Angola e os lugares do afeto. Entrevista a Kalaf Epalanga

Série Viver e escrever em trânsito entre Angola e Portugal (parte 6)

Kalaf Epalanga nasceu em Benguela no ano de 1978 e, nos anos 90, com 17 anos, mudou-se para Lisboa. Rapidamente começou a fazer parte da efervescente cena musical que se fazia sentir na cidade, convertendo-se num elemento fundamental da mesma. Tornou-se produtor musical e foi dando os primeiros passos na literatura. Destacou-se também por fazer parte da banda Buraka Som Sistema, responsável por levar ritmos como o Kuduro e o Kizomba a vários locais do mundo. 

Radicado em Berlim, não deixou de circular por Portugal, Angola, e outras partes do mundo. É atualmente um nome incontornavel no panorama musical português e de lingua portuguesa e um escritor em franca ascensão.  

Nesta entrevista, Kalaf Epalanga conversa com Doris Wieser sobre as memórias e os percursos que o marcaram, os lugares de afeto relacionados à sua angolanidade, a Guerra Civil, entre outros assuntos. Houve ainda espaço para refletir a partir das suas obras Estórias de amor para meninos de cor (2011), O angolano que comprou Lisboa (2014) e Também os brancos sabem dançar (2017). Segue-se uma versão abreviada dessa entrevista.


Kalaf, obrigada por aceitar o nosso convite para esta entrevista. Gostaríamos de começar com uma autoapresentação sua, a partir do seu percurso de vida. Podia contar-nos em que medida o seu percurso tem um impacto no seu trabalho musical e literário?

Chamo-me Kalaf Epalanga, sou escritor, músico, angolano radicado em Berlim e em trânsito entre Lisboa e o mundo. Cheguei aqui na segunda metade dos anos 90 com o intuito de estudar, adquirir uma formação académica e regressar para Angola. Entretanto, com o passar do tempo, me apercebi que escrevendo conseguiria estar mais próximo a Benguela, a Angola, o lugar onde eu nasci, e, com isso, poderia também criar uma espécie de catálogo de memórias que estavam a escapar-me das mãos e que precisava resgatá-las como quase fotografias. O meu primeiro contacto com a literatura foi através da música. Começo a escrever canções para vários músicos à minha volta. Fui convidado também a gravar canções. E essas canções percorreram o país, cativaram editores, jornalistas e eles começaram a abrir espaço para as minhas ideias e para aquilo que eu queria transmitir com a escrita. 

Fiz e ainda faço parte da Buraka Som Sistema, uma banda que teve e tem um sucesso considerável; viajei pelos quatro continentes e esse entusiasmo do viajar, do conhecer outras culturas, do conhecer outras realidades foi-me afastando do ato de escrever, que é um ato mais solitário, que exige mais silêncio e uma concentração um pouco maior. Depois de dez anos de música intensa, resolvi focar-me na literatura e publiquei o livro Também os brancos sabem dançar, em 2017. 

O que significam, para si, as palavras Angola e Portugal

Angola para mim é casa. É o lugar que me vem à mente sempre que a questão do eu se coloca. Sempre que inicio um diálogo com o outro, Angola é ponto de partida. Em Portugal – e talvez esta tenha sido a razão principal que me levou a escrever – nunca me senti minoria, porque sei de onde eu venho. Esta é uma perceção que tenho até algum pudor em verbalizar, pois tenho refletido muito sobre o lugar do africano do continente e do africano da diáspora; e sei que é um lugar de dor e tento não fazer da minha identidade uma afronta, razão pela qual costumo dizer: o meu eu tem Angola presente, eu me inicio a partir daquele lugar, mas tenho em mente que não me encerro naquele lugar. Sou angolano, sou africano, sou um homem, mas, mais do que isto, eu sou as somas de todos os lugares por onde eu passei, de todas as pessoas com quem me encontrei e que causaram alguma espécie de impacto na minha formação e na minha personalidade. Angola é importante para mim, mas não Angola no sentido de nação, no sentido de pátria, porque essa é uma construção e é uma construção que não foi iniciada por angolanos… ela foi sendo trabalhada e moldada de acordo com os ventos e acontecimentos da história. Eu não posso imaginar Angola sem a presença colonial, sem os efeitos do colonialismo. Não consigo imaginar Angola, pelo menos a Angola atual, sem ter em conta que existem várias Angolas, a Angola dos ovimbundos, a Angola dos kikongos, a Angola dos chókwés. Essas Angolas são diferentes da minha, mas também são iguais à minha. 

Portugal é essencialmente a língua. Eu acho que a minha relação com Portugal é íntima pelo facto de eu falar a língua que define a identidade deste lugar. Escrevo em português, então é uma ferramenta. Conheço Portugal através dos livros, através das histórias, através da música, então é uma relação que está ainda em construção. Mas já com Lisboa, pelo facto de ter-me abraçado, de ter-me aberto as portas e de ter sido generosa para comigo, tenho uma relação de amor. Uma das coisas que me veio logo à mente foi o facto de Lisboa me ter permitido estar em contacto com outros falantes de português, que de certa forma adensaram até a minha própria forma de trabalhar a língua e o quão elástica eu gosto que ela seja. 

Já que o Kalaf está radicado em Berlim, pode, por favor, elaborar um pouco mais o conceito de identidade nacional em relação às suas vivências e relativamente à presença da Alemanha na sua vida? 

As coisas que me entusiasmam na questão da identidade estão mais ligadas com a ideia de escolha. Sinto-me mais próximo das identidades poéticas, dos lugares de afeto, dos lugares emocionais… essas são as ligações que mais me dão prazer, porque cresci num país em guerra, vi os efeitos dos conflitos armados, como é que eles destroem as famílias. A família é o primeiro lugar, é o primeiro país, a casa é a nossa primeira nação. Vi demasiados lares destruídos em volta da ideia do que é a pátria, do que é a nação. Nasci no sul; Benguela está na fronteira entre o norte e o sul do país, logo o conflito UNITA-MPLA estava na soleira da minha porta. Então, a identidade nacional nunca foi algo que me empurrou para a frente. Não sinto que alguém que pensa diferente de mim seja menos angolano, no caso de Angola especificamente, ou de certa forma um português de adoção seja menos português pelo facto de ter nascido naquele território ou não. 

Sou totalmente pró amor e escolha. A escolha é um ato político que se manifesta das mais variadas formas e ela não é imposta por uma ideia externa, mas vem das nossas vísceras. Viajo muito, tenho conhecido vários países e escolhi viver em Berlim. Gosto e luto pela razão e pela vontade e pela necessidade de um indivíduo ter escolha. Por isso é que, por mais complicada que seja a democracia, não há sistema político melhor, porque o ato de escolher é sem dúvida a única coisa porque vale a pena morrer. E escolhi Berlim exatamente por eu poder escolher. Gosto da cidade, gosto da forma como a cidade é construída, gosto da dor que curva o espírito daquela cidade, que está patente e dá-lhe uma certa rebeldia, silenciosa, mas muito acutilante, muito precisa. Outra coisa que encontrei em Berlim é esse contacto com as outras Áfricas. As fronteiras em África foram definidas num encontro em Berlim. E depois, claro, as pessoas: eu acho que nunca encontrei africanos com tanto conhecimento como encontrei em Berlim. Acho estimulante engajar-me com pessoas que se parecem comigo duma forma intelectual, numa troca intensa sobre conhecimento que não é condicionado pela política da raça, não é? Ou seja, nós africanos, negros essencialmente, quando nos encontramos, não falamos sobre essa condicionante. Isso geralmente se impõe quando estamos em contacto com outras cores. 

O Kalaf referiu um pouco da sua própria memória da Guerra Civil e como ela pode dividir famílias. No que diz respeito às literaturas africanas de língua portuguesa, a memória tem tido algum peso, com diferentes matizes de representação e significação. Para si, em que ponto está a memória coletiva relativamente ao conflito armado e ao colonialismo em Angola e em Portugal? 

Existem muitos silêncios sobre a questão colonial. Ou seja, quando as nações se tornam livres e precisam unir fronteiras, criar os seus mitos, os seus heróis, as coisas que agregam a identidade nacional, geralmente o lugar da dor não tem espaço, porque diminui o ímpeto progressista, a vontade de evoluir, a vontade de crescer, a vontade de grandiosidade, digamos assim. Tenho a sorte de ter vivos alguns parentes que conhecem de forma íntima a Angola colonial, mas não há propriamente um debate. Eu acho que se produz pouco documento sobre isso. A maior parte dessas memórias me chegam no formato de ficção através do Luandino, através do Pepetela, os poetas daquela geração dos nacionalistas, Agostinho Neto, Viriato da Cruz, mas há poucas memórias. Agora começo a procurar e a encontrar livros de memória, por exemplo, de pessoas ligadas à UNITA e à FNLA. E é muito interessante, porque não dá para pensar Angola sem os incluir, não dá para pensar Angola sem incluir toda a gente, quer se queira, quer se goste, quer não… é importante. 

No primeiro livro de crónicas, o Kalaf usou o nome Ângelo e, depois, Epalanga. Como sucedeu essa escolha?

O meu nome é Kalaf Epalanga Alfredo Ângelo. Mas a escolha é de ter dito “Ok, o meu nome de escritor são os meus nomes tradicionais”. Kalaf não é um nome angolano, mas o Epalanga é. Então era importante para mim trazer o cunho identitário, digamos assim. Mas eu acho que vai além disso: para mim é o emocional, porque, quando estava a escrever ou quando estava a coletar o segundo volume de crónicas que publiquei, tinha visitado Huambo. O meu avô tinha falecido há pouco tempo e a minha mãe deu-me os diários dele, deu-me as notas e tudo mais o que ele escrevia. E ele chama-se Faustino Alfredo; Epalanga é o nome dele, mas aí está, ele identificava-se como Faustino Epalanga, mas nunca usava esse nome, não era comum usar. Em todos os atos públicos ele usava o nome que ganhou e que foi adotado com a presença colonial. Essa escolha foi uma homenagem, porque herdei o nome Epalanga dele, sou xará do meu avô nesse sentido. Decidi, “ok”, o Ângelo pouco peso tem. Na árvore genealógica o Ângelo começa em nós, no núcleo familiar, mas já o Epalanga tem um peso diferente.

O livro de crónicas Estórias de amor para meninos de cor tem um título delicioso e ao mesmo tempo político, para além das suas memórias em Angola e em Portugal, com referências ao seu percurso musical. Como surge esse título?

Estórias de amor para meninos de cor é um título que eu há muito tempo tinha, porque queria escrever um romance que tinha como personagens os afrodescendentes que conheci em Lisboa. Não pensei em contribuir para o legado da literatura angolana, nem me imaginei a fazer parte do tecido cultural da cidade. Mas as questões com as quais os afrodescendentes se debatiam, principalmente a segunda geração… essas pessoas inspiravam-me. Queria muito escrever sobre esses meninos de cor, porque a cor era um assunto tão presente na vida deles e tão presente nas suas relações com o mundo, que eu achava interessante. Se calhar, e aí está o meu privilégio de ter vindo de fora, eu não carrego os mesmos traumas que um afrodescendente que nasceu aqui, que enfrentou o infantário, enfrentou o ensino primário e depois o liceu e a faculdade. Cheguei aqui já sabendo o que eu era, já meio que a pisar em terreno firme, então eu acho que, de certa forma, o título foi uma vontade de dizer um “obrigado” às pessoas com quem tive contacto inicialmente. 

Esse livro levou-me a muitas escolas. Achava muito interessante quando eu chegava lá e a primeira coisa que fazia era explicar por que eu dei esse título à obra: “Será que o livro é só para meninos negros?” E eu dizia: “Não não, é para meninos de todas as cores”. Era interessante esse debate, porque não é muito comum discutir-se, nas escolas, a cor. E eu levava essa discussão para além da ideia de cor, não é? Porque é uma ideia, é uma construção, alguém decidiu dizer “Tu és branco, tu és negro” e assim foi.

No seu outro livro de crónicas, O angolano que comprou Lisboa (por metade do preço), a crónica “Saudação” chamou-me a atenção, sobretudo a frase “a cor negra é uma pátria, uma nacionalidade”. O que está atrás desse entendimento, dessa troca de olhares entre pessoas negras, que descreve nessa crónica? 

Quando se vive ou quando se circula num lugar onde somos minoria, uma das coisas que é interessante observar é a forma como essas pessoas se reconhecem, a saudação, que, pelo menos do meu ponto de vista, é um reconhecimento da outra presença, do outro corpo, porque é muito comum o corpo negro estar invisível, ou seja, ele não está invisível na forma física mas, no contexto psicológico e no contexto emocional, ninguém se preocupa ou se questiona sobre como é que aquela pessoa se sente. Esse saudar é um reconhecimento da luta do outro, é dizer “Olha, não estás sozinho”, é um conforto, porque não sabemos se essa pessoa passou o dia todo sem ter essa troca de olhar que o humaniza e aquele reconhecimento que conforta. 

A oralidade enquanto forma de transmissão do conhecimento e da sabedoria é um grande tema na literatura angolana e, em geral, na africana. Mas não sei se seria justo fazer uma ponte e entender que a música, em certa medida, acaba por ser a continuação desse fenómeno da oralidade. O que acha? 

A música em África é também um dos braços, digamos, da oralidade, mas não só. Acho que todo o indivíduo, todo o ser humano, em qualquer parte do mundo, é formado por histórias. As histórias nos humanizam, são a forma para nos ligarmos não só ao presente, mas ao passado, e permitem imaginar um certo futuro. O que é interessante nas literaturas africanas é que o publicar um livro é provavelmente o lugar que os intelectuais procuram no sentido de participar da grande festa que é a literatura universal. Mas a literatura ou o ato de contar histórias para nós começa bem antes, começa nas nossas mães, nos nossos avós. Eu considero que a forma para definir eloquência nas nossas línguas é como tu consegues estabelecer um diálogo, uma conversa coloquial, e a quantidade de provérbios que consegues incluir nessa conversa a explicar coisas corriqueiras e mundanas. Isso é o que define eloquência, isso é o que define o intelecto do indivíduo; foi assim que eu cresci. 

Passemos agora ao seu romance Também os brancos sabem dançar. Há, na obra, episódios que têm uma base real. Conte-nos um pouco sobre essa projeção do Kalaf real para o Kalaf ficcionalizado.

Há uma corrente literária que começa a ganhar mais espaço, que é a autoficção. E acho estimulante esse exercício. No caso desse romance, o subtexto é a migração, as diferentes migrações, de norte para sul e sul para norte. E, tendo como pano de fundo a música, chegar ao Brasil por exemplo e ver como o país transformou os valores culturais que foram trazidos pelas pessoas escravizadas com o comércio transatlântico; ver isso no Caribe, ver isso nas Américas, ou seja, todas essas coisas, para mim, tinham o elo e o ponto comum da música. Logo senti, “Ok, a música é também um dos personagens”. 

Pedia-lhe ainda que nos comentasse um pouco sobre a construção da personagem de Sofia que ocupa um interessante entrelugar identitário no romance, sendo filha de pessoas a que se chamava, em tempos coloniais, “portugueses de segunda”, porque eram filhos de portugueses nascidos em solo angolano.

Quanto à história de Sofia, tenho muito prazer em observar a construção da angolanidade. Acho que a angolanidade é múltipla, ela não se dá só na ideia dos angolanos autóctones. Angola também se manifesta nos que vieram e se fixaram, se formaram e se ergueram como indivíduos a partir daquele lugar. Depois de escrever o romance, li-o e fiz as revisões todas que foram necessárias, mas existem coisas sobre a biografia dos pais da Sofia, por exemplo, que acabaram por ficar de fora, guardadas em mim. Como o livro tem as migrações como pano de fundo, acho interessante a história da mãe da Sofia, uma angolana branca que retorna para Portugal. Ela foi para Angola ou nasceu em Angola, mas não é numa casa portuguesa, com certeza, e, de certa forma, é quase impossível não sentires esse cunho migratório, nem que seja na biografia dos próprios pais, que é muito íntima. É interessante ver essa personagem em Portugal a sentir-se completamente imigrante, quando a transição de um lugar para o outro é na realidade anterior à existência daquela pessoa. Logo, a ideia de Sofia é uma construção a partir desse pensamento sobre a Angola que nós temos, um pensamento feito de trânsitos e migrações. 

Esta entrevista é a última de uma série de seis entrevistas com escritores/as que transitam entre Angola e Portugal. Pertencendo a diferentes gerações, tornam-se testemunhas das relações culturais e políticas entre estes países, e da herança do colonialismo que os une e os separa. A série faz parte do projeto “Identidades Nacionais em Diálogo: Construções de Identidades Políticas e Literárias em Portugal, Angola e Moçambique (1961-presente)”, coordenado por Doris Wieser, financiado pela FCT e sediado no Centro de Literatura Portuguesa, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra.

As entrevistas foram utilizadas para a criação do documentário “Viver e escrever em trânsito: entre Angola e Portugal” (R: Doris Wieser, 63min., 2021).

8 de dezembro de 2020, por Doris Wieser | Transcrição e edição de vídeo: Paulo Geovane e Silva.

Entrevista realizada a 8 de dezembro de 2020, por Doris Wieser

Transcrição e edição: Paulo Geovane e Silva

por Doris Wieser
Cara a cara | 19 Novembro 2021 | angola, Kalaf Epalanga, Literatura, Viver e escrever em trânsito entre Angola e Portugal