Somos todos ilegais
De Melila à Polónia, de Chipre às Canárias, milhares de pessoas tentam quotidianamente abandonar os seus locais de origem e atingir o continente europeu em busca de melhores condições de vida, deixando para trás os mais variados cenários – guerras, incêndios, secas, inundações, regimes repressivos, desemprego maciço, salários de miséria, fundamentalismos vários – e confrontando-se, em todo o lado, com a mesma estratégia repressiva, as mesmas barreiras e perseguições, o mesmo racismo e a mesma violência.
Poder-se-ia pensar que estas pessoas que atravessam oceanos, desertos e montanhas, territórios hostis e países estranhos, seriam vítimas de mal entendidos ou de excessos policiais, mas não é esse o caso. As e os imigrantes que procuram atingir a Europa confrontam-se com práticas, objectivos e instrumentos escolhidos no seio das instituições europeias e aprovados por indivíduos eleitos por cidadãos europeus. Resumindo, confrontam-se com dispositivos de violência desumana e com uma repressão que nos habituámos a associar a estados ditatoriais, mas tudo isto foi decidido «democraticamente». Chama-se «Frontex» e é o conjunto dos dispositivos de controlo dos movimentos migratórios para a Europa. Inclui os barcos de guerra que patrulham o litoral, as vedações em Melila e Ceuta, os centros de detenção espalhados por toda a Europa, as viagens de deportação a bordo de aviões de companhias como a Ibéria e a Lufthansa. Mas também as perseguições aos imigrantes por todo o continente - desde os que vão buscar os filhos à escola aos que são baleados pela polícia nos subúrbios das grandes metrópoles-, as rusgas do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e a imposição de testes de ADN para efeitos de reunificação familiar. Inclui já, também e em crescendo, as relações diplomáticas com os Estados vizinhos da UE, para que sejam estes a assumir os aspectos mais odiosos da repressão sobre os imigrantes, com a multiplicação de centros de detenção no Magrebe e a prática de genocídio em curso, em Marrocos, nos últimos anos.
Um controlo dos movimentos migratórios desta amplitude nunca poderia ser efectuado por métodos meramente legais e institucionais, pelo que a repressão do Estado se cruza aqui com a tolerância, quando não cooperação mais ou menos subterrânea, relativamente ao crime organizado, de maneira a garantir que os imigrantes que passam pelas malhas apertadas deste controlo permanecem apesar de tudo invisíveis nos países onde se fixam, ilegais e dependentes, sempre receosos da deportação ou de represálias sobre as suas famílias, e obedientes. A propaganda xenófoba da extrema-direita, o racismo mais ou menos subtil das instituições (a começar pela escola e a acabar nas autarquias) e o sensacionalismo dos media encarregam-se do resto - dão o tom e orientam as mentalidades no sentido de legitimar todo o tipo de medidas repressivas sobre os imigrantes.
Tudo isto que vai ocorrendo na Europa e nos seus confins merece, sem qualquer exagero, a classificação de uma guerra em curso. Uma guerra em que o inimigo é permanentemente construído e caracterizado enquanto possível ameaça à paz social, elemento de perturbação, dotado de uma irracionalidade que o distingue dos cidadãos europeus. Uma guerra em que o inimigo é o estrangeiro no qual não nos reconhecemos, cuja diferença permite construir uma identidade que nos inclui e que o exclui, até ao momento em que o encaramos como uma coisa e nos tornamos incapazes de o ver enquanto uma pessoa.
Tudo isto é tão antigo quanto a própria ideia de «fronteira». Os gregos chamavam «bárbaros» a todos aqueles que não partilhavam a sua língua e os seus costumes. Os Romanos utilizaram o termo para designar todos os povos que se situavam para lá das fronteiras («Limes» - o limite) do seu império e que não aceitavam a sua soberania. Nos seus mapas de África, o que ficava para lá daquilo que dominavam era designado com a expressão «Hic sunt leones», um território selvagem cuja soberania pertencia às feras. Os imperadores chineses mandaram erguer uma enorme muralha para travar as invasões dos povos nómadas da Sibéria e Mongólia. Mais tarde, os reis portugueses e espanhóis dividiram o mundo ao meio com uma linha imaginária que deveria ser a fronteira entre os respectivos domínios coloniais. Tudo isto antes de as potências europeias se terem sentado à mesa em Berlim, no final do Século XIX, para traçar a régua e esquadro, à medida das suas conveniências e com os resultados que se conhecem, as fronteiras das suas colónias em África. Povos e comunidades foram agrupados ou separados consoante a viabilidade de meios de comunicação ou a existência de determinados recursos naturais, a conquista militar ou as vias de comércio – em todos os casos em função da colonização em curso e dos interesses dos colonizadores. E em todos estes casos a «fronteira» foi sempre, em simultâneo, uma linha traçada num papel, um efectivo poder militar e repressivo, um discurso de legitimação da violência baseado na superioridade dos colonizadores sobre os colonizados, uma permanente construção de identidades colectivas capazes de suportar relações sociais profundamente injustas.
Os antecedentes históricos ilustram a natureza da «fronteira», mas são insuficientes para explicar os processos em curso. Pela sua dimensão, o fenómeno migratório actual assume aspectos novos e até aqui desconhecidos. Por outro lado, as técnicas de controlo, condicionamento e repressão estão mais sofisticadas do que alguma vez acontecera, dando à «fronteira» uma materialidade que ela nunca havia tido. Essa materialidade parece incontornável, o seu braço tão longo quanto for necessário, o seu olhar capaz de tudo abarcar, a sua legimidade inquestionável.
Talvez por isso os discursos sobre imigração que procuram combater a xenofobia e o racismo tendem a incorporar a linguagem do adversário e a aceitar as fronteiras como coisas más mas necessárias. Falam de direitos a negociar, de integrações a promover, de excessos a corrigir. Da necessidade que a «Europa» tem de imigrantes para «fazer os trabalhos que os europeus já não querem fazer» e para «equilibrar a balança demográfica». De respeito pela sua «identidade e diferença». Da necessidade de uma «política de imigração», capaz de associar a razão de estado à solidariedade e respeito para com os imigrantes. Todos estes discursos de pacificação contrastam, de forma cada vez mais insuportável, com a realidade de uma guerra em curso contra os imigrantes. Remetem cada luta para uma posição defensiva e de expectativa, na qual se procura reivindicar direitos, apelando aos governos para a necessidade e conveniência de introduzir um pouco de «espírito cristão» no tratamento dado aos imigrantes.
Aquilo que a evolução dos dispositivos repressivos agrupados sob a designação de «fronteira» tem vindo a demonstrar é precisamente um amplo consenso das forças políticas na União Europeia relativamente à necessidade de controlar o fluxo migratório e ilegalizar os movimentos da esmagadora maioria das pessoas que procura entrar no continente. A «fronteira» é o instrumento que lhes permite regular o fluxo consoante as necessidades de mão-de-obra das empresas e serviços, mas também o argumento que permite ampliar os poderes policiais e multiplicar os «estados de excepção», criando zonas onde a legalidade é suspensa e as relações de força plenamente assumidas. A «guerra ao terrorismo», com a multiplicação de possíveis «ameaças à segurança interna» e uma exploração científica do medo e da xenofobia contra os muçulmanos, veio reforçar essa evolução e caucionar a militarização da fronteira a Sul, transformando o Mediterrâneo num cemitério ondulante.
Mas com o reforço das fronteiras e dos poderes do Estado para ingerir nas vidas das pessoas, é toda a sociedade que se militariza. A «fronteira» não é apenas o limite do território nacional, mas também a lógica disciplinar que opera no seu interior. A própria existência de uma polícia e de uma burocracia especiais para lidar com os «estrangeiros» é o desenvolvimento lógico da «fronteira», a banalização da separação, no interior de cada país, entre cidadãos e excluídos da cidadania, da concessão de direitos diferentes consoante a proveniência, de um «apartheid» cuja natureza se torna inteiramente explícita com a negação de nacionalidade aos filhos dos imigrantes que nasceram já no país «de acolhimento». A «fronteira» é todo um programa e o seu funcionamento percorre e investe o conjunto das relações sociais. Sem ela nada se compreende acerca da natureza do racismo, da xenofobia, da repressão policial, da natureza do Estado.
Neste contexto, o combate contra este processo não se pode contentar em denunciar este ou aquele abuso, em reivindicar este ou aquele direito, em defender este ou aquele grupo de imigrantes. É necessário rejeitar a lógica que está no âmago da «fronteira»: a separação dos indivíduos segundo a soberania dos Estados. Combater a opressão dos imigrantes implica ter presente que essa separação é desejada e constantemente construída, através de um programa político de vasto alcance, partilhado pelo conjunto das elites políticas e económicas à escala mundial.
Promover, em sentido inverso, a comunicação e cooperação entre aqueles que as fronteiras separam implica rejeitar a posição defensiva de quem reivindica e assumir a posição ofensiva de quem constrói colectivamente um percurso próprio, impondo a sua existência e a sua presença, independentemente das lógicas institucionais. Desarmar colectivamente o aparelho repressivo do Estado, desmontar a legitimidade da sua actuação, disputar o espaço público, tomar as ruas e tornar visível aquilo que a «fronteira» pretende manter obscuro é o único programa que permite ganhar a guerra suja posta em prática contra os imigrantes na União Europeia. Nela, todos somos potenciais alvos, mas também combatentes irregulares. Nela, todos somos ilegais.
Jogos Sem Fronteiras, edições Antipáticas, 2008