Fogo Amigo - parte 1

“I do believe her, though I know she lies” (Shakespeare, Sonet 138).

1. A 3 de maio de 2022, conto aos meus filhos que foram soltos dois linces ibéricos em Alcoutim, no Algarve, macho e fêmea, Salão e Sidra. Bebés, o macho hesitou quando foi solto, a fêmea correu logo que levantaram a porta da jaula. Explico aos meus filhos, por palavras minhas, que “Outro dos factores que aumentam a sobrevivência desta espécie na vida selvagem é o contacto quase nulo com humanos nos centros de treino. São mesmo treinados para ter medo dos humanos, porque tal pode constituir um risco quando estão à solta.”. O mais pequeno não percebe bem, o mais velho olha para mim, estupefacto. “Porque é que é bom ter medo dos humanos?”, pergunta, e eu respondo, rápida, “Porque os humanos têm um registo de não serem a espécie mais simpática”, e ele, “Mas mãe, os humanos não somos nós? Não era mais fácil ensinar os humanos a serem mais gentis do que ensinar os animais a terem medo de nós?” Engulo o sorriso que vinha com a percepção de que esta ideia era genial. 

2. Este texto é sobre amizade. E sobre mentiras. E sobre tudo o que acontece nesse intervalo. Como as mentiras que se contam a crianças.

3. Leio, com muita frequência, pessoas adultas a queixarem-se da dificuldade de fazerem amigos enquanto pessoas adultas. “Lembras-te de como era fácil fazer amigos na praia, durante o verão?,” perguntam-me, a convocar uma espécie de magia mítica que só pertence ao reino da infância. A minha infância foi uma merda, por isso nunca me encontrarão a olhar para trás com saudades de qualquer coisa que só existia ali, e que ali foi mais linda do que em qualquer outro lugar. Pelo contrário. Tudo na minha vida só melhorou a partir da infância. A vida só foi ficando melhor. Mesmo agora, enquanto vivo em conjunto a infância dos meus filhos, vejo-os a serem crianças numa honestidade e generosidade que espero que levem com eles para a vida, e ainda assim a infância deles só me faz pensar no futuro. Um futuro brilhante, afectuoso, leve, feliz. Um futuro cheio de seres humanos que, como eles, sejam íntegros, gentis, justos. Nada para o passado, tudo para voltado para a frente. E que nunca esqueçamos as lições de um tal Tony Soprano, 6.15: “’Remember when’ is the lowest form of conversation”.



4. O único passado que gosto de recordar é o que aconteceu há minutos, aquele que ainda faz sentir o seu lastro, que ainda se sente na pele como o sal depois de darmos um mergulho. Nunca percebi o fascínio das pessoas pela memória. Tenho medo, sim, de sofrer de uma doença neurológica degenerativa, mas isso é pelo agora, não pelo que foi. Não poder usar das minhas faculdades, não poder escrever, não conseguir pensar: esse é o terror. Não recordar não me parece assim péssimo. Sei das primeiras noticias da Grande Epidemia que vivemos não há muito tempo, dos sintomas que podem durar para sempre, e penso: de qualquer modo, o que há de tão incrível nas recordações? Como nos episódios do Station Eleven, em que os adultos pré-pandemia insistem na importância dos artefactos para o museu, e os jovens pós-pandemia respondem apressados, sim, mas quem quer saber disso?

 
5. A memória, a minha, sempre foi objecto de apreciação pública. Cresci com este dom de me lembrar de tudo, tudo, das coisas mais pequeninas. Sempre tive excelentes notas na escola e durante muito tempo, quando ainda nos ensinavam mais a decorar e menos a articular, algumas pessoas atribuíam isso à minha memória. Eu não precisava de estudar, porque tinha excelente memória. Era quase injusto para as outras crianças, porque era uma espécie de superpoder que batia qualquer hipótese de competição. Rapidamente essa dádiva tornou-se uma maldição, uma coisa sobre a qual tinha que ser apologética. Lembro-me de muitas vezes dizer a medo as notas que tinha tido, com vergonha, porque segundo esta linha de raciocínio todas as crianças do mundo eram mais espertas do que eu – só que não tinham este superpoder. 

Quando chegou a altura de irmos para a faculdade, era preciso fazer as provas específicas, e lembro-me das amigas que estudavam sozinhas, em casa, lembro-me das que se organizavam no café local, enchendo cadernos de notas onde escreviam com ansiedade, seguindo o instinto de quais seriam as matérias que as provas cobririam. Pela minha parte, interessavam-me pouco estas provas. Este desinteresse tinha que ver, por um lado, com o facto de não ter grande ideia de qual caminho seguiria depois, caso as provas corressem bem. À medida que vamos crescendo, vão-se afunilando os nossos interesses – pelo menos, é o que dizem – num gesto naturalizado de quem vai deixando várias trilhas para trás apenas para se focar num caminho único, coisa que nunca foi fácil para mim, dispersa e a disparar em mil direcções diferentes. 

Por outro, a minha primeira relação de amor-ish estava pelas ruas da amargura, com um namorado cada vez mais distante, que eu insistia em manter. Em 1995, alguns dias antes das provas, acontecia na Gare Marítima de Alcântara a primeira edição do festival de música SuperBock SuperRock. Eu seguia com atenção as reportagens que passavam na televisão, porque sabia que o meu namorado estaria presente. Foi numa dessas reportagens que o vi com todos os amigos e amigas, que reconheci. Menos uma. À segunda passagem da câmara, esta desconhecida já não estava apenas na mesma formação do que os amigos do meu namorado, agora os seus corpos já quase não se distinguiam, o dele e o dela, ambos vestidos de negro, calças justas t-shirt preta, cabelos muito lisos e muito compridos, os dois presos pelas línguas num beijo que parecia não ter fim. A ideia das provas, do futuro, do que fazer da vida, desapareceu do meu horizonte, seguindo uma longa tradição da minha curta existência até então de procurar afecto e validação externa. Só queria curar o meu coração partido. Fui fazer as provas, e saquei 84% a História. Algum tempo depois, provas terminadas, fui acampar com amigos para Vila Nova de Mil Fontes, onde curei o meu coração partido, apesar do meu agora ex-namorado ter aparecido no parque de campismo com a nova namorada, linda, mais nova, porque achou que não haveria problema em não cancelar os nossos planos, apenas mudá-los ligeiramente para acomodar esta nova personagem.

Monte Abrão, QueluzMonte Abrão, Queluz

Até hoje lembro-me das mães de algumas amigas insistirem na narrativa de que a minha memória tinha novamente salvo o dia (as provas). Nem todas entraram na faculdade que escolheram, nem todas entraram no curso que escolheram. Foi apenas alguns anos depois, durante um jantar, que tive coragem de responder a uma delas, uma das mães, quando parecia justificar as notas menos boas da filha insistindo na narrativa de que a única coisa que eu tinha a meu favor, em termos intelectuais, era a minha memória. Consegui olhá-la nos olhos e, sem tremer a voz, dizer-lhe que já há algum tempo que os nossos exames não eram baseados na memória, naquela universidade descontraída demais em que podíamos fazer as frequências no bar, levar as perguntas para casa e preparar as respostas, entregar recensões de livros ou pequenos ensaios que serviam de avaliação. A memória tinha finalmente dado lugar à articulação, à relação entre assuntos, à perspicácia, ao enquadramento teórico, à construção de um bom estado da arte, aos novos argumentos. Já não era refém desse superpoder. E continuava a ter excelentes notas: how do you like them apples? (Ainda assim, seria preciso passarem mais anos para conseguir, com toda a certeza, não esconder que sabia o que sabia.) (Percebi mais tarde que, durante esta conversa e para que a voz não vacilasse, tinha cravado as unhas na perna tanto que tinham deixado marcas. Claro, não tão grandes como aquele constante e prolongado desmerecimento.)

 

 6. A minha terapeuta diz-me muitas vezes que eu encontro justificações para todos os maus comportamentos das pessoas de quem gosto. Que tenho alguma dificuldade em ver a maldade da espécie humana na vida quotidiana. Que é um dos muitos mecanismos de sobrevivência que fui desenvolvendo, pensar que todas as pessoas são boas ou, pelo menos, desculpá-las com alguma facilidade. Digo-lhe que consigo reconhecer dois momentos na minha vida: aquele em que confiava em toda a gente e aquele em que, adulta e quase órfã, recém-saída de casa, passei a desconfiar de todos. Tinha medo e ataques de pânico constantes, não conseguia lidar com nuances e duplos sentidos, nem a agressividade dos comentários disfarçados de piadas imbecis, logo eu, a rainha da ironia. Foi muito dura essa passagem, e posso dizer, com quase toda a certeza, que só cheguei a alguma paz no rescaldo recente da maternidade e da sagração da família que construí para mim.

 

7. Em Queer Time: The Alternative to “Adulting”, leio que a palavra do ano de 2015 foi “adulting”, que significa o processo e os marcadores que assinalam a chegada à vida adulta, baseados numa certa ideia de heteronormatividade (propulsionados também pelo capitalismo) que se encontra em mudança. O texto cita o trabalho de Jack Halberstam, académico queer, que argumenta que “queer uses of time and space develop in opposition to the institutions of family, heterosexuality, and reproduction”. “Adultecer”, seria qualquer coisa deste género em português. 
O meu adultecer foi uma transição triste: de um lado a rapariga punk que lutava para nunca ser igual (nem a si, nem aos outros), de outro lado a rapariga frágil e aflita que só queria ser acolhida. Já não confrontativa mas em conformidade. Como fazer isto sem ser cúmplice de tudo aquilo contra o que antes me tinha revoltado? Constituí-me num processo contra as instituições e contra um tempo heterossexual, apenas para perceber que o meu ódio à família só seria equiparado à minha necessidade absurda de família. Estudar, trabalhar, viajar, fazer amigas: tudo isto fazia parte de um projecto maior e mais abrangente que era ser mãe. Ser Mãe seria o apogeu desta minha viagem que, mal sabia, estava a começar.    


(…)

por Patrícia Azevedo da Silva
Vou lá visitar | 14 Janeiro 2025 | adultez, amizade, infância, maternidade, memória