Sobrevivemos?
A exposição temporária da Casa Museo de la Memoria, intitulada Medellín/es 70, 80, 90, apresenta uma cronologia dos eventos que marcaram as três décadas mais atrozes da história da segunda maior cidade da Colômbia – e uma das mais violentas do mundo – no final do século XX. Tal como Miguel Cardina comentou recentemente neste mesmo espaço, a memória do conflito colombiano adquire, neste recinto, uma configuração tal que, do ponto de vista museológico, emerge como uma “memória viva”, que só é possível compreender se percebermos a mostra enquanto conjunção do passado e do presente.
Ao sair da última sala desta exposição, o espectador depara-se com uma palavra, escrita em grandes caracteres a preto sobre um fundo amarelo (e que, aliás, recorda a sinalética de perigo): SOBREVIVIMOS. No chão, em negativo cromático, é-nos dada a versão inglesa: WE SURVIVE. Contudo (e provavelmente por causa da minha deformação profissional), havia nesse cartaz algo que me parecia incoerente e que aumentava a sensação de desassossego para quem percorre, na sua memória de colombiano nascido em Bogotá nos anos 1970, o passado doloroso de Medellín, paradoxalmente próximo e longínquo.
Em espanhol (tal como em português), as formas do presente do indicativo e do pretérito perfeito do verbo sobreviver são iguais: sobrevivimos (sobrevivemos). Ora, a palavra do epílogo da exposição que conta a passagem pelo purgatório dos habitantes de Medellín deve ler-se no presente ou no pretérito? Na minha opinião, é justamente esta ambiguidade semântica que contém toda a riqueza do percurso pela história recente da cidade. Se tivesse sido eu a traduzir aquele cólofon da “linha vermelha do tempo” de Medellín, teria optado pela seguinte solução, no intuito de manter a indeterminação quanto à instável temporalidade: WE SURVIVE(D). Já no passado sobrevivemos e, ainda hoje, continuamos a sobreviver. Sobrevivemos apesar dos muitos mortos, das vítimas, das perdas e dos traumas, mas também apesar das múltiplas apologias à cultura narcopelos média audiovisuais colombianos e estrangeiros nos últimos anos, dos “narco tours” e do Museu Pablo Escobar em Medellín.
Um outro exemplo de narrativas da resiliência encontra-se na exposição itinerante Voces para transformar a Colombia, do Centro Nacional de Memória Histórica de Bogotá. Organizado em torno de três eixos temáticos que materializam os espaços do conflito – o corpo, a terra e a água – o percurso pela exposição revela ao espectador as profundas feridas, ainda abertas, deixadas pela violência, mas também as vozes da resistência que esta suscitou. O guião da exposição justifica, de maneira convincente, os fundamentos desta escolha: “A profunda interligação entre corpo, terra e água enquanto lugares da acção humana, unida ao carácter formador de relações entre todos os tipos de seres vivos, oferece-nos um espaço narrativo – um ecossistema diverso de relatos e relações – a partir do qual pretendemos dar visibilidade aos rostos, às vozes e aos impactos do conflito armado, assim como às múltiplas formas em que o corpo, a terra e a água se erguem enquanto meios e lugares de resistência às violências.”
Para um colombiano que viveu (e ainda vive) o conflito armado através da imprensa e da televisão, este itinerário museológico pelos trilhos da memória (dos indivíduos e da terra) resulta numa experiência tão perturbadora quanto renovadora a propósito dessas vozes no silêncio. Enquanto percorria esta segunda exposição e as suas histórias de dor e esperança, recordei-me de uma das peças do museu de Medellín acima referido, intitulada Susurros: historias para gritar, e que se compõe de pequenas caixas em madeira com altifalantes, das quais emanam, murmurantes, os testemunhos das vítimas de uma realidade atravessada pela brutalidade. São todas estas vozes que, afinal, sobreviveram e sobrevivem.
Num país que ainda não fechou a porta ao conflito armado, o espaço para as manifestações da memória histórica é, ao mesmo tempo, frágil e impreterível. Na Colômbia, a construção deste discurso é uma tarefa ainda em curso, que a sociedade civil está a integrar aos poucos. Já no campo das artes, o trabalho de Doris Salcedo (exposto, por exemplo, no Museu Calouste Gulbenkian, em 2012) é talvez o mais mediático e contundente de todos, numa escala global. O mais recente projecto da reconhecida artista sobre esta temática é altamente significativo neste contexto. Resultante dos acordos de paz com a guerrilha das FARC1, está a ser erigido no centro de Bogotá um novo espaço de memória relativo a este conflito armado específico, com a colaboração de Salcedo e a sua equipa.
Com a ajuda de mulheres vítimas de violência sexual, Salcedo está a desenvolver uma intervenção num edifício em ruínas para criar um “contra-monumento”, horizontal e alheio a qualquer tentativa de glorificação do passado bélico. Nas palavras da artista, o espaço “será um museu de arte contemporânea e de memória, cujo chão ou fundamento é composto literalmente pelas armas entregues pela antiga guerrilha das FARC. Estas armas foram fundidas e reconfiguradas sob a forma do suporte físico e conceptual sobre o qual se levanta este lugar de memória”. A obra, intitulada Fragmentos, afigura-se assim como um espaço comum de memória definido pela sua heterogeneidade, numa representação do vazio e da ausência que identificam a natureza “absolutamente irredimível da guerra”. Doris Salcedo está a criar um soco, ao mesmo tempo silencioso e cheio de significados, sobre o qual virão a ser expostas, periodicamente, outras iniciativas artísticas que encenam a memória da guerra.
Estes três museus de memória viva na Colômbia vêm juntar-se a muitas outras iniciativas noutros países, destinadas a recuperar e salvaguardar o passado traumático das nações que tiveram de lidar com o horror. Após longos anos de conflitos, algumas das vítimas (nem todas) sobreviveram e sobrevivem, e estão a encontrar paulatinamente um espaço de expressão para materializar a dor e a resistência pelo viés das suas histórias, isto é, da representação dos traumas associados à violência. E talvez o mais importante disto tudo: estão a deixar um rasto para que as gerações futuras não esqueçam aquelas vivências. Quanto à sociedade colombiana, e graças a estes esforços nascentes de memória histórica, sobreviveu, sobrevive e sobreviverá.
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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.
- 1. As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), foram a maior organização guerrilheira do país desde 1964 até 2017, quando passaram a ser um partido político como consequência do acordo de paz assinado com o Governo Colombiano.