Em defesa das membranas, ou homenagem a Lynn Margulis, “We are consortia”
De todas as vezes que comecei a tentar escrever este texto, de todas fiz muitas coisas antes: levei os rapazes à escola, fiz as camas, passei horas a falar com a saúde 24, fiz um teste de covid, pús a máquina na loiça, tirei a máquina da loiça, estendi e dobrei a roupa, fiz sopas, e muitas vezes fiz várias destas coisas ao mesmo tempo, incluindo escrever este texto.
Também reli o texto que fiz para a apresentação do trabalho anterior da Júlia, o Quotidiano de Luxo. Quando escrevi esse texto, tinha uma coisa going on for me, que eram as palavras da Júlia. Eu sou do storytelling e também da palavra, então o facto daquela história contar uma história – por palavras – dava uma agilidade ao meu texto que será aqui posta à prova.
Aqui o que temos são imagens, sobretudo. Há palavras, sim, frases, mas sobretudo imagens que podem ou podem não ter conexão entre si, podem ou podem não ser pequenos retratos documentais ou elementos de ficção – speculative fabulation, Haraway dixit, e a esta ficcionalidade voltarei daqui a pouco. Mas há um título e é por ele que vou começar, desenrolando as relações das minhas ideias com relações das ideias da Júlia.
Comecemos pelo título – VIVEIRO. A mim, mais depressa do que me remeter para um casulo, Viveiro fez-me pensar no Eduardo Viveiros de Castro, um antropólogo que trabalha muito as ideias de Deleuze e Guattari de rizoma. Rizoma fazia todo o sentido aqui, por causa das plantas e também porque contraria a ideia de centro. Mas vou tentar recusar fazer grandes entradas nesta estrada, porque recentemente voltei a estudar a Donna Haraway, que fala de tantas coisas que me interessam falar aqui, a começar pela ideia de citação, da importância do reconhecimento da citação, da importância de quem queremos citar, ideia que foi buscar a uma outra antropóloga, a Marilyn Strathern, a quem Viveiros de Castro chama antropólogo, no masculino, e era um artigo em brasileiro, então até pode ser gralha/acto falho mas I’m gonna go on a wild guess here e dizer que não foi lost in translation (não aprecio muito o Viveiros de Castro).
Esta ideia de VIVEIRO, uma espécie de cocoon-casulo onde decorreria uma vida pandémica encerrada e longe de contatos sociais alargados, coloca em contraste apenas aparentemente as imagens das pinturas e das ideias que delas passam com a ideia de rizoma, este lugar-entidade-objecto multi-centrado, porque se, por um lado, as imagens meio que traduzem precisamente essa ideia de fechamento na e da relação simbiótica entre mãe e filho, quasi-constituintes de uma única unidade viva na sua extensão, uma espécie de holobionte (se se tratassem de espécies diferentes), por outro lado há toda uma crítica fortíssima nas suas obras a uma ideia unidimensional e linear de mulher e de mãe, aquela que diz que o seu único centro pode ser apenas a família, ou seja, aquela que é o contrário do rizoma, multi-centrado. E também – e porque para mim o holobionte é infinitamente mais interessante do que o rizoma, pelo menos por agora, porque o holobionte carrega toda a ideia de um ecossistema de relações que são acionadas para a criação de vida, a ideia de simpoiésis, o making with, que chegou até mim courtesy da Donna Haraway ft. Lynn Margulis, a rainha da lama e dos organismos, que remata as teorias “naturais” da competição com um, We are all consortia, ninguém é sozinho.
Esta ideia de simpoiésis, o fazer com, esta rede imbrincada de emaranhamentos, aparece sempre nestas histórias – e por histórias também quero dizer estas pequenas unidades de imagem que funcionam sozinhas ou em relação entre si – porque existe o tal awareness dos vários feixes, sobrepostos e simultâneos, que compõem a pessoa, e que são tão necessários reiterar no caso da pessoa-mãe, e que fica tão claro nestas narrativas, em que a intensidade da relação simbiótica entre as entidades mãe\filho também permite (e até vive de) outras histórias e outras vivências.
Na realidade, o que quero dizer é que mais do que a ideia dos vários centros, aquilo que estas histórias evocam em mim é a ideia de teoria quântica of sorts, uma temporalidade múltipla, simultânea, como se vivêssemos num tempo-espaço-matéria paralelo, em que podemos ser várias coisas ao mesmo tempo em várias situações e com pessoas diferentes. A explosão das cores das suas pinturas, aliás, ou a forma como as cores e o traço se encontra diluído, faz-me pensar naqueles caleidoscópios, em que olhamos para a realidade através de um único buraco mas vemos vários (buracos cores realidades). Como também aquelas experiências de crianças em que se larga um corante num container com tinta, que se espalha e faz espalhar todas as tintas ao redor, numa espécie de raios reconfigurados e misturados quimicamente, molecularmente, e que correm em todas as direcções. Não há nem limites nem divisões, só linhas esbatidas que ainda (me) parecem linhas mas só porque remetem para as string figures das camas de gato de que fala também Haraway, aquelas que constituem os jogos de cordas que as crianças jogam em que misturam (a corda) e a recombinam para formar novas figuras. E também é esse esbatimento, essa diluição, que me faz pensar desde que vi as imagens nesta ideia de membrana. Esta ideia de entidade porosa o suficiente para deixar passar os materiais, mas segura e filtrante/filtrada para deixar do lado de fora tudo o que não importa. Como num cocoon-casulo. Ou num viveiro, mos def.
Há um quadro de Shoshanah Dubiner, Endosymbiosis: Homage to Lynn Margulis que, provavelmente por ser uma homenagem a Margulis, tem assim uma explosão de cores daquele caldo primordial que são os organismos e os micróbios. Passando brevemente (e insistentemente) pelo trabalho de Dubiner, vejo que há duas séries que me remetem para o trabalho da Júlia Barata: a série inspirada pela biologia e a série sobre energia e movimento. De formas diferentes, ambas apontam para uma espécie de força que é colocada em movimento e cria rastos de luz (como setas), num gesto que parece encerrar nele próprio uma capacidade transformativa do objeto-entidade que será recipiente. Estes movimentos de energia, que parecem ter então esse poder transformador já a partir do momento da intenção, operam no imediato, como uma espécie de cadeia, uma reação de “toque”& transforma que, sendo apenas elencado ponto por ponto, sem noção do global e com noção do que se encontra imediatamente perto, acaba por operar na big picture, podendo provocar mudanças mais alargada.
Um pouco como descreve Deborah Gordon no seu trabalho sobre formigas e comportamento colectivo. Gordon estuda formigas porque quer estudar precisamente o comportamento colectivo, e percebeu que, when it comes to ants, nenhuma está no comando, não há compreensão global do trabalho a fazer mas que, por via das suas interacções com o que as rodeia, as formigas vão criando os seus padrões de comportamento colectivo, sempre nesta acção emaranhada e embebida na sua relação com o mundo (Gordon, 2017).
Nas aquarelas de Júlia Barata, alguns portais para outras relações com o mundo e mundanas vão-se abrindo, deixando descobrir outras relações com outras entidades (interesses por outros, interesses por si) e o mundo vai-se construindo imediatamente a partir desta encruzilhada de sentidos que, talvez ainda sem consciência que aqueles desenhos|quadrinhos estão a mudar algo maior, podem bem estar a reconfigurar (ou a pensar na reconfiguração) padrões colectivos de comportamento. (Queria apenas deixar claro que com isto não pretendo nunca retirar a força da estrutura ou tentar colocar a ênfase no comportamento individual, porque sou muito contra essa ideia de herói, coisa que aliás alguém grita no excelente filme sobre a vida de Margulis: STOP BEING HEROIC.) Porque entre força-impulso-concretização o impacto é sobretudo imediato, nos ecossistemas mais próximos, mas reconfigurando o storytelling, as narrativas, a história que se conta porque se está a inventar uma nova forma de estar-no-mundo que ainda não foi inventada e reconhecida e celebrada para os que estão à nossa volta e em relação com.
E esta história, much to my deslike (not really tho), é uma história que pode dribblar as palavras e ir directo para as imagens. No seu artigo Symbiogenesis, Sympoiesis, and Art Science Activisms, Haraway incluí uma pequena narrativa em comics sobre abelhas (“Bee Orchid”: http://xkcd.com/): duas pessoas conversam sobre orquídeas e de como algumas das suas flores se pareciam com abelhas para que acontecesse a polinização. Mas entretanto as abelhas que estas flores mimetizavam extinguiram-se, e a única representação que existe da abelha acontece através da interpretação de uma planta – “the only memory of the bee is a painting by a dying flower”. Lembrei-me desta tira revisitando as pinturas de Dubiner e examinando de perto o deslumbre do todo/o desmembramento da abelha de Júlia Barata: a forma no limite do sonho, blurred, diluída – lá está, in praise of #membranials, dos seus traços criando uma espécie de arqueologia de um momento que não sei bem definir porque se alinharmos na ideia de várias temporalidades, então passado presente futuro deixam de existir as we know them e será preciso inventar novas palavras (que provavelmente já foram inventadas, mas que ainda não chegaram até mim) mas, recuando, o que para mim fica dos seus traços é esta apreensão da outras formas que, como a abelha, podem até já não existir mas das quais existem apenas interpretações miméticas de outras espécies, organismos, entidades. Acelarando intimidades, mudando padrões, celebrando porosidades, much like os seus materiais of choice, Júlia Barata no comando da afectação mais ínfima íntima próxima – deixando pistas para tempos infinitos.
Viveiro, ilustração de Júlia Barata I Galeria ASpaceArco Escuro, 6, Campo das Cebolas, Lisboa I Terça a Sábado 14h - 19h até 16 de Outubro