Everything you touch, you change: o legado dos futuros co-criados pelas mais fantásticas ficções

Pandemia covid-21, ano 2020.

Não muito tempo antes tinha descoberto as teses de Lynn Margulis sobre a endossimbiose, e não muito tempo depois disso comecei a descobrir de verdade a obra de Octavia Butler. Durante o tempo que corria lento, shelter-in-place, fui mergulhando nos universos que estas duas mulheres traziam para mim. Nunca mais parei.

Quando comecei a escrever este texto, tinha a forte sensação de que haveria algo mais a ligar estas duas mulheres do que a sua força e uma necessidade de construir narrativas quase tão intensa quanto a sua necessidade de destruir outras (narrativas). Entre o luto da minha cadela e uma busca voraz de futuro que me levou a mergulhar de cabeça na tradução do texto Positive Obsession/Obsessão Positiva, de Butler, descobri esta ligação. O que se segue é a história desta descoberta.

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Margulis (Lynn, not Juliana), née Lynn Petra Alexander, mãe de 4 filhos com quem colaborava incessantemente (o livro Symbiotic Planet, que escreveu com o seu filho Dorion Sagan, com quem escreveu quase tudo, surgiu na sequência da pergunta colocada pelo seu outro filho, Zachary Margulis, sobre as relações entre a teoria da simbiose e Gaia; também colaborou com o seu neto, Tonio, filho de Dorion, responsável pela música em, pelo menos, um vídeo que usou em apresentações; e nesse mesmo vídeo com Jeremy Sagan, irmão de Dorion – e sim, caso esteja a perguntar-se, são filhos desse Sagan; and yes yes #nepobabies). 

Margulis era uma bióloga extraordinária, que em algum momento da sua vida (circa 1970) conheceu James Lovelock, cientista responsável pela proposta da “hipótese de gaia” com quem se correspondeu extensivamente: Writing Gaia – The Scientific Correspondance Between James Lovelock and Lynn Margulis, é o livro que reúne estas cartas e que foi publicado em 2022. 

Mas a sua groundbreaking opus terá sido a hipótese da endossimbiose em série ou sequencial (SET – serial endosymbiotic theory), cuja proposta completa foi apresentada no seu artigo, publicado “after fifteen or so of assorted rejections”, Origin of Mitosing Cells. A teoria da endossimbiose que propõe: 

‘is a theory of coming together, of merging of cells of different histories and abilities. Before serial endosymbiosis and the establishment of the aerobic nucleated cell, no cell-fusion sex existed. Meiotic sex, like that of the egg fertilize by the sperm, came later. Serial endosymbiosis made our kind of fusion sex possible. Sex, too, is the coming together, the merging of cells of different histories and abilities. In sex the cells that fuse are closely related and the fusion is reversible; in serial endosymbiosis the cells that fuse are only distantly related, and the fusion is permanent.’ (Symbiotic Planet, Against Orthodoxy, p.32.)

A theory of coming together.

Em bom rigor, Margulis não “descobriu” a simbiogénese, e é bastante clara neste sentido, salientando a importância de citar os cientistas e os trabalhos que vieram antes de si, e que de alguma forma abriram caminho para que conseguisse finalmente provar esta teoria. No seu livro Symbiotic Planet vai referindo os nomes, entre outros, de Anton deBary, Ivan Wallin, et al, até chegar a Konstantin Merezhkovsky, que propôs a ideia de simbiogenésis; Margulis também se envolveu directamente na organização e tradução do livro do cientista russo Kozo-Polyansky (1924), Symbiogenesis: a new principle of evolution (ver Lynn Margulis and Boris Kozo-Polyansky – how the Symbiogenisis was translated from Russian). 

Parece, por isso, estranha a insistência de alguns cientistas na ideia de que Margulis não “descobriu” a teoria endossimbiótica, mas antes que outros cientistas já a tinham proposto. No seu artigo “The origin of symbiogenesis: An annotated English translation of Mereschkowsky’s 1910 paper on the theory of two plasma lineages em Biosystems, Kovellik e Martin escrevem

In the course of publishing this paper, two readers asked “What about Lynn Margulis and the origin of mitochondria?” We and others have explained in earlier writings that the priority for the symbiotic origin of mitochondria does not go to Margulis (Sagan 1967) (…) Margulis learned about endosymbiotic theory at the University of Wisconsin in her undergraduate genetics class held by Hans Ris (…) How do we know that she heard about endosymbiosis in that class? We know that because Jonathan Gressel (pers. comm. to WM) at the Weizmann Institute, sat next to Margulis in Hans Ris’ genetics class and told us about it. Margulis popularized endosymbiotic theory but did not rediscover it, she was taught it.

She was taught it. A ênfase é minha, porque acredito que não conseguirei realçar o suficiente como estas ideias de “descoberta”, “primazia”, fazem parte de uma narrativa do indivíduo e do individual – do herói - contra a qual me parece precisamente que o trabalho (e vida?) de Margulis se insurgiram. A própria ideia de que aprender algo é menor, por oposição a uma ideia original que nasce de si, escorrega bem nessa slippery slope narrativa. 

Margulis fala abertamente sobre todo o caminho que percorreu, na sua pesquisa e na academia, sempre que pode, parece-me. Na verdade, Margulis parece sofrer daquilo que Joanna Russ descreve no seu texto How to supress women’s writing, se trocarmos o domínio da escrita pelo domínio da pesquisa científica: ela era cientista, mas

 

Ou seja, há sempre um (ou mais) elementos que são usados para desclassificar o papel - e os trabalhos - das mulheres.

John Feldman, realizador do filme sobre a vida e a obra de Margulis, Symbiotic Earth: How Lynn Margulis rocked the boat and started a scientific revolution, aborda esta questão. Em conversa com Jon Sapp, professor de Biologia e História da Universidade de Toronto, sobre o que fez afinal Lynn Margulis, visto que não “inventou” a simbiogénesis, Sapp tem um comeback magnífico:

She promoted and championed symbiosis as a source of evolutionary innovation, put the idea that we can study cells in an evolutionary context, in a paleo-ecological context. Understood that symbiosis is a primary driver of early evolution, was extremely important. Putting microbes back into biology as life giving forces, look at the diversity of microbes, especially protists. She did a lot.

She did a lot. (Em outro momento do filme, Sapp também se insurge contra a narrativa do herói, de que falava acima, e lança um Stop being heroic! que também me emocionou.)

Margulis propunha uma ideia da evolução em confronto com as ideias neo-darwinistas de que a evolução aconteceria via mutação aleatória dos genes+competição: o debate que aconteceu em Oxford, Homage to Darwin: a debate on evolution, no aniversário dos 150 anos de publicação de On the Origin of Species, está dividido em 2 partes (bom, 3, mas a última parte já é só áudio, sem vídeo, uma espécie de discussão que acontece depois de concluídas as apresentações, e pode assistir-se aqui: parte 1, parte2, parte 3), e reuniu tipo as pessoas mais sagazes que se poderia querer reunir em 2009 numa sala para discutir a origem da vida e o fenómeno avassalador e magnífico que é a capacidade de replicação do ADN. Juntos, o Professor Stephen Bell, on Archaebacterial legacy; o Professor Martin Brasier, on the “fruit fly” of Geology; o Professor Richard Dawkins, on the gene’s-eye view; a Professora Lynn Margulis, on symbiogenesis, numa conversa moderada pelo Professor Dennis Noble, discutiram as coisas mais aborrecidas e mais incríveis sobre a origem da vida. O debate foi extraordinário e ficou conhecido como the battle of Balliol, e não vou mentir, aquela primeira apresentação, mais em câmara lenta, foi uma espécie de viagem no tempo até aquelas tardes de domingo em que assistia aos Jovens Heróis de Shaolin.

Lynn Margulis nasceu em 1938 e morreu na sua casa em Amherst, Massachusets, no final de 2011, uns dias após ter sofrido um AVC. Sentia uma grande afinidade com Emily Dickinson, poeta que em outro momento na história teria sido sua vizinha, e incluía frequentemente os seus poemas nos livros que escrevia (todos os capítulos de Symbiotic Planet abrem com uma citação de Dickinson). Parece ter sido uma criança precoce e sensível, e cresceu bastante segura: a epígrafe do livro Lynn Margulis: The Life and Legacy of a Scientific Maverick é I don’t consider my ideas controversial. I consider them right. (Lynn Margulis interview with Dick Teresi). 

No prólogo de Symbiotic Planet, escreve:

‘This book is about planetary life, planetary evolution, and the ways our views of them are changing. If there is a subtext, it concerns exploration, specifically scientific exploration, and the many quirks and agenda that can nurture or block it. Many circumstances conspire to extinguish scientific discoveries, especially those that cause discomfort about our culture’s sacred norms. As a species, we cling to the familiar, comforting conformities of the mainstream. However, ‘convention’ penetrates more deeply than we tend to admit.’ 

“Familiar, comforting conformities of the mainstream” é código para apontar, ao mesmo tempo que tenta desconstruir, aquelas visões pré-estabelecidas que derivam de hierarquias e da constante necessidade de reassegurar que tudo se encontra no seu lugar, incluindo as pessoas. Saber o lugar de algo ou de alguém é um dos mecanismos mais eficazes para uma certa manutenção da ordem estabelecida.

Contra a qual Margulis se revoltou mais ou menos sempre na sua vida. O seu artigo sobre a origem das células eucariontes, On the origin of mitosing cells (A origem das células eucarióticas), foi escrito em 1966 e recusado 15+ vezes por diferentes revistas científicas. Quando, mais tarde, conseguiu aproveitar a licença de maternidade para expandir o artigo e transformá-lo em livro, num movimento que caracteriza “as mulheres modernas como ‘visionárias periféricas’” (termo marcado pela sua amiga Marie Catherine Bateson a propósito de uma alegada natureza octópode da mulher), precisou de esperar cerca de um ano pela resposta e eventual publicação do manuscrito. 

Durante a sua vida, muitas foram as rejeições, algumas mesmo duras, que diziam claramente que a sua pesquisa tinha zero valor. Mas Margulis continou. Porque, como diz a sua amiga Louis Brynes no filme de que falo acima, she was fascinated with the notion of the thought collective and it was basically that you can get stuck in a current thought collective and not be able to escape it. Continua Brynes, dizendo que isto seria o equivalente ao que Whitehead chama de trained incapacities: you don’t see things because you are taught not to see them. Assim de longe, parece-me que ela não se deixou cair na armadilha desse pensamento comum que serve uma agenda. 

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Octavia Butler, Junie como era conhecida na família (diminutivo de Junior porque partilhava o nome com a mãe, Octavia Margaret Butler) ou Estelle para os amigos (o seu nome do meio), nasceu na California em 1947. Aclamada como the Grand Dame of Science Fiction (Octavia E. Butler’s Posthuman(ist) Imagination), Butler (Octavia, not Judith) foi uma criança tímida que sempre amou muito ler. E acredito que, como Margulis, foi aprendendo a ver as coisas que mais ninguém via, as coisas que eram mais ou menos invisíveis para o colectivo.

Em The Birth of a Writer, um artigo que escreveu para a revista Essence cujo título nunca lhe agradou (o título escolhido por Butler tinha sido, desde o início, Positive Obsession), dá conta de como se veio a constituir como escritora. Apesar de apontar como lhe custou escrever este texto, porque a sua força vem da ficção e não da vida pessoal, aborrecida e preenchida com pouco mais do que leitura e escrita (#goals), Butler vai relatando o seu percurso, entre a timidez e a obsessão em tornar-se escritora. Não foi fácil, certamente, para uma pessoa que queria passar despercebida, ser a pessoa negra mais alta da turma. Tudo o que implicava falar em público (Butler foi mais tarde diagnosticada com dislexia) era difícil para si. Um dia, em conversa com a tia, disse que o seu trabalho seria escrever:

“Writing will be my job,” I said. 

“You can write any time. It’s a nice hobby. But you’ll have to earn a living.” 

“As a writer.”
“Don’t be silly.”
“I mean it.”
“Honey … Negroes can’t be writers.”
“Why not?”
“They just can’t.”
“Yes, they can, too!”(Positive Obsession)

And they could, and she did it. Butler continuou firme na sua intenção. (Ao mesmo tempo, compreendeu que, na verdade, ainda não tinha lido nenhum livro de uma autora negra, então talvez a tia não estivesse assim tão longe da verdade).

Mais tarde, num dos workshops de escrita que frequentou, ouviu o professor dizer que a menos que fosse absolutamente necessário para a história, não deveriam ser introduzidas personagens negras na trama, porque se tornavam uma distracção: 

‘Há catorze anos atrás, durante o meu primeiro ano na universidade, sentada numa aula de escrita criativa, ouvi o professor, um homem de idade, dizer a outro estudante para não usar personagens negras nas suas histórias, excepto se a cor dessas personagens fosse de algum modo essencial para o enredo. A presença de negros, entendia o meu professor, alterava o ponto fulcral de uma história, desviava a atenção do assunto pretendido.’ (Octavia Butler, “As raças perdidas da ficção científica”, em Vita Nova – Fórum do Futuro)

Uma outra professora perguntou-lhe um dia, exasperada, “Can’t you write anything normal?” (Positive Obsession). Ainda assim, Butler era a rainha do journaling e da manifestação, e nos diários que mantinha escrevia longas listas dos objetivos que sabia que queria alcançar, o tempo que demoraria – a escrita era a forma, não apenas de jogar os seus desejos para o Universo, mas de se inscrever e de criar a pessoa que gostaria de ser: forte, ousada, outspoken

Durante muito tempo trabalhou em empregos mais ou menos mecânicos (no sentido em que não eram intelectualizados) e escrevia. Tinha 23 anos quando vendeu os seus primeiros 2 contos, e durante a sua vida escreveu vários contos e mais de dez romances. Os meus livros preferidos são os das parábolas, Parable of the Sower, Parable of the Talent, e também Kindred. Pode ser porque foram os primeiros que li - mas acho que não será bem por isso. 

Nos livros das parábolas, e em certa medida em Kindred, Butler trabalha com as questões da hiper-empatia: a personagem principal das parábolas, Lauren Olamina, é uma mulher que sofre da condição de hiper-empatia – digo “sofre” porque ela realmente sofre com aquilo, na medida em que sente tudo aquilo que as pessoas à sua volta sentem, de uma forma avassaladora, e em Kindred, apesar da trama assentar nas possibilidades de trânsito do corpo da protagonista, Dana, a história - e a sua sobrevivência - dependem da relação que se vai estabelecendo entre ela e Rufus, o seu antepassado branco que precisa de salvar uma e outra vez. Butler faz magia com as palavras e consegue fazer-nos sentir todo o entitlement e a maldade encerrada em Rufus, quando ele responde, para justificar um acto violentíssimo (uma violação), but I want to.

Butler escreve para se inscrever na realidade, para escrever-se no mundo em que gostaria de habitar, e escreve também para pensar que mundo e que mecanismos seriam possíveis de imaginar e inventar para que os humanos (alguns deles) tivessem vidas menos agressivas. É a persistência que faz de Butler a escritora que é, e é essa a mensagem que Butler tenta deixar para as pessoas negras, sobretudo mulheres, que como ela demora(ra)m a encontrar o seu lugar no mundo. Numa entrevista a Charles H. Rowell, An Interview with Octavia E. Butler, Butler diz que “what I mean, I guess, is that I had to learn my craft. And I mean I had to learn it, bit by bit, by doing things wrong, and by collecting years and years of rejection slips. But I kept writting because I liked doing it”. 

A sua escrita é por vezes (sempre?) guiada pela questão de para que serve a ficção científica para as pessoas negras? Em Positive Obsession, Butler deixa a questão 

What good is science fiction’s thinking about the present, the future, and the past? What good is its tendency to warn or to consider alternative ways of thinking and doing? What good is its examination of the possible effects of science and technology, or social organization and political direction? 

Porque na verdade estes outros mundos que Butler apresenta servem também para ir questionando uma outra problemática que é central na obra – e na vida – de Butler: a questão das hierarquias. Em The Last Angel of History, um filme realizado por John Akomfra, Butler surge, grandiosa, dizendo que, numa das suas histórias 

‘fiz com que contassem ao meu personagem que os seres humanos tinham duas características que não funcionavam bem juntas: um, eram inteligentes, e isso era bom, não era um problema; e dois, eram hierárquicos, e infelizmente as tendências hierárquicas eram mais antigas, e às vezes a inteligência estava ao serviço do comportamento hierárquico.’

As hierarquias e a manutenção de um certo sentido de ordem – e de narrativa – eram uma grande parte do trabalho de Butler. Em Butler como em Margulis, ambas pareciam ter a noção do poder das palavras na criação das (grandes) narrativas e, por sua vez, do poder que essas grandes narrativas tinham sobre os indivíduos. Compreendiam, creio, a importância e os perigos das agendas – e políticas – contidas nestas narrativas e nas metáforas.

Butler foi a primeira escritora de ficção científica a ganhar a MacArthur Fellowship, aos 48 anos. Morreu alguns anos depois, em 2006, precocemente, muito provavelmente vítima dos preconceitos contra os quais lutou a vida toda: acredita-se que o acidente que lhe tirou a vida (Butler caiu da escada e bateu com a cabeça) se deveu a um AVC que sofreu, e que poderia talvez ter sido diagnosticado se as queixas e sintomas que andava a apresentar não tivessem sido descartadas pelos médicos.

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Até há uns meses atrás, estas duas pessoas mantinham uma relação que, sem que conseguisse dizer em voz alta, me tinha a mim como fio condutor: na minha cabeça, estas duas mulheres eram amigas, eram amigas uma da outra mas sobretudo eram minhas amigas, porque ambas entendiam a importância das suas presenças na minha vida, a importância de me educar diariamente, sobre como transformar uma obsessão numa coisa positiva, sobre como viver em colaboração, sobre viagens no tempo e simultaneidade, sobre como incorporar a visão (e os desenhos) dos filhos na produção intelectual, sobre o poder e a presença do corpo, sobre a magia da mudança, sobre como mergulhar num lago viscoso e verde e não se deixar assustar, sobre aquela vertigem que sentimos quando algo mesmo bom – ou mesmo mau – está prestes a acontecer. Era em mim que elas se encontravam, eu era o último 1 da equação 1+1=1, eu era a única pessoa que sabia que ambas praticavam essa ciência da “obsessão positiva” com resultados muito incríveis. Que estas mulheres tenham escolhido acreditar em si em vez de acreditarem no que vozes muito, muito altas, fora - e provavelmente dentro, at times - das suas cabeças diziam, é algo que nunca pára de me espantar. Durante algum tempo, quando numa encruzilhada, dava por mim a pensar What Would Lynn Margulis/Octavia Butler Do. A clareza e a força dos seus pensamentos, o seu sentido de justiça, a sua vontade de construir mundos melhores, os seus sorrisos (um mais aberto, outro mais tímido, mas sorrisos ainda assim), tudo isto conspirava para um sentido de estar em si e no mundo que não encontrava em mais lugar nenhum. E isso não é pouca coisa.

Achava que só eu conseguia alcançar o tamanho de todos os universos e de todos os emaranhados que estas duas pessoas incríveis partilhavam. Mal sabia eu que estava prestes a tropeçar num excelente profiler da Vulture chamado EM Yung que mudaria a minha vida. 

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No momento em que escrevo estas linhas, encontro-me a trabalhar numa biblioteca perto de casa. A biblioteca é linda, enorme e arrumada: a disposição das cadeiras, das mesas, o silêncio, a forma como os carrinhos vão passando para que os livros possam ser distribuídos, tudo isto traduz uma ordem que uma cabeça bagunçada e dispersa como a minha aprecia. Aqui tudo tem um lugar – e um tempo, não acontece tudo em simultâneo, como o caos em que às vezes organiza os meus pensamentos e que eu tento incorporar na minha vida (e na handle do IG). Gosto de pensar que as duas, Margulis e Butler, apreciariam estar aqui, neste lugar sublime, ainda que talvez não quisessem as duas ocupar exactamente a mesma posição: Butler provavelmente escolheria uma das mesas mais escondidas, talvez atrás, a mesma que eu escolhi há alguns anos para assistir ao Quiet Volume de Tim Etchells&Ant Hampton; Margulis talvez nem parasse na sala de leitura e avançasse para o exterior, de onde se vê um pequeno lago que tem patos, e talvez até pulasse a cerquinha da varanda directamente para a relva, e com aquele canivete que levava consigo, cortasse um pedaço de terra lamacenta que depois levaria para o laboratório para analisar. Aliás, e voltando novamente aquele filme sobre si, uma das suas estudantes fala de um sinal que havia num dos laboratórios em que trabalhavam, onde se podia ler Study nature not books, e outro dos seus estudantes conclui que, para Margulis, o anúncio talvez devesse dizer Study nature AND books #goals.

Naquele dia, porém, não estava na biblioteca e sim na minha casa, não estava a escrever e sim a ler: sobre aquilo a que vim a chamar de amazing graze, ou de como a Octavia Butler também fazia parte daquele grupo de pessoas espalhadas que pratica: 

‘what she called “grazing,” which in practice meant having any number of books open around the house and perusing whatever might be of interest to her: environmental science, anthropology, microbiology, Black history, political studies. Lately, she had been taken by the Gaia hypothesis, an idea tendered by the scientists James Lovelock and Lynn Margulis that Earth is like a human body, a synergistic, self-regulating whole that we are a part of despite our behavior to the contrary. What if she were to graft this idea onto space-colonization narratives? Wouldn’t a planet reject humans like a body rejecting an organ transplant? What if, instead of enacting the same hostile-native scenario, interstellar colonists were afflicted by the environment and tiny bacteria? Humans would have to learn how to synergize and work with the planet, rather than carry on with their smash-and-grab attitude. This could be a series exploring different worlds and their peculiar challenges.’ (E.M. Yung, The Spectacular Life of Octavia Butler, Vulture)

Era a única menção a L. Margulis no artigo, e ainda assim fiquei tão feliz por alguém ter feito esta relação, e lembrei-me daquela sensação que experimentamos quando somos crianças e descobrimos que afinal há mais alguém no mundo que se sente como nós ou gosta de alguma coisa como nós e de repente lá está um livro, um filme, uma sensação qualquer de pertencimento. 

Senti que precisava de conhecer o E. M. Yung: estava escrito que tínhamos de ser amigos. 

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Não conheci o E.M. Yung, não ficámos amigos. Ainda.

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O artigo de E.M. Yung era sobre a vida espectacular de Octavia Butler, criando conexões com mundos fora dela, a partir dela. Para mim, funcionou como um portal para outras dimensões da vida de Butler, incluindo onde estava a ciência na sua ficção científica

Apesar de tentar que a sua obra escape a leituras sociológicas sobre “o mundo”, a verdade é que Butler demonstra um impulso antropológico de tentar perceber as linhas e o limite do que é ser humano e da humanidade, o que levou alguns investigadores a salientarem: 

‘the critical relevance of Butler’s engagement with issues such as race and colonialism, power and agency, consent and oppression, as well as her representation of gender difference, queerness and queer desire. More recently, critics have started to pay attention to Butler’s more general concern with the definition of the human. Acknowledging Butler as one of her “theorists for cyborgs”, Donna Haraway argues that “Butler has been consumed with an interrogation into the boundaries of what counts as human and into the limits of the concept”. Indeed, most of Butler’s works explore the limits between self/other, subject/object, and nature/culture, emphasizing hybridity and its implications’. (Octavia E. Butler’s Post-Human(ist) Imagination)

Por outro lado, a própria proposta de Margulis da individualidade através da incorporação e de simbiogénese offers a strong challenge to writers responding to biological theories: beyond reshaping neo-Darwinian understandings of evolution, Margulis’ s ideas also call into question identity itself. Rather than imagining myself as an I, Margulis’s research suggests that I am always we” (Bollinger, Symbiogenesis, Selfhood, and Science Fiction). 

Esta reestruturação da identidade, e a própria ideia da pluralidade identitária, da existência biológica de vários selves, uma identidade porosa e fluída, encontra-se presente na obra de Butler e, em bom rigor, na obra de muitos escritores de sci-fi; várias formas de cooperação/colaboração acontecem, seguindo diversos modelos, entre animais humanos e animais não-humanos, e também entre humanos e não-humanos, muitas vezes balizadas por esses imperativos hierárquicos de quem venceria nestas lutas de carácter neo-darwinista, e em última instância, o que seria essa essência do ser humano. Na obra de Butler existem vários exemplos de relações interespécies, de hibridismo e de simbiontes, relações de simbiose mutualista, parasitismo, e até vampirismo, que salientam esta multiplicidade de recombinação identitária, e também apontam para uma tentativa de tentar desprogramar categorias hierárquicas características que Butler acredita serem inerentes ao humano: no primeiro livro da Xenogenesis Series, Dawn, Lilith, a protagonista, acredita que:

‘inter-species breeding with the Oankali means “Finish[ing] what the war began”,[16] as humans will no longer exist as such after one generation. Indeed, when she discovers that she has been made pregnant with a baby that will have four biological parents – two human, two Oankali – Lilith reacts with horror at the prospect that “it won’t be human […]. It will be a thing. A monster”.[17] For the Oankali, however, miscegenation offers hope to both species: “Our children will be better than either of us […]. We will moderate your hierarchical problems and you will lessen our physical limitations. Our children won’t destroy themselves in a war, and if they need to regrow a limb or to change themselves in some other way they’ll be able to do it”, to which Lilith replies: “But they won’t be human […]. That’s what matters”’.[18] 

Aqui, a questão da identidade enquanto nós, como defendia Margulis, oponha-se a uma ideia purista do que é ser humano: a multiplicidade de selves seria o equivalente a um monstro.

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Mergulhei num sem número de artigos sobre ficção científica, artigos sobre Margulis e Butler, artigos sobre ambas, etc, apenas para chegar à conclusão de que não preciso de chegar a um legado final e definitivo sobre ambas. Para conseguir ligar com a finitude, decidi que este fim não seria um fim, mas sim um intervalo, algo que deixaria pontas infinitas que posso voltar a desenrolar. Esse desenrolamento chama-se Ficções Para Futuros ou O Futuro das Ficções, e será todo um trabalho desenvolvido em 4 partes ao longo dos próximos meses, a publicar no BUALA.

O que fica do que resta, como na dança, além do poder assustador que estas mulheres têm sobre mim e sobre elas mesmas, é a sua capacidade de questionar a história única, os sítios e posições estabelecidas e nos quais somos muitas vezes encurraladas. Margulis, mulher, na ciência, inicialmente casada com aquele portento que era (Carl) Sagan; Butler, mulher, negra, num mundo que estava (está) construído para não ter lugar para uma pessoa assim, tão mais alta e altiva, mulher, negra. De fora escolho deixar, não sei bem se propositadamente ou não, todas as questões que ainda poderia abordar sobre amor, maternidade, sexo e biologia, de uma forma mais íntima: to be continued.

Por agora termino com esta sensação feliz de poder partilhar tanto dos universos e histórias que estas mulheres trouxeram para mim. Gostaria muito que ambas soubessem que, no que me diz respeito, a máxima das parábolas de Butler 100% se aplica a mim, no que a elas concerne: Everything you touch, you change. O que gostaria de salientar não é a sua perseverança, o que conseguiram face à adversidade, é tudo o que construíram fora dela: o desvio que operaram, e que foi tão bem arquitectado que se tornou num caminho inteiro, uma viagem, sem necessidade de validação (bom, alguma validação, because peer review and shit.)

Este texto é também dedicado a todas as mulheres que estão a crescer aprendendo a não aceitar como garantidas as respostas que nos são dadas. Que estão a aprender a responder a tudo, como o meu filho mais velho, Sim, mas. Que haja sempre um mas, e que esse mas seja o resultado das nossas reflexões sobre o estado do mundo. Let it rip!

por Patrícia Azevedo da Silva
Corpo | 27 Junho 2024 | EM Yung, ficção científica, ficções Para Futuros, Gaia, Lynn Margulis, Octavia Butler, personagens negras, simbiose, Symbiotic Planet