Incêndios e Vítimas: Uma primeira abordagem à Pós-Memória no Pós-Conflito Colombiano

Acrílico sobre papel | Almogera Abdulbagi | 2020 | cortesia do artista e da Galeria Downtown GalleryAcrílico sobre papel | Almogera Abdulbagi | 2020 | cortesia do artista e da Galeria Downtown Gallery

Num recente texto de opinião, publicado em Outubro de 2020, Ricardo Silva Romero (Bogotá, 1975), um dos mais importantes escritores e colunistas da imprensa da Colômbia hoje, refletia sobre o lugar da sua geração na – infelizmente duradoura – história da violência colombiana. Comentando a atualidade política local a partir de declarações do presidente da Colômbia Iván Duque (que afirmava, numa entrevista, querer ser «o presidente que fez com que as novas gerações fossem capazes de repensar o presente»), Silva Romero elabora uma resposta irónica em que, afirma:

[…] também não fomos nós que ateámos o incêndio que abrasa a Colômbia: não somos culpados desta violência em estado puro, nem do terror perante a verdade, nem da justiça coxa que tarda a chegar, nem dos massacres, nem dos desfalques, nem dos paramilitares, nem dos guerrilheiros, nem dos assassínios políticos, nem dos narcotraficantes, nem das bombas, nem dos sicários, nem dos sequestros, nem dos conspiradores, nem dos bombardeamentos.1

Para além de desmontar – com a lucidez e elegância que o caraterizam – o jargão e os lugares comuns próprios dos discursos políticos, Ricardo Silva Romero leva a cabo neste texto uma crucial operação concetual que, na minha opinião, contém o germe do que poderia qualificar-se como pós-memória no pós-conflito colombiano.

Quando o autor da crónica, significativamente intitulada «Incêndios», escolhe a primeira pessoa do plural para se referir à sua geração, está, de certo modo, a pôr em relevo um dos mais importantes elementos associados à pós-memória: o acesso à titularidade da experiência2. Aqui, o escritor não só se desliga dos atos de violência, mas, sobretudo, impõe uma fronteira de tipo geracional relativamente aos atores diretos (vítimas e perpetradores) do conflito colombiano.

Mas, antes de prosseguir a reflexão sobre a questão da violência na Colômbia, julgo importante trazer à tona algumas reflexões de António Sousa Ribeiro, publicadas neste mesmo espaço, e que me vieram à memória quando li a crónica de Silva Romero. No texto intitulado A pós-memória e a condição da vítima (MEMOIRS Newsletter 95, 4/04/2020), Sousa Ribeiro reflete sobre o efeito de banalização de alguns conceitos associados aos estudos sobre trauma, memória e violência, e nomeadamente da trivialização da noção de vítima, frente à proliferação recente das publicações nestes campos. O texto fala, nesse sentido, de um processo de coisificação consubstancial à categoria de vítima, assim como do «gesto do testemunho que, enquanto gesto de autoria que, através da projeção no discurso, liberta a vítima do silêncio que a coisifica».

Sousa Ribeiro chama a atenção para o facto de, na pós-memória, a categoria de vítima não ser apenas o resultado de uma simples sucessão de eventos e circunstâncias comuns que o prefixo «pós» poderia sugerir. Pelo contrário, sublinha a imperiosa necessidade de, na configuração da titularidade da experiência para o herdeiro da memória traumática – neste caso, a vítima –, se verificarem dois elementos fundamentais para a configuração da pós-memória: em primeiro lugar, um lapso que faz com que a vítima tenha a disposição mental para aceder a esse passado que, em princípio, lhe é alheio; e, em segundo lugar, uma atitude (pro)ativa, segundo a qual este processo necessita de uma construção epistemológica manifesta. Nas palavras de Sousa Ribeiro:

Pelo contrário, é inerente ao conceito de pós-memória uma ideia de distância, a existência de um intervalo, não apenas temporal, mas, igualmente, no plano da identidade assumida e da posição tomada em relação ao passado. A construção de pós-memória significa um gesto de construção de conhecimento – o seu impulso inicial é, quase sempre, a necessidade de interrogar o silêncio da geração anterior, de compreender todos os enigmas que se foram acumulando no seio de uma relação familiar frequentemente disfuncional.

Voltando à crónica de Silva Romero, a proposta segundo a qual caberia à sua geração repensar o presente contém, na minha opinião, alguns dos elementos distintivos da pós-memória, e, em particular, da apropriação da titularidade da experiência, mencionados por Sousa Ribeiro. Por um lado, o escritor colombiano desvincula-se, no seu texto, da origem dos fenómenos violentos que têm assolado a Colômbia nos últimos 50 anos, quando contrapõe o «nós» do presente ao «eles» do passado no excerto citado anteriormente. Isto cria, de facto, uma distância, não só temporal, mas, sobretudo, concetual, perante a realidade violenta de que quer demarcar-se. Por outro lado, o texto «Incêndios» contém um gesto de apropriação ciente e manifesto que, na minha opinião, simboliza o acesso à titularidade da experiência no contexto da pós-memória:

Mas a verdade é que nos calhou a nós apagar todos estes fogos. […] A verdade é que nos calhou a nós ser esta geração de gerações que tem pela frente a tarefa de desmontar a violência. […] Não foi pela nossa mão que chegámos aqui, não nos coube escrever este país que asfixiou a cidadania, tirando-lhe todo o protagonismo, mas é nosso dever não nos pormos ao serviço de nenhum dos estados desta violência que continua a sufocar o presente.

De maneira simbólica, Ricardo Silva Romero apropria-se, em nome da sua geração – e num gesto de autor muito comum nas representações públicas da pós-memória – do legado da violência na Colômbia. No entanto, o escritor propõe «escrever» uma outra narrativa coletiva, afastada dos discursos da violência: uma narrativa da reconciliação.

Ao mesmo tempo, Silva Romero responsabiliza-se a si próprio, mas também à geração de descendentes de um país profundamente marcado pela violência, pelo dever de apagar os incêndios. Assim, o escritor não se define apenas como vítima, mas também como sujeito ativo de uma mudança de paradigma. Este posicionamento faz lembrar, de certo modo, a noção de «implicação estrutural» de Michael Rothberg (e que também foi comentada aqui por Miguel Cardina), que torna a responsabilidade extensiva a outros sujeitos para além da vítima e do perpetrador3, em contextos espácio-temporais muito posteriores àqueles em que a violência se produziu.

Embora o conflito colombiano seja ainda uma realidade viva (a implementação dos acordos de paz de 2016 com as FARC é uma tarefa complexa e está longe de estar concluída), na atualidade verificar-se-iam algumas condições materiais para considerar uma abordagem do conflito desde a perspetiva da pós-memória. Afinal, e como escreveu Gonzalo Sánchez no prólogo do mais importante relatório sobre a violência na Colômbia, a memória do conflito colombiano tem coexistido com a própria violência, apesar de que só recentemente se tornou uma prioridade para a reconciliação nacional:

A memória enraizou-se na Colômbia, não como uma experiência pós-conflito, mas como uma maneira explícita de denunciar as injustiças e afirmar as diferenças. […] Como a experiência colombiana demonstra incisivamente, a memória não segue necessariamente o conflito como resultado de ocorrências políticas ou sociais; tanto a memória como o conflito são características simultâneas de uma sociedade extremamente fraturada.4

De certo modo, as condições para o surgimento de uma pós-memória do conflito colombiano foram estabelecidas com os acordos de paz de 2016. A meu ver, o texto de Silva Romero é um exemplo significativo da tentativa de «construção de conhecimento» na «existência de um intervalo» de que fala Sousa Ribeiro a propósito das vítimas, e que faz com que os herdeiros do conflito comecem a construir uma narrativa coletiva de reconciliação relativamente ao passado violento que os (nos) abrasou durante décadas.

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624).

MAPS - Pós-Memórias Europeias: uma cartografia pós-colonial é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT - PTDC/LLT-OUT/7036/2020). Os projetos estão sediados no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.  


 

  • 1. Ricardo Silva Romero, «Incendios», El Tiempo, Bogotá, 8 de Outubro de 2020. As traduções deste texto são da minha autoria. Agradeço a Paulo Faria pela revisão da versão portuguesa.
  • 2. Sobre a noção de titularidade da experiência, ver nomeadamente: Ribeiro, António Sousa; Ribeiro, Margarida Calafate. «Os netos que Salazar não teve: Guerra Colonial e memória de segunda geração». Revista Abril - Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, v. 5, n. 11, nov. 2013: 25-36. Cammaert, Felipe. “Titularidade da experiência e pós-memória nas literaturas pós-coloniais europeias”. Revista Letras Raras, 9-2 (2020): 161-179.
  • 3. «We are, like the foreigner, structurally implicated subjects, and our implication concerns the way the deeds of the past continue to shape the relations of the present. […] Though we may not be responsible for such acts of aggression in the sense of having caused them, we are ‘implicated’ in them, in the sense that they cause us». Rothberg, Michael. The Implicated Subject: Beyond Victims and Perpetrators. Stanford: Stanford University Press, 2019: 79.
  • 4. «Memory took root in Colombia, not as a post-conflict experience, but rather as an explicit manner to denounce wrongs and affirm differences. […] As the Colombian experience emphatically shows, memory does not necessarily follow conflict as the result of political or social occurrences; both memory and conflict are simultaneous features of a highly fractured society». Gonzalo Sánchez, «Prologue», in: Centro Nacional de Memoria Histórica, BASTA YA! Colombia: Memories of War and Dignity, Bogotá, 2016: 19.

por Felipe Cammaert
A ler | 10 Abril 2021 | Colômbia, maps, Memoirs, Ricardo silva Romero, silva Romero, violência