geometrias | 2019 | Nuno Simão Gonçalves (cortesia do fotógrafo)
Nas obras artísticas da pós-memória, são comuns os casos em que o artista revisita o passado colonial fazendo apelo a uma reinterpretação dos arquivos históricos marcantes, muitos deles silenciados ou esquecidos pelas gerações seguintes. Um dos eventos que tem dado lugar a uma série de fecundas representações artísticas é o das mãos cortadas, um dos episódios mais medonhos do período colonial da Bélgica no Congo, em que os colonizadores cortaram as mãos dos africanos, especialmente as crianças, como castigo e exemplo de autoridade. Dentre as várias obras artísticas que, numa perspectiva crítica, encenam estes factos, está a exposição do artista franco-argelino Adel Abdessemed, Le chagrin des belges que teve lugar na galeria DVIR em Bruxelas entre 1 de março e 14 de abril de 2018. Esta exposição é talvez um dos exemplos mais fortes e pungentes desta reapropriação da história colonial pela arte. Na série intitulada “Feux” (Fogos), Abdessemed reproduz várias das imagens sobre as mãos cortadas, graças a uma técnica tão brutal quanto apelativa. Por um lado, em seis portas de madeira de tila, o artista reproduz as imagens históricas das crianças mutiladas, procedendo posteriormente a carbonizar as peças. Por outro lado, a mesma série apresenta um conjunto de 84 mãos em madeira em escala real, igualmente calcinadas e dispostas no chão, numa clara alusão àquelas dos tempos da colonização. Embora tragam um certo sossego ao espectador da exposição, as outras peças que compõem a série, duas esferas carbonizadas de mais de dois metros de circunferência, lembram também dois universos (o ocidental e o africano?) devorados na sua totalidade pela ação do mesmo fogo que reduziu a carvão as vítimas das mãos cortadas. Se nas artes visuais o efeito para o espectador é aterrador, na literatura o episódio das mãos cortadas também pode provocar arrepios no leitor. No seu livro Congo (2012), o escritor francês Éric Vuillard parte de uma minuciosa pesquisa historiográfica e documental para traçar as origens do domínio deste território africano, ao mesmo tempo que descreve, de forma crítica, as práticas e abusos relacionados com a exploração colonial. Contudo, e como acontece em todos os seus livros, o que interessa ao escritor não é tanto a história oficial, mas sim os pormenores do contexto específico em que se deram tais acontecimentos. A sua crítica à história consiste em ridicularizar as grandes figuras, acrescentando-lhes o que lhes falta na faceta pública: uma dose de humanidade. Em Congo, Vuillard (que não tem nenhuma ligação biográfica com a colonização belga) aborda a memória colonial europeia através de um retrato imaginário dos bastidores da política no momento fulcral da Conferência de Berlim, em 1884. As figuras históricas como o voraz rei Leopoldo II, o explorador mercenário Stanley e Léon Fiévez, responsável por instaurar a prática de cortar as mãos dos africanos, são retratados na sua máxima crueldade: “Ressuscito-os e mostro-os aí, como macacos de circo, grandes macacos vitoriosos num oceano de miséria”, diz o autor na nota preliminar (p. 9). Desta forma, o francês cria um universo ao mesmo tempo real e falso, em que a memória do colonialismo é objecto de um julgamento a posteriori. O capítulo central de Congo intitula-se “Tristesse de la Terre”. Nele, Vuillard faz referência à conferência geográfica que teve lugar no palácio de Laeken por iniciativa do rei Leopoldo II, em 1876, e cujo resultado foi a criação da “Association internationale africaine”. Esta entidade, que tinha pretensamente fins filantrópicos, não foi na realidade outra coisa que um instrumento mais para a colonização selvagem. Do ponto de vista da composição, este capítulo funciona como um collage de imagens relacionadas com a ex-colónia, em que o autor tenciona, através da escrita, subverter o fio da história colonial. Numa das poucas ocasiões em que o narrador se afasta do retrato irónico dos protagonistas da triste história para dar asas à liberdade que tem enquanto escritor, podemos ler:
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