buscando as suas origens. Este trabalho é feito com aprofundado rigor, dando uma ideia bastante precisa dos vários aspectos que constituem as manifestações musicais destes povos, sendo que sempre que existe alguma similitude entre as expressões das várias etnias ou o uso dos mesmos instrumentos, esta é apresentada. Quanto aos grupos mestiçados de Ano Bom e Fernando Pó, a autora, para além de apresentar os instrumentos e danças tradicionais ainda em uso, faz um excelente trabalho de recolha, alicerçado na busca das origens as influências ali identificadas, sobretudo, porque constituem um elemento diferenciador face às etnias em presença. Deste modo, podemos referir que ficamos com um panorama bastante completo não só da expressão musical no país, como da sua interacção com as demais culturas com as quais contactou e do significado sociológico que a expressão musical tem na vida destas populações, como o impacto que as mudanças sociais poderão exercer sobre a expressão cultural das várias comunidades.
Partir e Chegar a África
A partida e chegada a África refere-se à viagem através do Atlântico, em que indivíduos de origem africana voltaram à sua proveniência, depois de uma estada ou do seu nascimento no continente americano. Estes elementos regressados a África, se não eram africanos tampouco eram americanos, apresentando características culturais específicas que os tornavam num grupo de mediação, integrando fortes raízes africanas a par de influências europeias, gizadas no continente americano, constituindo um dos primeiros grupos com alguma autonomia identitária que poderemos identificar como afro-americanos. A referência mais antiga, encontrada pela autora, foi o “gumbé”, dança e tambor que os jamaicanos cimarrões (escravos fugidos que fundaram a sua própria organização, como os quilombolas do Brasil), que teria regressado a África, aquando da chegada de alguns destes elementos à Serra Leoa. Fernando Pó e Ano Bom, de modos diferentes e sob influências complexas e de origem diversa, passando pela Serra Leoa, Nigéria, Jamaica e Cuba, para referir os mais determinantes, espelham o surgimento de uma cultura crioula que apesar de ter sido, paulatinamente, mais isolada e tendo perdido o elemento mestiço grande parte do seu prestígio inicial se soube conservar até aos dias de hoje.
Percorrendo a história das comunidades crioulas, Isabela Aranzadi também caminha através de uma rede complexa de contactos culturais, entrando num desafio que, cada vez mais, os investigadores estão a tomar: o estudo desse Atlântico negro, pejado de idas e voltas que transformaram para sempre as culturas de ambos os lados do Atlântico e a que não ficaram indiferentes nenhuma das partes. Afinal e por diversas vias, africanos, europeus e americanos entrelaçaram-se criando novas expressões culturais e os préstimos que cada cultura forneceu não correram sempre no mesmo sentido, daí que tradições originariamente nigerianas tenham entrado em Ano Bom e Fernando Pó através de indivíduos cubanos ali deportados. Para além do contributo para o estudo da expressão cultural de comunidades pouco estudadas, a autora, traça uma série de novas possibilidades que, até hoje, têm permanecido como adormecidas aos olhos de muitos investigadores. Trata-se, pois, de um livro de referência para quem queira conhecer mais sobre a expressão musical da Guiné Equatorial, é certo, mas a verdade é que esta mesma obra nos poderá abrir outras perspectivas de análise e a proposta de novos caminhos para realidades congéneres. Pela riqueza descritiva, pelas propostas que faz e sobretudo pela tentativa de transpor saberes e entrosa-los, estamos em presença de uma obra com um valor acrescentado sobre aquilo que tem sido produzido nesta área. Vale, pois a pena, empreender esta viagem musical na companhia de Isabela Aranzadi.