Um Marquês de Pombal mestiço
Uma figura está de boca aberta, em posição de espanto e outra, com medo; no centro, o Marquês de Pombal, com a sua inconfundível cabeleira, estende a mão num sinal de confiança, talvez até de futuro. Uma imagem é para ser olhada várias vezes, pelo menos uma imagem no seu sentido mais nobre de valer mil palavras e, olhando com mais atenção, percebemos que o rosto branco do Marquês de Pombal, com a pesada maquilhagem de época, é afinal um rosto negro.
Estamos no Palácio de Mafra no século XXI e o Marquês de Pombal, figura incontornável do século XVIII, está a ser representado por Thiago Justino, actor brasileiro negro. O artista J Ricardo Rodrigues demorou três anos para pensar, planear e construir esta fotografia de modo a cobrir três séculos de perguntas sobre a sociedade portuguesa e o racismo.
A exposição Século XVIII – Revelar a Memória a Partir do Esquecimento esteve recentemente na Casa Bocage, em Setúbal, foi a primeira exposição de J Ricardo Rodrigues e questiona a imagem do intrigante e polémico Marquês de Pombal. Isto é só o princípio: Ricardo Rodrigues, que nasceu em Angola em 1964 e veio para Portugal ainda antes da independência, quer, através do seu trabalho, recriar uma imagem de Lisboa que quase nunca vemos: a visão de uma cidade que nunca foi só branca e que foi sempre um lugar onde se reflectia quer a beleza quer o grotesco da vida das colónias.
Invisibilidade
J Ricardo Rodrigues tem um escritório no Príncipe Real, bem no centro de Lisboa, e é daí que ele vai tecendo os fios entre presente e passado. Agora está a fazer pesquisa sobre o bairro Mocambo, que seria uma espécie de quilombo na Lisboa do século XVIII.
Algumas dessas ligações no tempo têm quebras, descontinuidades, como se a história fosse tendo pequenas amnésias. “Quando leio alguns relatos sobre a quantidade de pessoas que estariam em Portugal vindas de outros territórios, não só escravos mas também negreiros e burgueses, e que alguns deles até foram feitos nobres, pergunto-me o que é que aconteceu a esta gente? E porque é que não temos referências visuais destas personagens?”
J Ricardo Rodrigues começou a pensar neste trabalho depois de ter lido um texto do historiador angolano Filipe Zau, publicado no Jornal de Angola, em que ele citava relatos de viajantes do século XVIII que teriam passado por Lisboa: “Outro facto chocante para o estrangeiro, que anda pela cidade de Lisboa, é a quantidade de negros”, escreveu um reverendo inglês em 1747. “O facto de ter domínios das duas Índias traz a Lisboa um tal número de amorenados, negros e mulatos que, quando um português deseja ressaltar a sua condição de nobre diz que é ‘Branco’”, escreveu ainda outro viajante, também citado por Zau.
De certa forma, falar sobre essa invisibilidade é falar sobre outra que continua: “Temos hoje uma população de origem africana que não está representada pelo poder político”, diz J Ricardo Rodrigues.
Trata-se de uma discussão não só sobre racismo mas também sobre identidade – ou sobre uma ideia de lusofonia que, ao longo dos anos, tem prometido mais do que cumprido.
Em 2014, J Ricardo Rodrigues está afinal a falar de algo que lhe é muito próximo. 40 anos antes, com o 25 de Abril, as colónias tornaram-se independentes e, embora ainda fosse pequeno, foi uma transformação que viu acontecer e que o marcou. Era uma transformação que tinha que acontecer e era surpreendente que tivesse levado tanto tempo para acontecer. Foi no tempo do Marquês de Pombal que os portugueses saíram de Mazagão, pondo fim à presença portuguesa no Norte de África.
Neto da Rainha Ginga
Primeiro-ministro do Rei D. José I, grande impulsionador da reconstrução de Lisboa (com o engenheiro Eugénio dos Santos e o arquitecto Carlos Mardel) depois da completa destruição da cidade com o grande terramoto de 1755, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, mudou o século XVIII e foi percursor de ideias iluministas em Portugal. Diminuiu a influência dos Jesuítas, forçando maior separação entre a Igreja e o Estado e por isso foi mais odiado do que amado. E, em 1761, foi o cérebro por trás da ordem do Rei D. José para abolir a escravatura dentro do território português metropolitano, tornando Portugal um país pioneiro do abolicionismo.
Apesar de ser uma figura fundamental da história portuguesa, o Marquês de Pombal é difícil de descrever, ainda mais difícil de caracterizar com certeza. “Sobre o Marquês de Pombal existe muito fumo, uma neblina. Sobre o Marquês de Pombal foi dito isto e o seu contrário. Tanto fazem dele um ditador como um democrata, percursor da modernidade. A sua figura tornou-se um paradoxo”, explica o historiador português José Eduardo Franco, director do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL), da Universidade de Lisboa.
Para José Eduardo Franco, é possível que se venha a comprovar que o Marquês de Pombal tinha origens africanas, como sugeriram alguns historiadores e como propõe a visão artística de J Ricardo Rodrigues. Aconteceu com o Padre António Vieira – e depois de ter ficado provado que Vieira era mestiço, olhou-se de outra maneira para todo o seu percurso no Brasil e as suas ideias de um grandioso quinto império, a que Portugal estaria predestinado para espalhar a palavra de Deus por todo o mundo.
“É um facto histórico que a escravatura foi proibida em Portugal e que o Marquês de Pombal acabou ainda com a cidadania de segunda, promovendo a igualdade total, independentemente de raça ou de religião. Agora se esse trabalho dele teve a ver com ele ter raízes africanas ou se foi apenas por ideologia, não sabemos”, diz José Eduardo Franco.
Em 1777, depois da morte de D. José I, o Marquês de Pombal foi demitido das suas funções no Estado e mais tarde acusado de abuso de poder e corrupção. Tinha já 80 anos quando foi condenado ao desterro e se afastou de Lisboa. Morreu pouco tempo depois, no seu palácio de Pombal, em 1782.
Nesses últimos anos, percebeu-se quantos inimigos tinha feito e o Marquês tornou-se uma figura caída em desgraça, maldita. J Ricardo Rodrigues encontrou, dessa época, um verso que circulava pela capital portuguesa, “Torna, torna marquês à Mata Escura”:
Solar do quinto avô, o arcediago,
Que da mãe Marta, por seu negro afago
Em preto fê cair tua ventura. (…)
Foste tenente rei da nossa Atenas,
Inspector do erário que bem pinga,
Vice papas nas leis, que injusto ordenas.
Amigos, e que tal? Cheira a catinga?
Pois é quem governou por nossas penas
Um quinto neto da rainha Ginga
Neste verso sugeria-se que o Marquês de Pombal era descendente de africanos – fosse de uma escrava “mãe Marta” ou de uma “rainha Ginga”, era “preto”. Mas, a esta distância, é difícil dizer se o “insulto” seria porque o Marquês era de facto mulato ou se era simplesmente porque ele tinha abolido a escravatura em Portugal, uma medida tão pioneira quanto incompreendida e que o tornava, na opinião pública, próximo dos “pretos”.
Para José Eduardo Franco, a descoberta de que o Marquês de Pombal era descendente de africanos, como no caso do Padre António Vieira, à luz da sociedade de hoje, num contexto de pluralismo, só viria a valorizar o Marquês de Pombal.
J Ricardo Rodrigues tem dúvidas de que a sociedade portuguesa queira repensar o Marquês de Pombal dessa forma, mas mais do que dar respostas ou apresentar uma verdade para substituir outra, quer levantar o véu sobre questões que parecemos esquecer com demasiada frequência. Falamos de lusofonia a toda a hora para tentar exprimir uma relação antiga entre continentes, mas raramente procuramos realmente ver quantos séculos nos juntam e separam, quantas imagens, e como numa mesma cidade coexistem tantas maneiras de viver a História.
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Imagens:
1- “Século XVIII: Revelar a Memória a Partir do Esquecimento” de J Ricardo Rodrigues
2-Marquês de Pombal. Pintura de Louis Michel van Loo.
Artigo originalmente publicado em Rede Angola a 11.07.2014