As cinzas vivas do colonialismo português
No país habita, ainda hoje, o que se poderia definir como um caldo de imperiofilia, definidor de uma parte significativa dos discursos sobre a sua identidade e a sua história.
Lisboa, novembro de 2017: António Costa discursa na 9.ª edição da Web Summit, o gigantesco evento de tecnologia que mobiliza anualmente milhares de participantes. Na abertura do evento, Costa lembrou Fernão de Magalhães, que tivera, no século XVI, um papel central na primeira viagem de circum-navegação do globo. Comparou então o início dos descobrimentos com o início da era tecnológica que a Web Summit ali incorporava. No ano anterior, em 2016, Fernando Medina oferecera já um astrolábio a Paddy Cosgrave, CEO da empresa organizadora do evento, fazendo uma analogia entre o pioneirismo das descobertas e o empreendedorismo da Web Summit: “Lisboa era a capital do mundo há cinco séculos, daqui partiram rotas para descobrir novos mundos, novas pessoas, novas ideias. De Lisboa partiu uma grande aventura que conectou a raça humana (…). Há 500 anos os navegadores cruzaram os mares. Hoje são vocês, os engenheiros, os empreendedores, os criadores, os inovadores, as start-ups1, todas as empresas”.
Outros exemplos se poderiam evocar. Com efeito, o uso da expansão marítima e do passado colonial para projetar mitologias nacional(istas) é uma constante em Portugal: em anúncios publicitários, em iniciativas governamentais, em realizações políticas, desportivas, lúdicas ou empresarias. À semelhança do que ocorre com outras antigas potências coloniais europeias, a evocação do passado colonial surge de múltiplas e nem sempre evidentes formas. No caso português, a influência do lusotropicalismo – ideologia apropriada pelo Estado Novo que contribuiu para definir o colonialismo português como mais benigno e menos agressivo do que outros colonialismos – constitui uma particularidade, num país que desenha aí a sua centralidade, ao mesmo tempo que o seu posicionamento na periferia da Europa conduz a constrangimentos de variada ordem. É certo que tem crescido a presença de vozes dissonantes questionadoras este senso comum, como adiante se mencionará. Mas é verdade também que aquelas imagens permanecem fortemente encrustadas, articulando-se com o que Michael Billig chamou de “nacionalismo banal”2: o conjunto de práticas, de rituais e de discursos que tecem as formas como a nação se imagina e reproduz a si própria.
A guerra e o apagamento da memória
Ainda em março passado, no momento em que as notícias sobre a pandemia alastravam, Rodrigo Guedes de Carvalho falava aos jovens no final do Jornal da Noite da SIC, ecoando o que lera antes nas redes sociais. Disse-lhes então que, aos seus avós, tinha sido pedido para irem para uma guerra e que a eles era apenas pedido para ficarem no sofá. A guerra a que Rodrigo Guedes de Carvalho se referia, como sabemos, era a “guerra colonial”. Tratava-se de mais um exemplo, tão comum na linguagem jornalísticas destes tempos, de utilização de metáforas bélicas para caracterizar a crise pandémica. Mas era também a reprodução de uma certa leitura existente em Portugal sobre a guerra colonial: um conflito que se fez porque por dever patriótico, não obstante a relação que a derrota na guerra tem com a instauração da democracia no país.
A guerra colonial durou treze longos anos, entre 1961 e 1974. Arrastou perto de 800 mil jovens portugueses para África e mais cerca de 500 mil africanos integrados na tropa colonial para combater os movimentos de libertação em três diferentes territórios: Angola, Moçambique e Guiné. Com uma população que rondaria então os 9 milhões de habitantes, Portugal empregara em África um esforço humano cinco vezes maior, em termos proporcionais, àquele empregue na mesma altura pelos Estados Unidos da América no Vietname. A guerra terminaria com o surgimento de cinco novas nações em África – Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe - e com uma mudança de regime político em Portugal. A 25 de abril de 1974, o MFA (Movimento das Forças Armadas), constituído por militares de patente intermédia cansados de uma guerra sem saída e politicamente perdida, derruba a ditadura do Estado Novo. A mais longa ditadura da Europa, que atravessara incólume a derrota do nazifascismo no desfecho da 2.ª guerra mundial, caía agora sem praticamente oferecer resistência.
Duas perplexidades importam aqui realçar. A primeira é que são os militares que abrem caminho em Portugal à mudança política. Esta íntima relação entre o processo que estabeleceu o regime democrático e a guerra colonial, através da figura dos militares, tenderá depois a interferir no debate público sobre a guerra, nomeadamente no apagamento memorial da guerra e sobretudo das suas vertentes mais sangrentas. A segunda perplexidade é esta: são os movimentos de libertação africanos que, ao infligirem uma derrota política a Portugal, acabam por, paradoxalmente, libertá-lo do fardo de ser uma potência colonizadora. Uma evidência tão grande quanto tendencialmente rasurada na memória pública dominante.
A memória (e o esquecimento) da guerra em Portugal é parte de um passado colonial que continua a alimentar, quer o racismo sistémico, quer a contínua proliferação de imagens de um país outrora grandioso.
No senso comum persiste a narrativa do “encontro de culturas” entre os portugueses e os povos com os quais se cruzou nas África, nas Américas e na Ásia. Particularmente em relação ao continente africano, onde a ruptura foi traumática, surgem regularmente discursos centrados no ressentimento ou na nostalgia em relação à “perda” de África, particularmente presente, mas não só, na narrativa de “retornados” - cerca de 500 mil portugueses vieram de Angola e Moçambique nos anos imediatamente a seguir à revolução. A isso se soma a persistência da imagem de um país de “brandos costumes” e de uma sociedade fundamentalmente não racista, que no reverso transforma a escravatura, a exploração e dominação colonial num silêncio demasiado ruidoso.
Fantasmas que se agitam
A partir de 2017, um conjunto de intervenções e polémicas vieram dar novo fôlego ao debate sobre o passado colonial. Enumero algumas, sem pretensão de exaustividade. Em abril de 2017, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, visitou a ilha de Gorée, no Senegal, entreposto usado para o tráfico através do Atlântico de africanos escravizados, e aí realçou o que teria sido o pioneirismo português na abolição da escravatura, em 1761. Na verdade, a data não assinala a abolição do tráfico de escravizados em todo o Império, mas o fim desse tráfico para a metrópole (concentrando-o no Brasil como destino). As declarações viriam a desencadear vários posicionamentos e uma carta aberta na qual os signatários censuravam a “visão idealista e excecionalista do legado colonial da história portuguesa”.3
No mesmo ano, a colocação em Lisboa de uma estátua a Padre António Vieira, na qual o jesuíta aparece empunhando uma cruz e com crianças índias a seus pés, viria a alimentar gestos de contestação que teriam um último e mais recente capítulo já em 2020, quando mãos anónimas acrescentaram a palavra “descoloniza” e corações nas estátuas representativas de três crianças, motivando por isso um aceso debate. Ainda em 2017, uma das propostas vencedoras apresentadas ao Orçamento Participativo de Lisboa viera da Djass - Associação de afrodescendentes, e constava na criação de um Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas. A proposta vencedora, elaborada pelo artista angolano Kiluanje Kia Henda, encontra-se agora em fase de implementação.
Seria, porém, a proposta de criação na cidade um “Museu da Descoberta”, surgida logo a seguir, a motivar um debate mais aceso. A ideia fora lançada pela candidatura socialista ao Município de Lisboa num quadro de incremento turístico na capital do país. A designação de “Museu da Descoberta” motivara contestação (e, de acordo com declarações recentes de Fernando Medina, continua ainda em cima da mesa). Como se dirá numa carta coletiva então publicada, “Ter-se-ão os povos africanos, asiáticos e americanos, de histórias milenares, sentido ‘descobertos’ pelos portugueses? E como se sentirão hoje as populações oriundas desses territórios ao visitarem um espaço museológico que priva os seus antepassados de iniciativa histórica, reduzindo-os ao papel de objeto da ação descobridora, muitas vezes violenta, dos portugueses?”4 Porém, uma parte considerável dos artigos de opinião publicados na imprensa sobre estes temas, tem vindo a reafirmar o lugar da expansão ultramarina na identidade nacional e a censurar a presença de uma suposta tentação penitencial em setores engajados da opinião pública.5
Entretanto, as eleições legislativas de 2019 trouxeram algumas novidades. Pela primeira vez, três mulheres negras são eleitas para o Parlamento: Beatriz Gomes Dias (Bloco de Esquerda), Joacine Katar Moreira (Livre) e Romualda Fernandes (Partido Socialista). Ao mesmo tempo, a extrema-direita conseguiu uma inédita representação num país, ao eleger André Ventura. Como outros populismos de direita que se têm vindo a afirmar um pouco por todo o mundo, a estratégia do Chega tem sido a de explorar o sentimento de injustiça social a partir de um discurso sobre a “corrupção” das elites. Esta narrativa não só mantém intacta a estrutura da exploração capitalista como tem vindo a assumir um discurso crescentemente homofóbico e racista, sobretudo contra negros e ciganos. Na sequência das manifestações contra o assassinato de George Floyd e da crescente indignação com atos de violência racista no país, que levaram a grandes manifestações antirracistas no país, o Chega promoveu manifestações sob o lema “Portugal não é racista” e tem vindo a tentar mobilizar politicamente o orgulho pela história imperial do país.
O que se segue?
O Portugal de hoje não é o mesmo Portugal que se apresentou como uma potência imperial nem o mesmo que atravessou boa parte do século XX enquanto metrópole colonizadora. Mas no país habita, ainda hoje, o que se poderia definir como um caldo de imperiofilia, definidor de uma parte significativa dos discursos sobre a sua identidade e a sua história. O peso de uma história colonial negada desponta no racismo manifesto na atuação das polícias, nas políticas de habitação e segregação, nas leis de nacionalidade, o discurso de crescentes setores políticos, bem como numa auto-representação do país, do seu povo e do seu passado marcada pelo lastro duradouro do lusotropicalismo. A reprodução incessante dos mesmos quadros narrativos, tem vindo a ser desafiado nos últimos anos, embora seja difícil aferir o modo como este processo se irá desenrolar no futuro. Sabemos apenas que ele terá um papel efetivo dos debates políticos que aí vêm.
Artigo publicado originalmente por Esquerda em 25/10/2020
- 1. Lusa, “Costa diz que Web Summit coloca Lisboa no “coração” do debate sobre os desafios globais”, Correio da Manhã, 6 de novembro de 2017; Carolina Brás e Rita Carvalho, “Web Summit. Cosgrave é o novo Fernão de Magalhães”, jornal i, 5 de novembro de 2018.
- 2. Michael Billig (1995), Banal Nationalism. London: Sage.
- 3. Aavv, “Um regresso ao passado em Gorée. Não em nosso nome”, Diário de Notícias, 19 de abril de 2017.
- 4. In Expresso, 12 de abril de 2018.
- 5. Para uma análise preliminar destes debates, veja-se: Trindade, Luís (2019), “Onde começa a extrema-direita?”, Esquerda, n.º 1.