Reviver a Guerra do Pai: o fim da violência?

Luandscape 1 | 2018 | Ihosvanny Cisneros (cortesia do artista e da galeria MOVART)Luandscape 1 | 2018 | Ihosvanny Cisneros (cortesia do artista e da galeria MOVART)

Nas obras literárias da pós-memória, a figura do pai ausente é recorrente quando se quer abordar a questão da persistência do trauma pós-colonial nas gerações seguintes. Em Portugal, o romance Estranha Guerra de Uso Comum, de Paulo Faria, constitui talvez o exemplo mais significativo deste diálogo post-mortem à volta de um inquérito sobre a transmissão da experiência da guerra do pai para o filho. Contudo, neste conjunto de obras, há alguns casos em que o filho decide, através da escrita, reviver o passado traumático do pai desde o interior, num enredo que descreve com pormenores o tempo dos combates do progenitor. Nestes casos, o narrador privilegia os cenários do passado bélico para contar a guerra do pai como se ele estivesse no seu lugar.
 
O recente livro do escritor francês Thierry Crouzet, Mon père, ce tueur é um exemplo revelador da maneira como o universo da ficção se transforma no palco do conflito colonial na visão do herdeiro. O pai de Crouzet, chamado Jim no romance, combateu na guerra de Argélia pelo exército francês, na sua condição de “appelé”. Até a morte do pai, Thierry Crouzet tinha escrito livros de literatura policial, romances eróticos e outros relatos diversos de divulgação científica e cultural. Mas, perante a envolvente presença do passado de Jim na Argélia, Crouzet decidiu levar a cabo uma pesquisa documental baseada em objectos de memória e documentos diversos (apontamentos e fotografias do pai, websites dos antigos combatentes, livros de história) com o objectivo de reconstituir uma história até então silenciada. “Com a sua morte, Jim deu-me o direito de me lembrar” (p. 21), diz o narrador, autobiograficamente identificado com o autor (1).
 
A carta não lida: a caixa de Pandora da violência
Antes de morrer, Jim deixou ao filho “uma carta de assassino” (p. 11), que o narrador não se atreverá a abrir ao longo do romance. Esta será, pois, uma carta não lida, ou pelo menos não lida enquanto o romance se escreve (e se lê), num efeito romanesco clássico. A carta constitui ao mesmo tempo o ponto de ruptura com o passado e a justificação do exercício catártico do filho:

Ainda hoje ao mesmo tempo que a minha memória se reergue, continuo incapaz de abrir a carta de Jim […] Se eu não tiver cuidado, esta violência do Jim, esta violência que tenho em mim, poderá vir a moldar os meus filhos no mesmo inglório sentido. Tenho de romper com a identidade familiar. Reconstruir. (p. 26)

A escrita anuncia-se como a maneira de terminar com o passado de violência que identifica o pai falecido, como uma tentativa de travar a transmissão dessa violência nascida no contexto da guerra colonial. Deste modo, em vez de abrir a carta, o narrador prefere (re)escrever a experiência em Argélia de Jim, isto é, recriar o passado pela ficção: “Devo voltar até as origens da violência” (p. 49) afirma, como se fosse a personagem de Conrad a percorrer o rio Congo à procura do coração das trevas.
 
O romance aborda também o receio de a carta transmitir o carácter violento de Jim, o medo quanto à “vontade de Jim de fazer de mim o seu sucessor, como ele próprio sucedeu ao seu pai” (p. 91). Se, por um lado, a carta parece conter nela a essência do trauma associado à guerra de Argélia, por outro, a escrita da história do pai afigura-se como uma tentativa de reconstrução da identidade por parte do filho do império colonial francês. Noutras palavras, a carta é a caixa de Pandora de uma violência colonial que o filho quer não só compreender, mas sobretudo impedir a sua transmissão para ele e para os seus herdeiros.  
 
Escrever a violência: suprir o pai na ficção
Quando a narrativa descreve o momento em que o pai é confrontado, na fronteira entre Argélia e Marrocos, com o acto de matar, o filho tenta uma identificação: “no entanto, devo colocar-me no lugar de Jim, sentir o abalo que atravessou o seu espírito e o seu corpo […] «Sou um assassino, posso recomeçar, mudei de nome, sou Jim»” (p. 130). O livro de Crouzet apresenta um exemplo muito significativo da “passagem de testemunho” (Coquio), em que o desejo de incarnação da testemunha directa pelo herdeiro materializa-se no espaço da escrita, o qual é o lugar de confluência entre o pai e o filho, nesta busca das origens da violência: “Só agora que já cá não está posso aproximar-me dele. Então estou na carrinha GMC com os seus colegas. Parto com eles eles” (p. 136), pode ler-se (2).
 
Ora, esta tentativa de apropriação da memória do pai revela-se parcialmente falida para o narrador de Mon père, ce tueur: “Eu não soube chegar a ele, mas ele também não renunciou ao seu papel de Jim para vir ao meu encontro. […] Eu era apenas eu, ele tinha-se tornado Jim”(p. 131). Porém, a impossibilidade de suprir a figura do pai falecido através da escrita não implica a interrupção total da transmissão do passado. No mesmo momento da identificação transitória entre pai e filho, este último confessa ter herdado, malgré lui, a violência do pai (mas, também, a da mãe), e conclui: “Eu direcionei esse fluxo para a escrita. Nela, tento aprisionar o monstro que procura escapar da sua jaula” (p. 133).
 
Num dos excertos mais lúcidos do romance, o narrador de Crouzet reflecte sobre o poder da escrita como elemento central de uma catarse individual:

Quando me iniciou na caça, Jim tentou oferecer-me a sua solução para que eu contivesse a minha violência congénita. Eu não segui a sua medicação, e adotei uma outra: a escrita. Se a maioria dos autores inicia a sua carreira acertando contas com o passado, eu escrevi para negar esse passado, falei de tudo, exceto das minhas más experiências. Escrevia para sobreviver, para enterrar o monstro que tinha dentro de mim. Lutei durante trinta anos para finalmente ousar escrever sobre o meu pai. (p. 186)

A escrita do trauma considerada como uma terapia é um tema omnipresente na literatura da guerra (lembremos, para não ir mais longe, os primeiros livros de António Lobo Antunes). No entanto, neste caso a catarse se produz ao nível do herdeiro, “testemunha da testemunha” da experiência traumática, graças às possibilidades da ficção.
 
Vista pelo prisma da pós-memória, a escrita faz irrupção, no livro de Crouzet, como uma outra forma de violência que poderia chegar a perpetuar, numa óptica diferente, a transmissão do trauma colonial. As últimas palavras do livro parecem conter a demonstração quanto à impossibilidade, para o filho, de apagar completamente a memória da violência associada ao pai:

Levei a cabo este trabalho de memória para romper com a minha herança, e nada mais faço que fortalecê-la. Em vez de a amaldiçoar, celebro-a, e quanto mais me arrepio, mais me deleito com as nossas deslumbrantes perspectivas. Deve haver em nós um poderoso fundo de perversão. (p. 214)
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(1) Thierry Crouzet, Mon père, ce tueur (O Meu Pai, aquele Assassino), Paris, La Manufacture des Livres, 2019. As traduções das citações do romance são minhas.
(2) Aliás, esta questão da titularidade da experiência nas obras literárias da pós-memória é também desenvolvida por Paulo Faria, como já tive a oportunidade de o comentar aqui.
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MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

por Felipe Cammaert
A ler | 19 Fevereiro 2020 | guerra, Memoirs, Paulo Faria, violência