Enfrentar os fantasmas presentes

Portugal mantém uma relação complicada com o seu passado colonial. A memória pública é, ainda hoje, marcada por leituras que insinuam a grandeza dos “Descobrimentos” e a singularidade da “presença portuguesa no mundo”.  Se é verdade que tem crescido o peso das vozes dissonantes, o certo é que aquelas imagens permanecem socialmente encrustadas. A sua presença surge frequentemente em articulação com o que Michael Billig chamou de “nacionalismo banal”: o conjunto de práticas, de rituais e de discursos que tecem as formas como a nação se reproduz a si própria.
Como é sabido, a construção da imagem do Portugal colonial – aprofundado durante o Estado Novo, mas com raízes anteriores – gerou formas acirradas de defesa da presença em África e mais tarde, já no quadro do pós-guerra, de afirmação da excecionalidade do colonialismo luso. A queda da ditadura e a desintegração do Império não foram acompanhadas, por razões várias, de um balanço sustentado sobre o colonialismo e os seus legados. As representações de um colonialismo que não o foi – a persistência do “colonialismo como nosso impensado”, como fazer ecoar o título de um livro que agrupa textos de Eduardo Lourenço – surge regularmente nos ressentimentos e na nostalgia sobre a “perda” de África, na ideia persistente de um país de “brandos costumes” e de uma sociedade fundamentalmente não racista, ou ainda nas manchas de silêncio sobre a escravatura, a exploração e dominação colonial ou a guerra combatida contra os movimentos de libertação.
Um habilidoso balanceamento entre história e mito, entre memória e esquecimento, tem vindo a permitir silenciar a natureza violenta do colonialismo. A perplexidade com que se olha a questão da violência - justamente porque não se lhes identificam razões, causas e contextos – é estimulada por narrativas que evocam os legados patrimoniais deixados no mundo e que interpretam o processo colonial à luz de uma singular convivialidade lusa, supostamente mais benigna e humana. Vários exemplos o demonstram: comecemos pelo mais recente.

cena da peça 'Libertação' de Hotel Europa / André Amáliocena da peça 'Libertação' de Hotel Europa / André Amálio

 

Em abril deste ano, Marcelo Rebelo de Sousa visitou a ilha de Gorée, no Senegal, entreposto usado para o tráfico através do Atlântico de africanos escravizados. O Presidente da República realçou aí o pioneirismo português na abolição da escravatura, em 1761 (a abolição em todo o Império ocorreria apenas em finais do século XIX), e – instado sobre se não estaria na altura de Portugal enfrentar esse passado - respondeu que a existência de uma data da abolição assinalava já o reconhecimento da injustiça. As declarações viriam aliás a desencadear uma carta aberta, assinada por historiadores, investigadores e artistas, na qual os signatários censuram a “visão idealista e excecionalista do legado colonial da história portuguesa”.
Não era a primeira vez - nem será a última - que a questão surgia desta forma no espaço público. Em 2009, a eleição das “sete maravilhas de origem portuguesa no mundo” traçava um retrato de alguns dos edifícios em jogo – como as fortalezas de São Jorge da Mina (Gana), da Ilha de Moçambique (Moçambique) ou da Cidade Velha, em Santiago (Cabo Verde) – que omitia o facto de terem estado diretamente relacionados com o tráfico de escravos. O fenómeno motivaria igualmente um protesto por parte de historiadores que contestavam esse apagamento. A organização argumentou que se tratava de um mero concurso, apostado em salientar o que de bom os portugueses deixaram pelo mundo. A 10 de Junho de 2009, a RTP1 transmitia um programa especial no qual anunciava os vencedores e fazia o elogio da “herança lusa” dispersa pelos continentes.
Terceiro exemplo: exatamente um ano antes, o então Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, referiu-se ao feriado nacional do 10 de Junho como evocativo do “Dia da Raça”, expressão usada pela ditadura (e data que, a partir de 1963, fora transformada num aparatoso momento de glorificação do esforço de guerra). Nesse mesmo ano de 2008, numa visita oficial a Moçambique, Cavaco Silva é questionado sobre a falta de reconhecimento por parte do Estado português de massacres a populações africanas, como o que acontecera na zona de Wiriamu, em Dezembro de 1972. À pergunta, responde Cavaco Silva que não se deve “ficar sempre a olhar para o passado”. Um olhar sobre os discursos que o antigo PR proferiu, entre 2006 e 2014, no âmbito das comemorações do 25 de Abril e do 10 de Junho, mostra aliás a ausência de palavras como “colonialismo”, “colonização”, “racismo” ou “escravatura”. Ao invés, valoriza-se o “universalismo português” como tendo dado lugar a uma presença no mundo, não apenas única, mas ainda hoje culturalmente viva, politicamente frutuosa e socialmente estimada.
Importa questionar as imagens de um colonialismo brando, ou até inexistente, porque elas não só resultam de olhares imprecisos sobre o passado como interferem decisivamente no modo como se lida com as heranças do período. Nessa medida, os trabalhos historiográficos são tão importantes como a interpelação política produzida por movimentos antirracistas ou o diálogo com a memória presente nos antigos territórios colonizados.

cena da peça 'Libertação' de Hotel Europa / André Amáliocena da peça 'Libertação' de Hotel Europa / André Amálio

 

Vejamos o caso da guerra colonial. Durante muito tempo ela resistiu à inscrição no espaço público, em boa medida pelas camadas de sofrimento produzidas e pela sensação de inutilidade que originou em muitos que combateram em África. Mais recentemente, ela tem vindo a potenciar reflexões de natureza artística, historiográfica e testemunhal e a alojar-se na memória pública a partir de alguns recortes experienciais. Em alguns casos, estes exercícios optam por olhares que tendem a sublinhar o facto de se ter tratado de um conflito armado (uma “guerra”), secundarizando o facto dela se ter desenrolado no quadro de uma determinada ordem a que se convencionou chamar de colonialismo.
A secundarização da natureza colonial da guerra tem várias implicações. Desde logo, dificulta a compreensão das causas do conflito, do modo como ele se territorializou e os legados por ele deixados. Por outro lado, assinala a persistência de modo (neo-)lusotropicalizantes de considerar a experiência colonial e o seu desfecho. Uma das formas de desafiar essas imagens seletivas consiste pois no diálogo com as memórias da violência e da resistência nos territórios africanos. Não se trata de entender essas memórias como a verdade contra o erro, nem de elidir o quanto elas estão dependentes da história pós-colonial de cada um desses países. Trata-se, isso sim, de considerar produtiva uma comparação que tem a vantagem de ser feita a partir de dois significantes – guerra colonial e luta de libertação – que não são necessariamente coincidentes: a guerra remetendo para o conflito entre o Estado português e os movimentos de libertação; a luta como expressão de resistências mais vastas, nas quais têm cabimento narrativas mais vastas sobre os processos de construção da diferença colonial, sobre micro e macro violências, sobre modalidades de contestação à presença portuguesa, sobre os modos, nem sempre unívocos, de construção de identidades e lealdades. É entendendo que a guerra foi uma guerra, mas foi também o desfecho sangrento de um processo historicamente mais amplo, que em Portugal se poderá avançar no questionamento das imagens reconfortantes sobre o seu passado colonizador.

 

Artigo originalmente publicado no Reader do ciclo Descolonização, programado por Liliana Coutinho / Teatro Maria Matos

por Miguel Cardina
A ler | 18 Outubro 2017 | colonialismo brando, guerra colonial, memória