«Nós não fizemos o exorcismo da guerra», entrevista a Nelson Saúte
Nelson Saúte (1967, Maputo) é um personagem ainda desconhecido no meu país de origem, a Alemanha. Tanto maior foi a minha curiosidade quando, numa viagem a Lisboa em 2011, me deparei com um dos seus livros de contos, O Apóstolo da Desgraça (Dom Quixote, 1999). Li-o, nas minhas idas e vindas de comboio ao Estoril, com muito interesse e com aquele fascínio que sentimos quando estamos à descoberta de novos mundos e novas realidades. Nesta altura, eu dedicava-me ao estudo da literatura latino-americana, mas sentia o impulso intrínseco de me aventurar ainda noutros continentes. Assim comecei a interessar-me por África que, desde o início, me colocou muitas questões e desafios que até hoje apenas consegui resolver parcialmente. Uma das pessoas que me ajudaram nesta árdua tarefa de compenetração intercultural foi Nelson Saúte, nomeadamente com as duas antologias incontornáveis que editou: Nunca Mais é Sábado, antologia de poesia moçambicana (Dom Quixote, 2004), e As Mãos dos Pretos, antologia do conto moçambicano (Dom Quixote, 2001).
Nelson Saúte – licenciado em Ciências de Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa e mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo – não só trabalhou como jornalista, docente universitário e editor, também é autor de vários volumes de poesia e de contos assim como do romance Os Narradores da Sobrevivência (Dom Quixote, 2000). Por isso, julguei que era uma pessoa interessantíssima a conhecer. Durante a minha viagem de investigação a Moçambique em Julho de 2014, marquei um encontro com ele1.
Nelson Saúte pediu-me para eu comparecer ao seu gabinete da editora Marimbique situado no Hotel Pestana Rovuma, no centro de Maputo. Este hotel de quatro estrelas é uma das referências arquitetónicas importantes para quem começa a orientar-se na cidade. Fica junto à Catedral Metropolitana, muito perto da Praça da Independência, onde, desde 2011, uma estátua gigante de Samora Machel estende o índice da mão direita para o céu. Nesta zona confluem ruas com nomes de líderes comunistas estrangeiros (Av. Ho Chi Min, Av. Vladimir Lenine, Av. Karl Marx), líderes da FRELIMO (Av. Eduardo Mondlane, Av. Filipe Samuel Magaia), lutadores de resistência do século XIX (Av. Maguiguana) e das grandes datas comemorativas do país independente (Av. 25 de Setembro, Av. 24 de Julho). O próprio autor retoma esta topografia memorialística no seu poema “Anos 80”:
Eduardo Mondlane foi o nome
da avenida sobre a qual
me estreei na toponímia da capital.
(…)
E todo aquele cortejo de incongruências
a habitar os fogos conquistados
pela inquestionável independência.
Cedo descobri Maguiguana e toda a mitologia
de guerra sobre os meus indefenestráveis heróis
na toponímia da revolução.2
Chegando ao hotel subi de elevador ao nono andar. Um guarda sentado por detrás de uma mesa pediu-me a identificação e indicou-me o caminho para os escritórios, que dispõem de uma esplêndida vista sobre toda aquela “toponímia da revolução”.
Segue-se a entrevista feita a 21 de Julho de 2014.
Em que medida podemos falar de uma literatura moçambicana? Segundo Antonio Candido, para que se possa falar de uma literatura nacional, é necessário existir um grupo de autores mais ou menos conscientes do seu papel, um público leitor e um mecanismo de divulgação. Já existe esse mecanismo?
Creio que, de alguma forma, já se pode falar de uma literatura moçambicana. Já há um corpus sistémico do que é a literatura moçambicana. A chamada geração dos fundadores, no caso da poesia, podemos falar de Noémia de Sousa, de José Craveirinha, de Rui Knopfli… Acho que o que eles praticaram de uma forma consciente foi a fundação de uma certa literatura. É evidente que antes deles já havia alguns autores, mas acho que é nesta geração que a literatura moçambicana ganha uma formulação que viria a sistematizar-se ao longo do tempo. No caso da ficção, ocorre um pouco mais tarde. Acho que o caso mais exemplar é Nós Matámos o Cão-Tinhoso, de Luís Bernardo Honwana, mas é preciso não esquecer também os livros de Orlando Mendes e de Carneiro Gonçalves. Ele morreu cedo e a obra saiu postumamente. Mas acho que é no pós-independência que a ficção ganha uma ampla consistência, com a geração de Mia Couto, Ungulani Ba Ka Khosa, Suleiman Cassamo e, um pouco mais tarde, Paulina Chiziane, etc. Isto sem esquecer Lília Momplé, Calane da Silva que andava entre a ficção e a poesia, ou Leite de Vasconcelos, um poeta, prosador e dramaturgo. Portanto, uma primeira geração de Knopfli, uma segunda geração de Heliodoro Baptista, uma geração pós-independência com Eduardo White e Armando Artur, por volta da Geração Charrua3. Se olharmos com alguma distância, podemos afirmar sem dificuldade que existe uma literatura moçambicana. Eu próprio pude comprová-lo organizando duas antologias, uma de poesia e outra de ficção. Hoje é possível cotejarmos no que existe a certeza de que há uma literatura moçambicana nos termos formulados pelo Professor Antonio Candido.
Essas antologias são muito úteis, porque permitem ter uma ideia geral da literatura moçambicana.
Por aí se consegue ter uma ideia muito ampla dos caminhos, dos percursos, das temáticas, dos estilos, das posturas de linguagem que a poesia trilhou. Pela poesia, percebemos que a literatura moçambicana atingiu cedo de mais uma dimensão de modernidade, cruzando com uma certa tradição de oralidade africana.
Qual a situação das editoras moçambicanas?
Eu sou editor da Marimbique há 11 anos. Antes estive envolvido no projecto Ndjira, fundada em 1996. Mais tarde, divergi do projecto e fui para outro projecto. Para além da Ndjira e da Marimbique, há a editora Alcance, que também tem alguma vivacidade. Não queria fazer uma listagem para não me esquecer de algumas. Há uma certa vitalidade na edição, mas, de uma forma muito diferente do que acontecia há vinte ou trinta anos, quando a literatura tinha uma ampla recepção principalmente na imprensa, em que havia páginas literárias importantes, como na Gazeta de Artes e Letras. Havia a página «Ler e Escrever» no Jornal de Domingo. No Jornal de Notícias, havia uma página que teve vários nomes, entre os quais «Pala Pala». No Notícias da Beira, havia a página «Diálogo». Aí os autores tinham um primeiro momento de recepção e havia uma intermediação entre os autores e o público. Não havia esta formulação editorial como há hoje, era um tipo de edição muito mais artesanal, hoje é muito mais profissionalizado. Na rádio e nas televisões emergentes havia programas dedicados à literatura. Hoje há pouca recepção. Creio que se pode considerar que a prática do jornalismo cultural desapareceu, o que não ajuda a proporcionar este movimento dinâmico das editoras. Fala-se no problema do poder aquisitivo dos moçambicanos. Eu creio que o problema não está aí, mas nos fracos hábitos de leitura, posturas em relação à aquisição de bens culturais não tão entusiasmadas como poderíamos esperar… É preciso cultivar no público, ter programas de incentivo à leitura, haver propostas de apetrechamento de bibliotecas municipais e nas escolas… As pessoas têm de lidar com livros para terem amor ao livro. Se nunca conviveram com livros, não chegam à idade adulta e começam a comprar livros. O livro não é um bem de consumo essencial para a maioria das pessoas. Para mim, é…
Hoje Maputo é uma cidade com uma dinâmica própria, em crescimento, com uma classe média mais ou menos consistente. Vê-se o tipo de transportes que utilizam, o tipo de casas que habitam… Isso não é só com expatriados. Há moçambicanos com um certo poder aquisitivo, mas esses não têm livros em casa. É uma geração que não cresceu com o livro. O trabalho das editoras barra com esta dificuldade, mas, como eu cultivo a esperança, creio que é um problema do momento que vamos ultrapassar. Vejo que há algumas ilhas de interesse neste trabalho de divulgação literária. Se não houver recepção, se não houver um trabalho de intermediação, as pessoas não vão ter iniciação literária, não vão ter capacidade de chegar aos autores e aos livros e o trabalho das editoras vai diminuir.
«Logo, quem da Europa vem, as suas acompanhantes parecem estrelas de televisão», escreveu no conto «A apresentação do falecido».4 Esta frase faz-nos pensar sobre o papel dos europeus e dos brancos hoje em dia. Há uma imagem estereotípica que se forma em cada época. Como mudou a imagem dos portugueses da época colonial até agora?
Esse texto deve ter sido escrito há 20 anos. Não é a mesma visão que permanece sobre os portugueses. Há várias maneiras de os portugueses serem vistos e de eles também verem a sociedade moçambicana. Após a independência, havia ainda um conflito forte entre os ex-colonizados e os ex-colonizadores. Depois há relações que se vão estabelecendo, há diálogos que vão sendo feitos… Em 1983 se não me engano, o Presidente Samora Machel vai a Portugal numa visita que se revela importante para o degelo das relações. O presidente português, Ramalho Eanes, veio cá também. O facto de uma das suas primeiras acções ter sido uma homenagem na Praça dos Heróis foi um acto simbólico importante. A forma como esta relação se foi formulando ao longo dos anos mudou muito. Hoje vê portugueses espalhados por todo o lado, é uma espécie de um regresso massivo. Vê portugueses na área da restauração, na área da construção… Vê jovens portugueses, muitos por culpa da crise em Portugal, que creio que vivem cá sem dificuldades, perfeitamente integrados. O clima entre portugueses e moçambicanos mudou radicalmente.
Fui a Portugal nessa época, e hoje, quando regresso, sinto que não é a mesma coisa. Portugal também mudou, Portugal também aceita melhor a alteridade, Portugal também aceita melhor a diferença. Sobretudo, Portugal aceita melhor o seu passado. De forma jocosa, costumo dizer que muito do que acontece de positivo na nossa relação com os portugueses deve-se aos angolanos. É uma metáfora das nossas relações. Angola, depois de superar a guerra, cresceu de forma tão galopante, a economia angolana teve muita penetração no quotidiano dos portugueses, as relações passaram a ser económicas, mais fluídas… O poder de aquisição dos angolanos libertou-os de um certo estigma com que eram olhados. Nós próprios eramos olhados de uma forma mais estigmatizada. Se calhar o estigma é ao contrário hoje, se calhar olham para todos os africanos como quem tem um poder aquisitivo elevado e que é preciso tratar bem. Passámos de um certo afastamento para uma aproximação muito ditada por essa capacidade que sobretudo os angolanos introduziram em Portugal. Isto é só um faits divers, mas acho que os portugueses olham de uma forma diferente os africanos, os moçambicanos, os angolanos, os guineenses, os são-tomenses, os cabo-verdianos… Não vejo conflitos, xenofobia, acho que não existe isso. Pelo contrário, vejo uma relação muito mais tranquila, mais distante da época histórica da cisão com a independência, mais baseada nos interesses de parte a parte, interesses económicos ou de outra ordem. Aquele lado conflitual foi ultrapassado. Hoje quase que não se fala nisso. O tema são as oportunidades, as várias propostas em várias áreas… Portanto, já não são tão estrelas de televisão quanto isso.
Na época colonial, havia duas classes intermédias entre os dois pólos, os assimilados e os mestiços. Hoje ainda têm algum peso?
Isso diluiu-se. A sociedade moçambicana é muito espartilhada, mas já não racialmente, mas sim do ponto de vista económico. Hoje, a cidade de Maputo tem zonas fortemente habitadas por expatriados de várias nacionalidades, não só portugueses, que vivem aí por terem poder aquisitivo, porque representam multinacionais, embaixadas, etc. Mas também há muitos moçambicanos nos mesmos parques mobiliários. Temos uma cidade da elite: a Polana e Sommerschield, o bairro central, um bocado da Coop; a classe média em Malhangalene; a classe média baixa em Alto Maé; depois os subúrbios tradicionais: Chamanculo, Mafalala, um verdadeiro caldeirão cultural; depois novos subúrbios que surgiram à volta da Grande Maputo, como Matola, Belo Horizonte, Zimpeto, etc. Há uma classe média florescente, dinâmica, forte, quase totalmente pós-independência, de jovens de trinta e poucos anos. É uma cidade perfeitamente estratificada desde o início. Desde que Lourenço Marques foi fundada, sempre houve zonas para os mais excluídos economicamente e zonas onde os mais inseridos economicamente poderiam habitar e conviver. É claro que Maputo é um grande centro para onde as pessoas convergem para trabalhar. Maputo ao domingo é uma cidade muito menos habitada, não tem gente, não tem vida própria. Ao meio-dia as pessoas começam a desaparecer para esses satélites dormitórios. A textura da realidade de 1975 diluiu-se completamente. Hoje não diria que na zona tal vivem os assimilados, não… O que existe é os que têm melhor poder aquisitivo migraram para Sommerschield e para Polana, os que não têm ou foram deixando de ter foram empurrados para zonas limítrofes ou para os subúrbios. O que ficou foi a competição do ponto de vista socioeconómico. Falo apenas de Maputo. Isto pode ser mais ou menos extrapolável para outros centros urbanos, mas Maputo é a cidade mais complexa, onde é possível ver essas muitas diferenciações sociais.
Em que medida este espaço urbano dialoga com o espaço rural?
Eu não diria espaço rural, mas espaço periurbano. O mundo da ruralidade veio para a cidade e transportou os seus valores. São mundos muito diferentes na forma de estar, mas o código permanece nas pessoas. A transição campo-cidade é recente. As pessoas vivem na cidade, mas estão ainda amarradas a certas práticas culturais do campo. Isso é visível no quotidiano. O que eu acho interessante na cidade de Maputo é que convivem muitas coisas. Sob esse ponto de vista, é uma cidade rica, porque é rica culturalmente, nas religiões, existem igrejas das mais variadas, encontra minaretes muçulmanos, igrejas protestantes, metodistas, católica, judaica… Encontra símbolos das diversas culturas e civilizações que se foram caldeando aqui neste espaço. É muito interessante a forma como as pessoas vestem, o que praticam no seu quotidiano, as várias influências na culinária, os cheiros, os aromas… No mercado, há todo aquele caldear de culturas. É uma cidade aberta para o mar, aberta a várias civilizações. Aqui confluíram línguas, culturas, povos, posturas, formas de vida, campo/cidade, o mais tradicional africano, o mais moderno ocidental, tudo aqui converge. Acho isso fascinante.
Também se pode observar essa diversidade no resto do país, mas as fronteiras de Moçambique não respeitam as fronteiras linguísticas.
As culturas e as línguas transgridem as fronteiras.
Hoje existe um sentido de pertença a um espaço cultural?
Esse sentimento quase indefinível de alguém pertencer a uma pátria, a um lugar, aos seus, onde tem enterrados os seus mortos, aos seus valores – eu acho que isso existe. Acho que nos diferenciamos dos sul-africanos, dos zimbabuanos ou dos tanzanianos, embora nas fronteiras possa haver confluências. Ser moçambicanos não é algo monolítico. Vê um lastro muito diverso de pessoas que se moçambicanizaram ou de pessoas que cresceram nessa realidade e que são perfeitamente moçambicanos. Politicamente pode ser difícil encontrar isso, por causa do senso político que impera. Na realidade quotidiana, é um país pacificado, que aceita a diferença, a alteridade… O moçambicano não é visível pela cor da pele, mas por aquilo com que se identifica, pelos valores, pelo sentimento de pertença. É uma sociedade tolerante.
Em Moçambique fala-se muito das diferenças culturais do Norte e do Sul, as culturas matriarcais e patriarcais. Essa diferença é forte ou as culturas matriarcais hoje foram suplantadas?
Não tenho estudado isso, mas sei que na cidade isso se esbateu muito, mas noutras zonas não sei dizer. Tenho a impressão que continua a haver em certas áreas formulações matriarcais fortes, com posturas de cultura, de linguagem, de postura dessas comunidades, mas não tenho dados concretos.
Lemos em «A Curandeira de Polana»5: «Aliás, em Maputo, não há ninguém que não frequente o curandeiro.» Actualmente ainda é assim?
Não sei… Talvez essa afirmação seja muito forte, mas é uma metáfora para dizer que, por muito que a gente tenha migrado para a cidade, a tradição ficou em nós. Mesmo em cerimónias oficiais, em grandes inaugurações, em grandes acontecimentos há sempre a intervenção de posturas tradicionais. Numa população que é urbana há quatro décadas – o fenómeno é relativamente recente, desde os anos 1970 –, todo o lastro cultural que vem da ancestralidade permanece. Mesmo quando se cruzam outras posturas, religiosas por exemplo, não entram em conflito, convivem. A olho nu não, mas no subterrâneo da sociedade sim.
Em Os Narradores da Sobrevivência escreveu: «[…] numa altura em que os grandes não punham os pés nas igrejas nem sequer admitiam cerimónias para lembrar os antepassados, tudo isso porque a revolução era pagã […]».6 Actualmente, qual é a relação da FRELIMO com a religião?
Isso mudou. Um dos primeiros actos simbólicos foi o Presidente Joaquim Chissano ir à missa. Houve uma altura em que principalmente os dirigentes não frequentavam a igreja e a religião tinha sido «obliterada». Hoje não. Vejo pessoas em cargos públicos que são religiosas. Mas é um Estado laico. O Presidente da Comissão Nacional de Eleições7 veste as roupas que evidenciam a sua religião. Mas isto é visto pacificamente. As pessoas frequentam o que querem, respeitam-se. Há uma transformação forte, estrutural para uma sociedade muito mais complexa, multívoca, aberta, diversa… Não há já ditames, isso foi ultrapassado.
Como é que o Nelson e a sua família viveram durante as guerras?
Nós vivemos na cidade, vivemos o cerco que a cidade vivia, mas não posso ter a arrogância de dizer que sofremos com a guerra, não. A guerra chegou perto da cidade, mas tivemos o privilégio de estar defendidos pelo Estado. Mas acompanhámos a violência da guerra. O meu imaginário é o imaginário de quem viveu esses anos, de quem ficou atormentado, mas fui um privilegiado, não tive as provações que passaram concidadãos nossos no mato, que foram raptados, violados, que morreram, toda aquela desgraça que foram aqueles dezasseis anos de guerra e que espero que não voltem. Agora uns agoiros de guerra pairam no ar… Seria trágico para o país.
No conto «A árvore que sepultou o meu avô», encontramos a seguinte passagem: «História da guerra, não escrita, não contada, está no nosso silêncio, na nossa vergonha colectiva, no nosso luto.»8 Esse silêncio serve para não mexer no trauma?
Nós não fizemos o exorcismo da guerra. Ontem estava a ver um documentário sobre a Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul…
Existe uma comissão semelhante em Moçambique?
Não, não existe. Nós não assumimos o que aconteceu. Fizemos uma espécie de uma reconciliação, que não foi plena politicamente, houve uma integração na sociedade e vinte anos depois voltaram as fissuras, as feridas da guerra. Ontem, ao ver aquele processo violento da África do Sul, com a Comissão da Verdade, ao ver aquela imagem pungente do bispo Desmond Tutu desabando em lágrimas perante a crueldade que estava a ser revelada em tribunal, pensava se aqui não teria havido lugar para um certo exorcismo da guerra. O que senti foi um conflito latente, uma beligerância, que se exprime ainda hoje. Vinte anos depois do Acordo Geral de Paz ainda não ultrapassámos o problema da guerra. Fizemos um luto silencioso, aceitámos, não fizemos acusações de parte a parte… As acusações são feitas como aproveitamento político, num momento de beligerância parlamentar ou na imprensa. Não houve uma reflexão nacional do que isso significou e acho que perdemos a memória disso rapidamente. E estamos perante o risco de voltar a esse cenário. Espero que isso esteja mais distante agora. Para uma geração muito grande de moçambicanos, a guerra é um fenómeno muito distante. Ou não sofreram com isso, ou eram miúdos de dez anos quando a guerra acabou… Mas há uma geração de traumatizados, de estropiados, de pessoas que perderam familiares, há ainda gente que não encontrou os seus mortos, há ainda lutos que não foram feitos, há qualquer coisa que ficou no interior dos moçambicanos. Há uma certa amnésia na política. O tema da guerra sempre serviu para fazer a pequena política, no sentido da discussão, não no sentido de propor uma nova sociedade moçambicana que superasse tudo e que permitisse uma plena integração. Acho que houve uma aceitação mínima, a integração não foi plena. Ao ver o documentário sobre a África do Sul, senti que ali tinha havido um esforço muito grande de aceitação do outro, mas aceitação partindo da enunciação da verdade. Sobre a guerra existem acusações de parte a parte. A sociedade foi violentada ao extremo, mas não teve um momento para reflectir. Honestamente, não sei qual é o melhor caminho, mas eu teria preferido que esse luto do exorcismo tivesse sido feito. Não sei como é que isso se faz.
Até agora há uma amnésia política, mas no espaço cultural e na literatura fala-se sobre a guerra. A literatura pode ter um papel terapêutico?
Sim, sim, mas se a literatura tiver uma expressão muito grande. Se tiver uma expressão residual…
Não há um público leitor muito grande…
Há várias obras sobre a guerra na literatura, no cinema e no teatro, mas nenhuma provocou um amplo debate. É tudo muito circunscrito, quase clandestino.
Então não há movimentos culturais e sociais que procurem recuperar a história, por exemplo, as antigas crianças-soldado.
Não, desapareceram. Um dia haverá um fenómeno de explosão a revelar essa realidade trágica. Assumimos isso no silêncio, mas depois pode ser um problema de difícil gestão. Há as crianças-soldado, as mulheres violadas, há tanta coisa que é preciso pensar e que ficou meio apagado. A guerra foi de uma violência extrema e dividiu muitos moçambicanos. Se tivéssemos um melhor exercício da memória talvez não estivéssemos à beira de repetir os erros, como acontece agora. Espero que tenha sido apenas um mau momento da nossa sociedade.
Um aspecto interessante é o papel da mulher na sociedade moçambicana. A literatura aborda com frequência a violência doméstica. Como é que isto mudou com a independência? A FRELIMO afirmava que lutava pela igualdade dos sexos. Conseguiu melhorar a situação?
Sob o ponto de vista simbólico, a mulher tem um papel central na sociedade moçambicana. Vê a mulher nos centros de decisão, politicamente integrada, etc. Socialmente a questão é muito mais complexa. Em termos simbólicos, a sociedade deu passos muito importantes. Há mulheres no parlamento, no governo, nas várias esferas da sociedade, mas no quotidiano a questão é muito mais complexa.
Como convivem a monogamia e a poligamia?
Há uma realidade mais subterrânea. Nem sequer é clandestina, são outras realidades que às vezes não conseguimos captar tão bem, estas realidades culturais que a modernidade recusa aceitar e até a legislar persistem. A lei não admite a poligamia, mas ela existe. Também existe poliandria. As pessoas ocidentais tendem a fazer um juízo moral, numa perspectiva eurocêntrica. Eu tento explicar esses fenómenos aos meus amigos do ponto de vista do outro, tentando dizer que esta é a realidade. Não sei se é correcta ou não, mas é a realidade. Existe poligamia, existe poliandria, existe de tudo. Numa realidade tão caldeada de tantas culturas e tradições, seria difícil apagarmos pura e simplesmente essas situações. Leva tempo a mudar. Se é que tem de mudar, não sei…
A poligamia tem raízes muito antigas. Alguma vez houve um debate político sobre a possibilidade de legalizar a poligamia?
Houve, mas não foi um debate amplo. Chegou-se a falar, mas foi sempre pela via do código ocidental. Isso provoca problemas muito graves em termos sociais, porque, nestas múltiplas famílias, por vezes é preciso garantir direitos principalmente a crianças que nascem fora da «casa principal» e que, neste conflito entre a sociedade moderna e tradicional, são atropeladas por leis estanques. É uma realidade complexa e é preciso pensá-la. É preciso, se não aceitá-la, pelo menos percebê-la.
Quantas línguas de Moçambique fala?
Eu falo pouco. Tenho pouca prática na língua do Sul. Falo basicamente português. Vivi algum tempo em Nacala, mas não tenho o perfeito entendimento da língua macua. Gostava de ter aprendido, mas não aprendi. Moçambique é um país muito interessante, tem várias línguas, é uma grande diversidade.
Qual foi a sua primeira língua?
Português. O português é a língua aqui do Sul. Falo pouco o ronga, mas percebo perfeitamente.
O uso do português na literatura não cria um problema de verosimilhança? Se fossem reais, muitas personagens falariam uma língua bantu, não português.
Isso é um problema… mas se o teu mundo for o da língua portuguesa, talvez não haja esse problema. Nós convivemos num tecido muito mais complexo e adverso em termos culturais e linguísticos. Pode colocar-se essa questão. Pode ser um elemento de dificuldade, principalmente na autenticidade de certas obras. Quando tentamos retratar um mundo que não é o nosso, podemos ter dificuldade em traduzi-lo, em entendê-lo. Até pode acontecer não termos entendido nada desse mundo que julgamos estar a traduzir.
No futuro pode surgir uma literatura numa destas línguas bantu ou pelo menos um jornal?
Não sei… Há algumas propostas… Não sei… Nós temos tantas línguas, tantas línguas. Existem alguns autores em línguas moçambicanas, mas é um fenómeno muito mais circunscrito. Se escrever em língua portuguesa já é uma coisa muito circunscrita, imagine noutras línguas! Mas é possível. Podem existir jornais, mas não tenho presente.
Neste momento, está a escrever alguma obra ou dedica-se à edição?
Tenho dedicado mais tempo à edição. Não estou a escrever, mas em breve voltarei a escrever. Tenho histórias para escrever.
- 1. Agradeço à Fundação Fritz Thyssen (www.fritz-thyssen-stiftung.de) pelo financiamento desta viagem de investigação a Moçambique do 5 de julho ao 5 de agosto de 2014.
- 2. Fragmento do poema “Anos 80”, em: Saúte, Nelson: Livro do Norte e outros poemas. Maputo: Marimbique, 2012, p. 105.
- 3. Revista da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), fundada em 1984.
- 4. Saúte, Nelson: O Apóstolo da Desgraça. Lisboa: Dom Quixote 1999, p. 31.
- 5. Saúte, Nelson: O Apóstolo da Desgraça. Lisboa: Dom Quixote, 1999, p. 41.
- 6. Saúte, Nelson: Os Narradores da Sobrevivência. Lisboa: Dom Quixote, 2000, p. 29.
- 7. Abdul Carimo Sau é muçulmano.
- 8. Saúte, Nelson: O Apóstolo da Desgraça. Lisboa: Dom Quixote, 1999, p. 15.