Faixa de gajos
O Brasil, este país oficial que é uma colagem de terras que compila ecologias e culturas extremamente diversas, tão grande que ostenta o seu próprio colonialismo interno, é indubitavelmente o maior produtor de memes – unidades de informação cultural, muitas vezes jocosa, que se espalha rapidamente entre pessoas, especialmente na internet – da contemporaneidade. Além da criatividade inquestionável, um dos únicos elos entre os habitantes do país de norte a sul, a militância virtual é uma das pouquíssimas coisas que une os brasileiros como um povo. E, assim, os posts com a Fernanda Torres em canais oficiais de premiações como o Oscar e o Globo de Ouro foram os mais curtidos e comentados, de longe, assim como memes como o da foto da Gretchen e o do clássico musical contemporâneo da Joelma “Voando pro Pará” ganharam o mundo, ultrapassando as barreiras linguísticas que, sabemos, ainda hoje não são tão fáceis assim. E era aí que eu queria chegar para começar a nossa historinha: a língua.
Bom, a língua “oficial” do Brasil é o português, imposta a nós por nossos invasores e colonizadores que, a base de muita violência e opressão, suprimiram milhares de idiomas, chegando inclusive a proibir legalmente o Nheengatu, a língua geral da Amazônia, usada eficientemente para a comunicação entre diferentes povos muito, mas muito antes de Zamenhof criar o esperanto – e ter sua utilização como língua franca mundial falhada. Se me perguntassem se gostaria de ter o português como “língua-mãe”, eu, hoje, genuinamente responderia obviamente que não. Houve um tempo em que eu me gabava por aí de, no Pará, culturalmente, as pessoas falarem a língua portuguesa de forma mais parecida com a “matriz”, respeitando as conjugações pronominais em segunda pessoa de acordo com a gramática oficial, por exemplo. Hoje em dia só consigo enxergar esse fato como uma prova de que meu povo foi o mais brutalmente invadido, mais do que territorialmente, mas em seu modo de ser e se expressar.
Pois bem, há mais de seis anos eu vivo em Portugal. Nunca quis morar aqui justamente por causa do idioma. Não por causa de questões coloniais e sim porque, desde pequena, sempre gostei de aprender línguas e, depois de me tornar fluente em um bocado delas, achava que era um enorme desperdício de conhecimento viver num país onde se fala o português. A vida, porém, me trouxe aqui e, aqui, confesso que sou feliz. Não é esta a questão. A questão é que, em Portugal, descobri que não falo português e sim brasileiro. A primeira vez que escutei o termo, utilizado mesmo como se fosse uma língua completamente diferente, confesso que me irritei muito com a visão limitada e preconceituosa do português médio. A mim, ofendeu-me mais ainda pelo fato das minhas infindáveis questões com o Brasil, entidade opressora da minha terra Amazônia, que assumiu diretamente de Portugal o papel de colonizador cruel que ostenta até hoje. Se eu falasse parauara, beleza. Mas, brasileiro? Credo. Mas o português médio – e mesmo a absoluta maioria dos letrados – não tem a menor noção dessas questões colonialistas internas do Brasil (nem o brasileiro sudestino médio tem), assim como o brasileiro médio também não tem ideia da rixa acirrada entre o Porto e Lisboa, por exemplo. Normal. Voltemos ao brasileiro.
Lélia Gonzales defendeu que, no Brasil, se fala o pretuguês, termo que propôs para identificar o português usado pela população marginalizada – com massiva influência das línguas indígenas e das africanas que foram trazidas pelos povos escravizados – e que possui gramática, sintaxe, fonética e semântica própria.
Eu gostaria de colocar uma coisa: minoria cultural
a gente não é não, tá? A cultura brasileira é uma
cultura negra por excelência, até o português que
falamos aqui é diferente do português de Portugal.
Nosso português não é português é “pretuguês”.
(depoimento dado a Carlos Alberto M Pereira e Heloisa Buarque de Hollanda, publicado em Patrulhas Ideológicas. São Paulo’ Brasiliense, 1980)
Lélia Gonzales observou, em sua obra, que o racismo linguístico é tão forte quanto qualquer outro. Quando os portugueses começaram a se referir ao modo como os imigrantes vindos das antigas colônias da América falavam o brasileiro, eu tenho a total segurança em afirmar que foi como uma forma depreciativa e preconceituosa. Não tenho a menor sombra de dúvida do tom pejorativo que originou o termo que, assim como tantos outros, acabou por se difundir e por ser repetido por muita gente que, muitas vezes, nem compartilha das ideias preconceituosas e racistas, porém que nunca parou para refletir sobre o real pensamento representado por aquela nomenclatura (e que atire a primeira pedra quem nunca reproduziu termos terríveis como “denegrir” ou “mulata” ou “criado mudo” antes de ser educada sobre a origem dos tais).
Dito isto, vejamos um fato: o brasileiro é infinitamente mais falado do que o português. Portugal tem cerca de 10,6 milhões de habitantes e sabemos que aproximadamente um milhão deles são de extrangeiros. Já o Brasil tem 212,6 milhões de habitantes – 2 milhões deles de extrangeiros – e mais 4 milhões e meio de brasileiros vivem fora do país. É uma matemática bem simples e não deixa a possibilidade de questionamento da nossa predominância cultural em níveis internacionais. Desenhando, de forma simplista, Portugal roubou (não só) o nosso ouro, não ficou com ele, e agora está sendo engolido por nós. Como eu disse, vivo aqui há seis anos e tenho a licença para afirmar categoricamente que é impossível conhecer um português que não consuma as artes brasileiras, a televisão brasileira, os atletas brasileiros, os influenciadores digitais brasileiros, os produtos brasileiros. É impossível sair de noite (ou de dia) e não escutar música brasileira. É impossível sair na rua e não escutar pessoas falando brasileiro. E é cada vez mais comum a discussão de que os miúdos portugueses estão a falar esta “nova” língua que invadiu este canto ocidental da península ibérica.
Antes de prosseguir, gostaria de deixar bem claro que a intenção aqui não é inflamar os ânimos. Há muitos portugueses horrorosos, como é o caso do André Ventura e seus seguidores, mas também há muitos brasileiros deploráveis, como é o caso do Bolsonaro e seus minions. Convivo diariamente com portugueses que não compactuam de forma alguma com visões e ações preconceituosas, tenho amigos que amo e admiro como seres humanos, e também encontrei aqui um nicho acadêmico muito mais aberto a discutir relações coloniais e assumir a necessidade de reparação por parte de Portugal do que as universidades sudestinas brasileiras em relação à Amazônia. Nunca vou esquecer o professor de filosofia da PUC Rio que veio apresentar um masterclass na Summer School of Arts da Universidade Católica do Porto, no qual ele simplesmente resumia a música brasileira em samba, bossa-nova e tropicalismo e, depois de, modéstia à parte, eu “jantá-lo” na frente do público “gringo” que ele pretendia impressionar, o dito cujo ainda veio tentar me patronizar e dizer que UFPA (Universidade Federal do Pará) se pronunciava “ÚFIPA” e não “Ú-ÉFE-PÊ-Á”. Pode ter sido sorte minha – e claro que já soube de mil e um casos de preconceito dentro do ambiente acadêmico – porém no meu meio acadêmico, de ciência e tecnologia das artes, cultura, estudos de gênero e pensamento decolonial, nunca presenciei uma pessoa portuguesa falando atrocidades. Muito pelo contrário.
Não podemos, no entanto, ignorar uma realidade em que, em 2021, Portugal registrou um aumento de 142% em comparação com 2018 nas queixas de xenofobia contra brasileiros, segundo dados da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial. As denúncias variam desde episódios sutis, como dificuldades enfrentadas por brasileiros para alugar imóveis, acessar o mercado de trabalho ou obter atendimento em serviços públicos. Uma das situações muito citadas são os pedidos para que falem inglês em vez do brasileiro, além de casos de ofensas diretas e agressões físicas.
Voltemos ao fato de que, em Portugal, sabe-se tudo sobre o Brasil e no Brasil, fora a época das invasões, a sardinha, o bacalhau e os lindos azulejos, sabe-se quase nada de Portugal. Ah, tem o Cristiano Ronaldo, mas relativamente pouca gente dá grande importância. Se sairmos nas ruas de qualquer cidade de qualquer região do Brasil e perguntarmos se conhecem a Amália, por exemplo, quase ninguém vai conhecer – o que é uma grandíssima pena. E, por causa disto e da real discriminação que a população de imigrantes (e mesmo turistas) brasileiros sofre em Portugal, impulsionada pela crescente da extrema-direita que legitima tudo o que há de podre no comportamento humano, criou-se um movimento de reação através daquilo o que o brasileiro faz de melhor: a zoeira. O meme da “Guiana Brasileira” explodiu na internet, gerando várias variações como o Porto Triste, Mato Grosso do Norte, Pernambuco em Pé, Rio de Fevereiro e o meu preferido, Faixa de Gajos, entre vários outros. Algumas personalidades portuguesas se irritaram e, como qualquer um que frequentou a escola deve ter aprendido, só foi pior. Desculpem, mas é impossível para a malta guerrear com a galera na internet. Ponto. Fizeram até a bandeira. Peço perdão, mas esta é uma das pouquíssimas vezes em que eu, parauara amazônida, me identifico como brasileira e choro de tanto rir. Sim, o espírito da quarta série também nos une.
“O mundo dá voltas” é um dos ditados mais antigos e mais utilizados em toda parte. Portugal invadiu o Grão-Pará e o Brasil em busca de riquezas naturais extraídas através de trabalho escravo no passado e hoje os brasileiros comandam uma invasão em busca de uma vida melhor. Ainda que este país pequenininho esteja entre um dos mais pobres da Europa e aqui também tenha muitos problemas (tive a casa invadida e minhas coisas furtadas), ainda assim é uma realidade mais pacata e menos desigual do que aquela que herdamos no nosso gigantesco país tropical como consequência da brutalidade da nossa invasão, exploração e opressão colonial. E, sim, apesar de não podermos responsabilizar individualmente os cidadãos portugueses pelas ações de seus antepassados, Portugal como Estado tem uma dívida histórica gigantesta, um dever de reparação incontestável. É difícil de engolir para alguns, mas como se diz por aqui, é o que é.
Portanto, em vez de lutarem contra a zoeira e, pior, darem ouvidos aos discursos extremistas anti-humanos dos partidos de direita, sugiro aos portugueses que sejam maiores e tentem convergir para o caminho da escuta, para um caminho inteligente que, em vez de ver os imigrantes como inimigos, aproveite a busca por uma vida melhor destes como uma ajuda na construção de um Portugal mais digno, menos desigual, com maiores oportunidades para todos. Nós precisamos de trabalho e vocês, convenhamos, precisam de quem trabalhe em todos os setores da sociedade, seja para construir casas quanto para inovações tecnológicas, seja para serviços de limpeza quanto para atender nas emergências médicas dos hospitais, seja para servir mesas quanto para promover música, educação, arte. Fronteiras são linhas imaginárias que foram criadas por vocês para a apropriação do que é nosso, lembrem-se. Agora, não há outra solução senão apaga-las para nós, de coração. Não gritem, não adianta. Mas obrigada por nos mostrarem que falamos brasileiro, assim como um dia vocês transformaram o galego no português. Falamos línguas diferentes (apesar da mentira de uma gramática supostamente unificada) porém nos entendemos. Podemos somar, em vez de dividir. Muito riso pode até ser sinal de pouco ciso, porém um pouco de diversão dá um tempero bom à vida.