"Reconhecer que Portugal foi tão colonial e tão violento quanto os outros faz parte do nosso dever"
entrevista ao historiador Miguel Cardina por VÂNIA MAIA
O filósofo francês Michel Foucault considerava a Arqueologia a única via de acesso ao presente. Ora, também a História é uma via primordial para a compreensão da atualidade, concorda o historiador Miguel Cardina, socorrendo-se do pensador Antonio Gramsci para lembrar que “toda a História é contemporânea”, ou seja: não há reflexão histórica que não parta do presente. O investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra coorganizou, recentemente, o livro As Voltas do Passado (Tinta-da-China) e coordena o projeto CROME, financiado em €1,4 milhões pelo Conselho Europeu de Investigação, dedicado ao estudo da construção da memória da Guerra Colonial e das lutas de libertação. O historiador de 41 anos não hesita em classificar Portugal enquanto país racista e considera urgente desfazer o mito da bonomia do colonialismo nacional. Explica as razões de considerar ofensiva a proposta de criação de um museu chamado das Descobertas na cidade de Lisboa e desvenda os perigos que, de acordo com a sua opinião, escondem os ataques ao suposto discurso do politicamente correto. Sobre a ida à televisão de Mário Machado, defensor de ideias nazis e condenado por crimes violentos, é perentório.
Alguém como Mário Machado pode ser convidado de um programa de entretenimento das manhãs televisivas?
Estamos a falar de uma pessoa condenada por crimes de ódio, que vem reiteradamente afirmando uma linguagem e, sobretudo, uma prática de agressão ao outro, defendendo ideais e procurando promovê-los através de estruturas coletivas de natureza fascista, exaltando o regime nazi. Todo este cenário foi completamente erodido naquela entrevista. O que se passou foi um ato de branqueamento, não só de uma figura mas também daquilo que ela defende e representa e, nesse sentido, foi um mau serviço ao jornalismo. Na verdade, nem era jornalismo; era um programa de entretenimento. O “repórter TVI”, afinal, nem sequer tinha carteira profissional de jornalista. Sobretudo, tratou-se de um mau serviço à democracia. O papel da sociedade civil é denunciar situações como esta ou, então, estará a promover, por omissão, ideologias profundamente antidemocráticas, atentatórias dos direitos humanos e violentas relativamente ao outro.
Ouvir Mário Machado é um dano colateral da liberdade de expressão?
Este não é um caso de liberdade de expressão; é o caso de alguém que é apresentado de forma absolutamente inadequada. O enquadramento que foi feito da personagem não foi sujeito a um contraditório que revelasse as suas ideias. Foi-lhe permitido dizer um conjunto de mentiras e de declarações perfeitamente inadequadas sobre o passado salazarista, omitindo-se, também, as suas condenações enquanto indivíduo violento, condenado por crimes associados à ideologia que defende. No entanto, é importante ter em conta que a Constituição Portuguesa proíbe a organização de grupos ou de partidos de natureza abertamente fascista. Nesse aspeto, estamos perante um indivíduo que é líder de um grupo, a Nova Ordem Social, que tem essas características e, nesse sentido, a sua denúncia, e dos atos que promove, é também uma medida de sanidade democrática.
O perigo é a normalização de um discurso antidemocrático?
Merece-me profunda crítica o convite, também pela forma como pretendeu normalizar uma manifestação de apoio a Salazar, que dava o mote para a entrevista. Por isso, sim, creio que um dos perigos que enfrentamos é a normalização desses passados, com claros intuitos políticos no presente. O Brasil é um exemplo disso. Bolsonaro ascende ao poder com uma retórica positiva sobre a ditadura no Brasil, sobre a tortura, defendendo uma lógica de denúncia dos direitos humanos enquanto património de defesa da criminalidade… Se queremos uma sociedade democrática, igualitária e mais justa, não devemos pactuar com a normalização deste tipo de linguagem e de práticas.
As Voltas do Passado é o título do seu mais recente livro. Tendemos a achar que o passado é estático. Afinal, ele pode dar muitas voltas?
Dá muitas voltas, certamente. Ainda para mais se estivermos a falar da Guerra Colonial que, pela sua natureza disruptiva, tem ecos que se prolongam bastante no tempo. Basta pensarmos que existe uma relação direta entre o 25 de Abril e a Guerra Colonial para percebemos o seu impacto. O que procurámos trazer a debate no livro não é tanto a história da Guerra Colonial e das lutas de libertação, mas a história da memória da guerra. Nessa medida, sim, o passado dá muitas voltas e não se esgota em fronteiras cronológicas definidas.
Ainda temos dificuldade em olhar para a Guerra Colonial? Isso deve-se ao facto de os militares que fizeram a guerra também terem feito o 25 de Abril?
É uma das razões, mas não é a única e nem é necessariamente resultado da sua pressão direta. A verdade é que os militares que fizeram a guerra – uma parte considerável deles – a seguir foram os heróis da democracia. Esse processo torna mais difícil olharmos para as dimensões de violência efetiva, e muito explícita, exercida não só sobre o outro lado em combate mas também sobre as próprias populações. Essa é uma das razões da permanência de algum silêncio sobre a Guerra Colonial. Outro elemento da forma balbuciante como Portugal lida com a memória da guerra tem que ver com o lusotropicalismo. A guerra contradiz a narrativa oficial de que éramos todos irmãos e de que nos miscigenávamos.
Persistem muitos mitos sobre o império colonial português? Qual deles é prioritário desfazer?
O principal mito que prevalece é o de que o colonialismo português foi diferente dos outros. Naturalmente, não foi igual ao britânico, ao espanhol ou ao holandês, mas isso não significa que tenha sido qualitativamente mais benigno. O colonialismo português foi tão violento quanto os outros.
Essa ideia de um colonialismo de outra natureza, miscigenado com as populações locais, resulta da importação da teoria lusotropicalista elaborada por Gilberto Freyre, adotada como uma espécie de ideologia do Estado Novo, num contexto em que o regime era acossado internacionalmente por tardar em iniciar o seu processo de descolonização. Esta ideia criou uma realidade e, apesar do 25 de Abril, este lastro manteve-se por várias razões.
Que razões são essas?
Uma delas é o retorno de mais de 500 mil pessoas, num contexto que sabemos dramático, nomeadamente de Angola e de Moçambique. Esse fenómeno agravou na sociedade portuguesa o ressentimento com a perda colonial, associado à ideia de que o colonialismo português era diferente e de que o País tinha sido vítima de uma injustiça histórica. Ainda hoje têm força estas ideias lusotropicais que precisam de ser desconstruídas.
É justo imputar aos retornados a responsabilidade da continuidade da ideologia lusotropicalista?
Não podemos ignorar que, num momento histórico muito preciso, entre 1975 e 1978, cerca de 500 mil pessoas regressaram a Portugal marcadas por um grande ressentimento e pela incompreensão – muitas vinham de zonas onde não tinham vivenciado a guerra diretamente. Regressavam com um sentimento de injustiça, em relação quer aos poderes portugueses quer à própria sociedade que as acolhia. Falo, até, por razões biográficas – os meus pais voltaram de África –, também familiarmente consigo perceber o que foi a construção de um discurso, muitas vezes em âmbito privado, de ressentimento quanto à perda de África.
A ideia do bom colonizador reflete-se de que forma na sociedade portuguesa?
Reflete-se na forma como continuamos a não entender o colonialismo como um processo violento. Há um discurso heroico sobre as Descobertas que é dominante, vai da esquerda à direita, não é por acaso que surge esta proposta do Museu das Descobertas. O discurso continua a ser o de que havia uma sã convivência, admitindo-se alguma diferença social, algum racismo, sempre pontual, sempre culpa de algum sujeito que era mau e, portanto, não era estrutural. Reconhecer que Portugal é hoje também produto desse esquecimento de que fomos um País tão colonial e tão violento quanto os outros faz parte do nosso dever.
Portugal ainda é um país racista?
Portugal tem uma sociedade racista, não há dúvida nenhuma.
Mas os portugueses não se veem como tal e não existe propriamente um discurso racista…
Eu vejo um discurso racista, basta ler as caixas de comentários dos jornais e percebemos que todo o imaginário sobre África e sobre os africanos mostra um País profundamente racista. Obviamente, isso tem reflexo nos portugueses que são negros e vítimas desse racismo quotidiano. A grande maioria das vezes não é um discurso de ódio aberto; é um discurso em que se naturaliza a diferença racial e em que se entende o outro, muitas vezes português mas negro, como inferior ou como alguém que é suspeito de alguma coisa – veja-se a relação que as polícias têm com as periferias racializadas. O contrário é que seria estranho numa sociedade com esta história colonial. Portugal não ser racista é que seria motivo de surpresa.
Considera anacrónico e, até, ofensivo que se crie um museu chamado das Descobertas? Porquê?
É desde logo estranho que se vá buscar uma expressão que é muito marcada ideologicamente e que é ofensiva. Estamos a falar de rotas, em alguns casos, para zonas onde estavam pessoas. É como alguém tocar à campainha de nossa casa, nós abrirmos a porta e dizerem-nos que nos descobriram. Todo o discurso das Descobertas é profundamente ideológico e datado – a ideia de que a Europa tinha a civilização, o conhecimento, a cultura e, portanto, estava a descobrir outros territórios e outros povos que não estavam ainda dentro do que seria o critério de Humanidade dos europeus.
O nome é assim tão determinante? Não é mais importante que seja um museu historiograficamente rigoroso?
Não é apenas uma questão de factos históricos, mas de perceber o que é Portugal hoje. O espaço público português é também cenário de memorialização deste passado. Quantas ruas têm nomes de negros portugueses? Portugal precisa de olhar de outra forma para a pluralidade que o compõe.
Retirar monumentos coloniais erigidos no passado não será uma higienização da História?
Não vejo qualquer dramatismo na retirada. Agora, não advogo uma limpeza dos monumentos das cidades, não é isso: o que eu creio que é necessário é um processo de ressignificação. O Portugal dos Pequenitos, em Coimbra, é um espaço muito visitado por crianças e turistas; seria interessante não demoli-lo, mas efetuar um processo de ressignificação que mostrasse que aquele é um parque temático da ditadura, glorificador do colonialismo.
Esses exemplos podiam multiplicar-se noutros contextos, para termos uma sociedade capaz de enfrentar os seus fantasmas coloniais. Escondê-los não resolve muito, porque os fantasmas são voláteis e continuam no ar.
Acusar ideias progressistas de serem impostas pelo politicamente correto pode justificar o discurso de ódio?
O discurso contra o politicamente correto é geralmente feito do ponto de vista de quem tem privilégios e se exaspera contra o “politicamente correto” vindo da parte das mulheres, dos negros, dos direitos LGBT ou da linguagem inclusiva. Um dos perigos para a democracia é, justamente, esta ideia de que há um discurso politicamente correto que está entranhado nas instituições e na vida social e que é necessário combatê-lo a partir da margem. O que se passa é precisamente o contrário. Infelizmente, é o discurso politicamente incorreto que é dominante.
Mas depois também há exageros, como algumas escolas norte-americanas banirem o clássico Por Favor não Matem a Cotovia, de Harper Lee, por considerarem o livro racista…
Claro, não há dúvida. A realidade norte-americana é bem diferente da sociedade portuguesa, mas certamente que há exageros que também devem ser observados de uma perspetiva crítica.
Entrevista publicada originalmente na revista VISÃO a 3.02.2019