O Museu Casa da Memória (Medellín) e a memória como passado-presente

No seu livro O Museu da Inocência, Orhan Pamuk imaginou um museu como se fosse uma casa. Um espaço íntimo onde a história pudesse ser vislumbrada através de retalhos e fragmentos do quotidiano. Um ponto mais destinado a percorrer as trajetórias biográficas, na sua diversidade e riqueza, em lugar de produzir e reproduzir o discurso épico da nação. Pode um museu ser uma casa?

Museo Casa de la Memoria (Medellín) |  cortesia do MuseuMuseo Casa de la Memoria (Medellín) | cortesia do Museu
Museo Casa de la Memoria (MCM), situado no centro de Medellin (Colômbia), assume essa possibilidade na sua própria designação. Criado em 2006 e inaugurado em 2011, ele resulta de uma iniciativa da Câmara Municipal, no quadro de um programa de atenção a vítimas do conflito armado. A auscultação popular que então se seguiu definiu que era necessária uma casa e um museu. Ou seja, um espaço que complementasse a urgência de encontro, sentido em primeiro lugar pelas vítimas e pelos seus familiares, mas que não descurasse igualmente a premência de expor e discutir o fenómeno da violência para que ela pudesse ser superável.
As circunstâncias em que o MCM labora obrigam, de algum modo, a refletir sobre a natureza da memória e sobre o papel político, pedagógico e moral que ela desempenha. Com efeito, a missão do museu surge como marcada pela ideia de superação e de não-repetição de atrocidades que ainda persistem e se manifestam. “Memórias vivas”, uma das expressões mais presentes nas atividades do Museu, não nos convoca apenas a pensar a persistência, em testemunhos do vivido e em certos fenómenos sociais, do passado no presente. Lembra-nos que o conflito ainda não terminou e que as dinâmicas acionadas de reconhecimento e de reparação simbólica são contemporâneas da guerra. Na verdade, e apesar da agenda de paz em curso, permanecem choques entre guerrilhas, paramilitares, Estado e narcotráfico, numa Colômbia em que o conflito armado provocou mais de 200 mil mortos e que, de acordo com o Registo Único de Vítimas, afetou diretamente a mais de 8 milhões de pessoas.
Ainda que faça eco de um contexto temático e geográfico diferente, percorrer as atividades levadas a cabo pelo MCM conduz-nos a refletir sobre a imbricação entre memória, arte e território. Importa sublinhar as particularidades de Medellin: lugar que cresceu com o deslocamento forçado de populações, cidade mais violenta do mundo no início da década de 1990 e que carrega o estigma do narcotráfico, recentemente redescoberto, em termos internacionais, com a glamourização televisiva da figura de Pablo Escobar. Neste quadro, a violência está inscrita no território e é experienciada a diferentes níveis sociais e humanos, o que faz com que a sua transmissão, mesmo entre as gerações mais jovens, tenha ancoragem a partir do vivido e obriga a que o Museu acabe por definir uma noção algo difusa de “vítima”, visibilizando também aquelas produzidas por distintas e, em certa medida, articuláveis, manchas de violência.
A proposta museológica passa pois por utilizar a memória como ferramenta reflexiva que permita ressignificar esse passado-presente e que abra espaço para modos partilhados e plurais de contar o acontecido, um elemento que se evidencia percorrendo a exposição permanente Medellín: Memorias de Violencia y Resistencia e - de forma ainda mais evidente – nos processos participativos de construção das exposições Geografías de la Verdad (que esteve patente ao público até agosto) e Medellín ES (atualmente visitável e que terá uma segunda parte inaugurada em final de setembro). Museologia viva em conexão com as comunidades, o MCM tem no recurso à expressão artística um eixo fundamental do seu labor. Como afirma a sua diretora, Adriana Valderrama, o poético e o artístico permitem tornar visível aquilo que os silêncios hegemónicos ou a força das narrativas únicas tendem a entender como resíduo subjetivo.

 

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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.

por Miguel Cardina
Vou lá visitar | 25 Setembro 2018 | Colômbia, memória, museu