O gigante aparente: da reescrita do racismo às obras de arte da pós-memória

Ilustração de Mundus subterraneus | 1665 | Athanasius Kircher (Wikimedia Commons)Ilustração de Mundus subterraneus | 1665 | Athanasius Kircher (Wikimedia Commons)

Uma das figuras da literatura infantil que mais fascínio me tem produzido é a do Gigante Aparente. O senhor Tur Tur – é esse o seu nome – é uma personagem criada pelo escritor alemão Michael Ende (o célebre autor de bestsellers infanto-juvenis como A História Interminável e Momo) que aparece pela primeira vez no seu livro Jim Botão e Lucas o Maquinista, publicado em 19601. Há vários anos, quando li a história de Jim Botão à minha filha, que escutava entre espantada e curiosa o relato de Ende, o Gigante Aparente foi uma das figuras que mais lhe suscitou interrogações.
Não vou entrar nos pormenores das aventuras da criança Jim e do adulto Lucas, que saem da pequena e estreita ilha de Lummerland, numa viagem numa locomotora que os leva até à China para libertar uma princesa prisioneira na Cidade dos Dragões. Quero, sim, ressaltar brevemente alguns dos elementos do contexto do livro e, a continuação, centrar-me-ei na figura do Gigante Aparente, por me parecer uma metáfora que, para além de ser brilhante, pode ajudar a ilustrar algumas questões relacionadas com a pós-memória.

Segundo os críticos, para criar a personagem de Jim Botão, Ende (1929-1995) ter-se-ia inspirado numa criança indígena chamada Orundellico, originária da tribo Yámana da Terra do Fogo. Este rapaz de catorze anos foi capturado, em 1830, junto com outros três jovens nativos, pelo capitão do navio HMS Beagle como retaliação por um roubo de outro barco inglês. A família de Orundellico teria recebido, pelo sequestro da criança, um botão de nácar, razão pela qual foi rebatizado «Jeremy Button», durante a viagem que o levou à Inglaterra. O jovem nativo permaneceu um ano na Europa, quando foi levado de volta para a sua terra no mesmo barco. No regresso, Button viajou em companhia do jovem Charles Darwin, que fazia a sua primeira viagem de exploração científica, e que teve a oportunidade de conversar com o jovem indígena.
Num artigo publicado no Frankfurter Allgemaine Zeitung em 2008 2, a jornalista Julia Voss estabelece uma aproximação entre alguns dos aspectos do livro de Ende e o colonialismo inglês, nomeadamente no que diz respeito à exploração comercial das colónias. Para além disso, a autora propõe uma relação entre muitos dos episódios da história de Jim Botão e Lucas o Maquinista e a vida de Michael Ende. Voss afirma que muitos dos elementos do livro associados ao autoritarismo dos «vilões» do livro de Ende são, de facto, referências indirectas à ideologia nazi, da qual o escritor alemão, que cresceu em pleno Terceiro Reich, foi uma vítima.

Se Jeremy Button / Orundellico foi, na realidade, uma criança indígena sul-americana trazida para a Europa para ser «civilizada» segundo os critérios da época, o Jim Botão (Jim Knopf) de Ende é, no romance, um rapaz negro que chega à ilha numa encomenda dos correios, tendo sido adoptado por uma família de Lummerland. Voss defende, entre outras coisas, que a intenção de Ende é dissociar, na Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial, a teoria da evolução das espécies de Darwin da apropriação que dela fez o nacional-socialismo, e de apresentar uma visão antirracista do ser humano 3. Jim Botão seria, assim, o rapaz negro que, sem ter frequentado a escola (ou seja, sem ser vítima da escola do regime nazi em que Ende cresceu), viaja pelo mundo em companhia de um maquinista (na versão alemã há um jogo de palavras à volta do Lokomotivführer), liberta umas crianças prisoneiras da cidade de Kummerland (a cidade dos tormentos, em alemão), onde é proibida a entrada aos «dragões de pura raça» e (no segundo volume da história) torna-se rei de um mundo submerso que, como a Atlântida, ressurge das profundezas.
Mas voltemos ao Gigante Aparente (Scheinriese), a personagem fantástica que Jim e Lucas encontram a viver completamente isolado num deserto chamado «O Fim do Mundo». O senhor Tur Tur é, pois, um colosso bastante singular, já que o seu grande tamanho só é perceptível à distância, isto é, quando se encontra longe do seu observador. Pelo contrário, quando se aproxima dos protagonistas, o senhor Tur Tur tem um aspecto «normal», semelhante ao de qualquer outro ser humano.
O que faz com que esta personagem seja única é apenas uma questão de inversão das leis da óptica. Eis a maneira como o Senhor Tur Tur explica a sua condição:

Estão a ver, meus amigos? Se agora um de vós se levantasse e fosse embora, ficaria cada vez mais pequeno até parecer apenas um ponto no horizonte. Mas se voltasse outra vez, ficaria cada vez maior, até que por fim o seu tamanho real surgiria à nossa frente. Todavia, têm de concordar que essa pessoa, na verdade, permanece sempre do mesmo tamanho. Só dá a ilusão de que fica cada vez mais pequena e cada vez maior. […] comigo é precisamente o contrário. Tão simples quanto isso. Quant  0786vo mais longe estou, maior pareço. E à medida que me aproximo, vou ficando do meu verdadeiro tamanho. […] Tal como poderíamos chamar anões a fingir àqueles que parecem anões vistos de longe, apesar de não o serem. (p. 142)

Michael Ende imagina esta personagem num universo para crianças, a partir de uma premissa muito simples, que parece percorrer toda a fábula de Jim Botão: as coisas, às vezes, não são como a maioria das pessoas as vêem num determinado momento. Esta questão da perspectiva constitui, pois, o centro da alegoria à volta da figura do Gigante Aparente.
Em Jim Botão e Lucas o Maquinista, antes de o Gigante Aparente revelar aos visitantes a origem da sua particularidade, tinha pronunciado estas palavras:

— Muitas pessoas têm características especiais. Por exemplo, o senhor Botão tem a pele preta. É assim por natureza e não há nada de estranho nisso, não é verdade? Por que razão é que as pessoas não hão de ser pretas? Mas infelizmente a maior parte não pensa assim. Quando por exemplo são brancas, estão convencidas de que só a sua cor é que está certa e não lhes agrada que outros tenham pele de cor diferente. Lamentavelmente, muitas vezes as pessoas são tolas. (p. 141)

Através desta personagem e das suas reflexões, o escritor alemão quer pôr em causa os preconceitos racistas a partir dos quais a ideologia nazi tentou, nas escolas alemãs, impor a ideia de uma «raça pura». O livro de Ende traz consigo uma tentativa de reapropriação de um passado traumático, no intuito de transmitir para as gerações seguintes (os seus leitores jovens e adultos) uma outra concepção da humanidade.
Para além disso, a metáfora do Gigante Aparente adequa-se, de certo modo, ao universo da pós-memória, e nomeadamente ao das «obras de arte na condição da pós-memória» estudadas no âmbito do projecto MEMOIRS, para retomar a expressão de António Pinto Ribeiro. Seguindo os pressupostos de Michael Ende, o que se depreende desta personagem da literatura infantil é o facto de a distância (neste caso espacial) criar a impressão da alteração do tamanho do Gigante Aparente. Ora, nas obras artísticas da pós-memória ocorre um fenómeno semelhante no que diz respeito à distância temporal do artista relativamente ao passado traumático objecto de uma reapropriação. Quando, na sua obra, o artista da segunda geração (que normalmente possui um vínculo familiar com a história colonial europeia) recupera um legado distante, o que está a fazer é integrá-lo na sua vivência biográfica, na sua condição presente de herdeiro de um passado colonial. Isto é, o artista (venha ele do campo da literatura, das artes, do cinema ou da música) tem o valor de aproximar-se daquele Gigante Aparente, que ao longe parece tão desmesuradamente grande, mas que de perto apresenta umas dimensões naturais.

Poderíamos pensar que a memória colectiva do colonialismo europeu reflete uma visão semelhante àquela do comum das pessoas que, em virtude das leis da perspectiva, quando observam ao longe um corpo ou um objecto, vêem-no como uma coisa pequena que se torna cada vez maior ao aproximarem-se dele. Por outras palavras, a memória dos traumas coloniais, quanto mais afastada estiver, mais pequena parece. Mas, perante o Gigante Aparente, o erro torna-se manifesto. Em consequência, se o gigante se aproximasse destas pessoas, pensariam que iria ser ainda maior do que realmente é. Eis a razão pela qual a maior parte das sociedades europeias contemporâneas receia o confronto com o gigante que representa aquele passado, pelo que prefere mantê-lo à distância.
Pelo contrário, o artista da pós-memória adopta, de certo modo, o ponto de vista do Gigante Aparente, que tem consciência que as suas dimensões são sempre as mesmas, esteja ele perto ou longe, e que sabe que a variação no tamanho é só uma questão de ângulo de visão. Assim, a aproximação a uma realidade distante temporalmente não é motivo de mudança da sua natureza, mas apenas da posição do observador. Nessa ordem de ideias, as obras da pós-memória do colonialismo europeu invertem, de alguma forma, a perspectiva do passado: ao anular a distância que separa estas memórias traumáticas dos seus herdeiros, estas obras conseguem apresentar as histórias transmitidas entre gerações como factos cuja importância e dimensões devem ser consideradas desde a proximidade e não desde a especulação da distância.

No final da história de Ende, Jim e Lucas convidam o Gigante Aparente a viver com eles em Lummerland, assinando-lhe uma missão específica. Graças à sua condição, o senhor Tur Tur torna-se o «farol vivo» da diminuta ilha, carente de um sinal luminoso que alerte aos navegantes da proximidade da terra firme. Na história pós-colonial europeia, as obras de arte na condição da pós-memória deveriam ser esse guia que, quando as gerações futuras se aproximem dela, possam constatar que, afinal, a memória do colonialismo é um Gigante Aparente que merece também ser visto ao perto.

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MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

  • 1. Existem duas traduções para Português: a primeira, na editora Círculo de Leitores, de 1985, e a segunda, de 2019, publicada pela Editorial Presença. As citações aqui reproduzidas correspondem à segunda das edições que, no entanto, usa a expressão “gigante a fingir” em vez de “gigante aparente”.
  • 2. O texto original pode ser consultado aqui. Tive acesso a uma versão traduzida para Espanhol aqui.
  • 3. Contudo, há também algumas opiniões que denunciam um certo racismo de Ende na caracterização da personagem de Jim, pela reprodução de clichês sobre o rapaz negro.

por Felipe Cammaert
A ler | 1 Novembro 2020 | colonialismo, Memoirs, Pós-memória, racismo, reapropriação