sem título | 2019 | Yuran Henrique (cortesia do artista)A noção de “vítima” irrompeu no imaginário público no âmbito das discussões sobre o Holocausto, vindo a permear o debate sobre justiça, responsabilidade e memória. Para o historiador Enzo Traverso, no seu fascinante L´Histoire comme champ de bataille, a emergência da figura não é indissociável de um tempo em que a dimensão ontológica do futuro aparece como substancialmente rasurada. “Discreta e púdica”, a vítima corresponde a uma nova sensibilidade na qual “a memória do Gulag se sobrepõe à memória das revoluções, a memória do Holocausto substitui a memória do antifascismo, a memória da escravatura substitui a memória do anticolonialismo. Tudo se passa como se a lembrança das vítimas não pudesse coexistir com os seus combates, as suas conquistas, as suas derrotas” (1).
Mas será necessariamente assim? Se é verdade que a convocação da ideia de “vítima” tende a destacar o sofrimento e corre o risco de despolitizar os processos históricos que lhe estão na base, também é certo que o recurso estratégico à noção tem contribuído para alimentar mobilizações pela justiça histórica para indivíduos e grupos alvo de violência (2). Basta pensar no uso da categoria de “vítimas” das ditaduras latino-americanas, correspondendo à reparação dos efeitos desses passados violentos e, por vezes, à denúncia das suas lógicas de persistência social. Ou ainda – e seguindo um dos exemplos dados por Traverso – constatar o lugar relevante que a memória da escravatura tem assumido, nos nossos dias, no ativismo antirracista e no combate direto aos imaginários políticos e às estruturas sociais herdadas do tempo colonial. Para além disso, a reflexão sobre o que Primo Levi designa como “zona cinzenta” e, mais recentemente, o aumento de congressos, revistas académicas e livros centrados na figura do “perpetrador” têm vindo a enriquecer o debate em torno do par dicotómico vítima-perpetrador. É neste quadro geral que se inscreve o último livro de Michael Rothberg, publicado este ano pela Stanford University Press. Em The Implicated Subject. Beyond Victims and Perpetrators, Rothberg propõe a noção de “sujeito implicado” – e o correlativo conceito de “implicação” – para enfrentar a carência de teorização nas discussões sobre privilégio, poder, violência e injustiça. Não se trata de descartar as categorias de vítima e perpetrador, nem de as relativizar ao ponto de deixarem de ser produtivas. No entanto, o enfoque neste eixo binário tem dificultado a capacidade de examinar a injustiça histórica e estrutural, cuja constituição e reprodução resulta justamente de envolver dinâmicas mais amplas. Como nos diz o autor, “sujeitos implicados ocupam posições alinhadas com o poder e o privilégio sem serem agentes produtores diretos do dano; eles contribuem, habitam, herdam ou beneficiam de regimes de dominação, mas não originam nem controlam esses regimes. Um sujeito implicado não é vítima nem perpetrador, mas antes um participante em histórias e em formações sociais que originam as posições de vítimas e perpetradores, nas quais aliás a maioria das pessoas não ocupa esses papéis tão claros” (3). Uma teoria da implicação, tal como formulada por Rothberg, obriga assim a deslocar o foco da culpa para a responsabilidade e a distanciar esta última de um entendimento meramente legal, baseado na agência individual. Obriga, no fundo, a tornar pensável a seguinte questão: como podemos ser responsáveis por ações que não fizemos e que, em última análise, podem até ter sido realizadas antes de existirmos como indivíduos? O “complexo da implicação” remete assim para diferentes e multidimensionais relações com as injustiças passadas e presentes: é possível alguém ser perpetrador e vítima ou descendente de vítima; ou estar, justamente, numa ambígua e aparentemente distante – mas não neutral – situação. Com efeito, mais do que buscar a responsabilidade ou a culpa pelos “crimes originais”, o livro examina as correias de transmissão [transmission belts] da dominação, um termo que o autor respiga de Simona Forti. Daí que pensar a noção de implicação conduza a observar a sua natureza sincrónica (relação com as injustiças do presente) e diacrónica (relação com as injustiças históricas), que devem ser justamente consideradas na sua interpenetração: a desigualdade económica, as opressões de género ou raça, as guerras imperialistas ou a destruição ecológica resultam da sedimentação de processos históricos. E, de forma análoga, os genocídios passados, a escravatura ou o colonialismo são acontecimentos passados que continuam a interferir no presente. The Implicated Subject é um livro baseado em estudos de caso centrados no universo da arte e na sua articulação com o domínio do político. Eles permitem funcionar como “alegorias de relações sociais” existentes (p. 200), mostrando o sujeito implicado como alguém que habita e faz funcionar, mesmo que de modo indireto, as estruturas de dominação. O fôlego crítico do livro permite examinar noções como as de direitos humanos (cap. 2 e 5), justiça de transição (cap. 3), solidariedade internacionalista (cap. 5 e 6) ou o próprio conceito de “memória multidirecional”(4) (cap. 4), num trabalho que cruza várias geografias e universos diaspóricos. O livro termina com uma conclusão incisiva, na qual se desenham onze teses sobre a figura do sujeito implicado. Se a referência às famosas Teses sobre Feuerbach não ficara ainda evidente na enumeração sugerida, a 11ª tese torna clara a remissão direta para a obra de Marx, renovando o poderoso mandato que o filósofo outorgou aos seus contemporâneos e vindouros: “os académicos e ativistas necessitam tanto de interpretar a implicação quanto de transfigurá-la.” (p. 203). E é justamente de uma figura que importa desconstruir de que se fala. Nessa medida, a implicação “não é uma identidade, mas uma figura através da qual se pode pensar” ou – por palavras mais diretas – “não é uma solução mas um problema” (p. 199). O livro não apresenta receitas para esta dupla tarefa de analisar e transformar a figura, mas aponta para a necessidade de articular trabalho académico e ação coletivamente concertada. Tratando-se de um livro notável, que irá reformular os debates sobre memória e poder, ele convida também à complexificação do seu conceito central a partir de novos estudos de caso. Como diferenciar a implicação em função da origem, cidadania, classe, raça, género, prática política ou trajeto biográfico? Qual a relação entre implicação e capital (económico e simbólico), no quadro de um sistema-mundo profundamente desigual? Qual o estatuto de implicação daqueles que, não beneficiando das cadeias de dominação nem se (auto)definem como vítimas, são sujeitos prejudicados pelos mecanismos produtores de injustiça e opressão? Em vários momentos, a obra reconhece este caráter complexo e dinâmico do conceito, abrindo assim caminho a que se produza a conjugação entre os “complexos de implicação” e o que se poderia definir como as “políticas de implicação”: ou seja, o modo como se forjam hierarquias, umbilicalmente ligadas ao desenvolvimento de diferentes formações sociais, e que naturalmente impactam na definição de propostas teóricas e políticas que visem transfigurar o lugar implicado que os sujeitos ocupam no mundo.
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