“Só consigo escrever quando me relaciono com uma alma angolana”, entrevista a Ana Paula Tavares
Série Viver e escrever em trânsito entre Angola e Portugal (parte 3)
Ana Paula Tavares nasceu numa aldeia da província da Huíla, em 1952. Os seus pais, um homem mestiço e uma mulher branca nascida em Angola, viviam num ambiente rural e com poucos recursos, pelo que decidiram procurar “padrinhos coloniais” para a filha, na esperança de que tivesse acesso a uma boa formação. Assim, Ana Paula Tavares foi criada pelos seus padrinhos portugueses sob uma rígida educação católica, mas nunca perdeu de vista as sociedades agropastoris da região que a influenciaram profundamente. Absorveu os saberes das mulheres, as vozes e os sons da terra e das línguas bantu comonecessidade de identificação com a terra. Enquanto os seus avós, pais e irmãos vieram para Portugal na altura da Independência de Angola, a poeta decide ficar e questionar o seu lugar neste mundo, numa época marcada pela guerra. No ano de 1992, muda-se a Lisboa e se consagrará como escritora e professora universitária. Nos seus livros de poesia usa o nome Paula Tavares, nos seus livros em prosa e trabalhos académicos assina com Ana Paula Tavares.
Em novembro de 2020, Ana Paula Tavares conversa com Doris Wieser sobre o processo de construção da sua angolanidade, a oralidade e a economia da sua palavra literária, os modos de vida dos habitantes da Huíla e a consciencialização de si no mundo colonial que estava prestes a ruir.
Quem é Ana Paula Tavares?
Nasci no sul de Angola, numa região chamada Huíla, numa pequena aldeia, perto do centro da capital da província da Huíla, província que tem o mesmo nome da aldeia. A capital, na altura, chamava-se Sá da Bandeira, mas o verdadeiro nome nas línguas locais é Lubango, nome que voltou a assumir. Nasci nessa pequena aldeia, junto a comunidades pastoris, os Nyaneka, que falam uma língua bantu, língua na qual eu não fui iniciada. Era muito comum entre as famílias angolanas da época, famílias menos favorecidas, deixar que os seus filhos fossem criados por padrinhos portugueses mais ricos e que poderiam dar a essas crianças uma maior possibilidade de frequentar a escola, o liceu e, quem sabe, a própria universidade.
Portanto, desde muito criança fui viver com os padrinhos portugueses duma aldeia daqui de Portugal, perto de Viseu, e que foram para Angola nos anos 20 do século XX. Era gente que tinha construído uma fábrica e lojas numa região que não era a sua. No entanto, a minha madrinha, por exemplo, tinha recriado, para além da casa, um pomar com todas as árvores típicas de Viseu, com todos os animais típicos da sua região de origem. Nessa casa, rodeada de laranjeiras, figueiras, morangueiros etc., eu cresci. De vez em quando visitava os meus irmãos e os meus pais, que viviam nessa tal aldeia, muito mais próxima dessa comunidade agropastoril que referi.
Como descreveria a Angola da sua infância?
Fui-me apercebendo, desde muito cedo, que qualquer coisa naquela sociedade não batia certo: era uma sociedade profundamente violenta e injusta, onde a divisão entre brancos e negros era bem evidente, bem óbvia e bem marcada; marcada pela legislação que dava o poder à comunidade colonial, à comunidade branca, e que transformava todos os outros em indígenas, ou seja, não cidadãos, uma vez que nenhuma destas pessoas poderia ter um bilhete de identidade, nenhuma dessas pessoas era considerada um cidadão português. Para se ser, nessa altura, cidadão português, tinha que se fazer uma candidatura; passava-se por uma série de exames. A pessoa tinha que provar que falava a língua portuguesa fora e dentro de casa, que era escolarizada, que sabia ler e escrever, que não habitava numa casa de pau a pique, que habitava numa casa de tijolo, caiada, com jardim etc. Portanto, exigia-se que a pessoa imitasse a forma de vida dos portugueses. Esses eram os assimilados.
Os padrinhos que tive fizeram todo um esforço para me ensinar a ser portuguesa, a aprender a língua portuguesa, a falar em português. Portanto, era completamente interdito o uso de qualquer palavra das línguas bantu que me rodeavam. No entanto, eu dava-me conta de todos os sons que me chegavam aos ouvidos, os sons com os quais ficava impressionada, a voz das mulheres. Era nessas línguas que me apareciam, línguas às quais eu não tinha acesso, línguas para as quais eu não tinha a chave. E, portanto, lentamente, fui-me apercebendo de que havia ali um campo de investimento no qual eu precisava pensar e que me ajudaria a formar uma consciência, de tal maneira que me interrogava: “Mas de que lado estou? Eu sou daquele lado ou sou deste lado?”
Não me tinha sido dado o acesso a esse universo das outras línguas. E isso determinou em mim uma vontade muito grande de sair, passar a serra, ir ver como é que era o resto do mundo para o lado de lá daquela serra intensa. Como o tempo ia passando e não tinha essa oportunidade de saltar a serra, então fui me voltando para o aprendizado dessas mesmas comunidades que viviam à minha volta. Portanto, foi todo um processo de crescimento e de iniciação. Além disso, tive também outra iniciação: a iniciação cristã, a igreja, o batismo, o crisma, a iniciação religiosa, todo o tipo de iniciação da obediência, do aprender a obedecer. Eu tinha sido preparada para ser uma mulher bem-comportada, para cozinhar muito bem, para bordar e coser. Assim, o que estava em mente era um projeto de criar uma mulher temente a Deus e, provavelmente, aos homens.
O facto de eu ter frequentado a escola, ter frequentado o liceu e ter entrado na universidade não era visto, pelas pessoas que me criavam, como profundamente suspeito. Ninguém me impediu de dar um salto para a universidade e de começar um caminho de autonomia pessoal, autonomia de pensar. Ninguém se apercebeu de que a biblioteca do liceu estava à minha disposição, e que eu tinha lido tudo o que estava lá, bom e mau, tudo o que me permitia formar uma consciência das coisas, interrogar os textos, saber das histórias, saber que havia um mundo para além daquele que era um mundo liso e organizado da menina temente a Deus e bem-comportada.
Como se relaciona a sua identidade hoje em dia com Angola por um lado e com Portugal por outro?
Acho que a formulação, a escrita, a palavra em si, não consegue dizer a profundidade de tudo quanto nós sentimentos quando dizemos angolanidade. Para mim, é mais do que uma palavra. É um conceito, é um mundo simbólico, é um local de pertença que foi trabalhado e construído em pessoas como eu, da minha geração, que nasceram num mundo chamado “português”, pertencente ao império português e que recusaram de forma consciente esse local de presença, esse outro local de pertença. Mas mesmo agora, tantos anos depois de viver em Portugal, continuo a sentir-me angolana. Tenho definido Angola como o local de pertença. Nós temos sempre que pensar que as questões de identidade só são questões qualitativamente importantes quando elas alargam o mundo em que vivemos, e não quando o estreitam.
Vivo em Portugal, mas só consigo escrever quando me relaciono com uma alma, como dizia Ruy Duarte de Carvalho, com uma alma angolana, com um corpus identitário, um corpus de referentes que têm a ver com Angola. Sou angolana, sou do sul, sou do sul de Angola, que não é a mesma coisa do que ser angolana em geral, e é com todos esses referentes que me identifico. Portanto, quando se fala na palavra identidade, para mim, não se trata de um canal estreito que define um nacionalismo fabricado, nem nada disso. É um conjunto de horizontes que alargam a minha ideia de pertença. E não consigo viver sem isso.
Como viveu o tempo da Guerra pela Independência de Angola?
A guerra é um tema que entra pela minha infância adentro. Eu ainda era muito pequena quando começou a por nós chamada Guerra pela Independência Nacional e pelos portugueses chamada Guerra Colonial. Era muito pequena quando ouvia falar vagamente que, no Norte, terroristas eram combatidos pelos valorosos soldados portugueses; e que Angola era “nossa, nossa”… queriam os portugueses dizer “deles”, não é?! Ainda era muito miúda, estava na escola primária quando aconteceram as primeiras grandes revoltas camponesas na Baixa de Cassange, logo seguidas de uma revolta de alguns contratados e outros angolanos, na cidade de Luanda, que tentavam libertar das cadeias pessoas que estavam a ser sistematicamente presas desde os anos 50 do século passado. Portanto, a ideia da guerra entra na minha vida muito cedo. Mas uma coisa é a ideia, o conceito da guerra, que podia ser qualquer coisa como os filmes sobre a guerra noutros continentes, noutros países; outra era a ideia de que um antes e um depois se iriam passar na região em que habitava.
Nesse processo, a palavra independência começa a surgir e muitos de nós arranjamos maneiras de contribuir para essa ideia de independência, que era uma ideia vaga ainda, mas começamos realmente a tomar partido, a deixar de estar contentes com a situação e a tentar, de uma maneira ou de outra, lidar com a ideia de liberdade, a ideia de independência. Lembro-me que o grupo a que pertencia resolveu aproveitar os locais de catequese, ou seja, os locais da igreja católica e das missões que existiam nos bairros periféricos, fingindo que íamos fazer catequese, ou seja, ensinar os indígenas a ser católicos, bons católicos. Começamos a fazer alfabetização e a ensinar as pessoas adultas a ler usando o método de Paulo Freire.
Muitos de nós não participamos diretamente na luta pela independência de Angola, cujo processo foi longo e violento, estendido no tempo. Chegava-nos de maneira diferente, filtrado pela forma como a censura, os jornais, o cinema omitiam o facto de uma grande parte do território de Angola estar envolvida nessa guerra e nessa crise estrutural e violenta. Tínhamos uma ideia vaga de que alguma coisa se passava, mas, desde a Polícia Política até aos nossos pais, aos padrinhos, toda a gente nos procurava afastar dessa ideia de independência nacional. O que quero dizer é que ninguém da minha geração estava indiferente àquilo que se passava em Angola e que esperava ansiosamente o dia da chegada da independência nacional; e que finalmente chegou, mais uma vez, numa situação de grande conflito, em 1975.
Começou a escrever logo nessa época?
É só depois da independência nacional que eu começo a pensar na escrita, na escrita enquanto processo. Eu escrevia muita coisa, mas achava que nada daquilo era importante. Então, se havia uma guerra tão grande, se havia uma crise tão grande, se havia falta de comida, se havia gente que não dormia, se havia falta de hospitais e de médicos, como é que a minha escrita podia ser importante? Escrevia e guardava. Achava que não devia publicar, porque nada na minha escrita era, digamos, um retrato de tudo o que se passava à volta. A minha escrita recordava as tais vozes das mulheres que eu tinha deixado num sítio e que nem sequer sabia se estavam vivas ou mortas; a minha escrita lembrava os bois, o ciclo dos bois. E então dizia: “Mas no meio deste enorme conflito, no meio destas questões todas que se põem, como me vou atrever a falar de amor, de crescimento, de rituais de passagem, quando tudo leva ao conflito, à guerra, à crise, à doença, à morte?” Mas, a determinada altura, penso: “Neste momento, e com a minha idade, ou publico agora ou então calo para sempre e nunca mais ponho cá fora nenhum poema, nenhum verso”. E foi isso que me levou a tomar essa decisão, a decisão de publicar um conjunto de poemas.
Portanto, embora a escrita fosse um processo muito anterior, a passagem à divulgação e à exposição foi um processo que segue a independência nacional. O caderninho então publicado, Ritos de passagem (1985), provocou algumas inquietações, não em mim… Eu não fiquei nada preocupada, porque achei que aquilo era o fim dum ciclo: escrever, publicar e deixar. Mas houve pessoas que ficaram bastante indignadas. Achavam que o caderninho abria porta para as mulheres falarem de coisas que até aí tinham sido um universo exclusivamente masculino: “Mas como é que uma mulher se atreve a falar do corpo? Mas como é que uma mulher se atreve a expor esse mesmo corpo? Uma mulher se atreve a falar de traição, de dominação, de feminismo…?” Houve pessoas que me trataram muito mal, mas isso a mim não me incomodou absolutamente nada. Tinha cumprido um ciclo e sabia que a minha escrita só poderia ser aquela.
Na sua obra há referências aos espíritos dos antepassados, à adivinhação – como em “Cesto de adivinhação” (A cabeça de Salomé) – ou, ainda, à presença do sagrado na natureza. Tendo recebido uma edicação católica, qual é a sua relação pessoal com a cosmovisão e as religiosidades africanas?
É verdade que toda a minha iniciação religiosa foi cristã. Cresci dentro da igreja cristã, mais concretamente católica e o meu afastamento da igreja católica foi progressivo. Deu-se na medida em que percebia como a igreja católica, sobretudo aquela mais formal, era uma igreja muito próxima do poder colonial e isso determinou o meu afastamento. Ver aquela injustiça, ver como a igreja abençoava de certa maneira o domínio de uma comunidade pela outra, levou a um gradual afastamento da igreja e de seus princípios. O afastamento de deus e da ideia de deus foi mais difícil e foi posterior, mas o facto de eu me considerar uma increia – alguém que não acredita – não deixa de desenvolver em mim sensibilidades para várias formas de religiosidade que eu conheço e que me foram dadas a ver. Uma delas é essa proximidade com rituais que celebram a força da natureza, que têm um culto especial pelos antepassados, que se baseiam na crença de que os mortos continuam a cumprir os seus papéis de vigilância sobre os vivos. Daí que eu muitas vezes convoque esses rituais para a minha escrita.
Há um normal, um quotidiano que está muito baseado nessa não crença, no facto de não acreditar. No entanto, a escrita, digamos que participa desse mundo não totalmente controlado e que transita entre esse quotidiano fixado, normalizado, e outros universos que vêm dos saberes que não são os meus saberes, mas os saberes dessas comunidades, saberes nos quais não fui iniciada. Por isso, figuras como a natureza, as árvores, os antepassados, as mulheres (sobretudo as mulheres velhas quando parecem já ter perdido a sua essência carnal e parecem participar de um mundo que é um “mais para lá” do que este mundo em que nós vivemos) têm uma grande influência em mim e na minha escrita. Portanto, vou muitas vezes buscar essas ideias e ensinamentos à memória desses rituais de iniciação, à memória das raparigas quando são preparadas para um casamento ou um nascimento. Daí o meu respeito profundo por todos esses ciclos da vida que têm a ver com o nascimento, o crescimento e a morte, ou com o semear e o colher, o dia e a noite, o claro e o escuro…
O provérbio, enquanto forma típica da oralidade, parece ter grande importância na sua obra, não só a nível de conteúdo como também a nível do estilo da escrita.
A oralidade começou por ser, para mim, um conjunto de sons que faziam, no meu ouvido, uma ressonância que eu não sabia muito bem explicar nem compreender, mas que desencadeou, desde logo, um processo de inveja daqueles sons que pareciam significar alguma coisa à qual não tinha acesso. Mais tarde, dei conta de que havia trabalhos de alguns missionários, sobretudo missionários conhecedores da língua da região, e que tinham registado um património de provérbios, contos, fábulas, adivinhas e outras formas fixas e breves desse continente da oralidade. O conhecimento dessas fórmulas foi-me muito útil na construção dos poemas. Quando olhei para aquelas fórmulas fixas, eu disse: “Se é possível dizer tanto em tão poucas palavras, então este é o caminho que quero seguir na minha escrita; quero chegar a ser capaz de fazer um poema que consiga ter pouca palavra e dizer muita coisa”. Não sou capaz de esculpir, não desenho bem, mas penso que um escultor muitas vezes tira da madeira tudo o que está em excesso, tudo o que está a mais; e foi isso que essa oralidade, que esse provérbio, que esse desenho na areia, que essa forma inscrita na tampa da panela me deram. Portanto, não quero construir um poema palavroso, quero tirar o maior número de palavras possível. E muitas vezes dei-me conta que faço isso na segunda fase do meu trabalho: escrevo e, depois, vou tirar tudo o que está a mais, tudo o que para mim não interessa. Nesse aspeto, conhecer esse universo do provérbio, do conto curto, foi muito importante, foi uma escola, um ensinamento. É verdade que não conheço as línguas; se conhecesse, poderia tirar um outro partido, porque tive acesso a esses provérbios e a essas fórmulas já recolhidas e traduzidas em língua portuguesa.
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Esta entrevista é a terceira de uma série de entrevistas com escritores/as que transitam entre Angola e Portugal. Pertencendo a diferentes gerações, tornam-se testemunhas das relações culturais e políticas entre estes países, e da herança do colonialismo que os une e os separa. A série faz parte do projeto “Identidades Nacionais em Diálogo: Construções de Identidades Políticas e Literárias em Portugal, Angola e Moçambique (1961-presente)”, coordenado por Doris Wieser, financiado pela FCT e sediado no Centro de Literatura Portuguesa, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra.
Realizada a 15 de novembro de 2020, por Doris Wieser
Transcrição e edição de vídeo: Paulo Geovane e Silva