A praça Lumumba em Bruxelas: um lugar de memória controverso
Após vários anos de debates, a municipalidade de Bruxelas inaugurará a 30 de Junho de 2018 uma praça em homenagem a Patrice Lumumba, figura política da independência congolesa e efémero primeiro Primeiro-Ministro da República do Congo, em 1960. A data escolhida para a inauguração é significativa: nesse mesmo dia de 1960 foi proclamada a independência do Congo, pondo fim à dominação colonial belga que imperava desde os tempos da Conferência de Berlim (1884).
Porém, muitas coisas aconteceram em tão pouco tempo, entre o célebre discurso anticolonial de Lumumba pronunciado no dia da cerimónia de independência perante o Rei Baudouin de Bélgica e o Presidente Joseph Kasavubu, e o seu assassinato, acontecido a 17 de Janeiro de 1961, por parte das forças secessionistas catanguesas. Lumumba só ficou cerca de três meses no cargo de Primeiro-Ministro, quando foi demitido em Setembro de 1960 na sequência do golpe de Estado liderado pelo chefe militar Joseph-Désiré Mobutu, num clima de guerra civil que levou o país ao caos. A morte de Lumumba converteu o líder do Movimento Nacional Congolês (MNC) num pária das lutas africanas de emancipação, com o qual grande parte da diáspora da África Central se identifica.
O lugar escolhido pela municipalidade é ainda mais emblemático, pois está situado na entrada do Matonge, o bairro africano no centro de Bruxelas, a poucos metros do Palácio Real e, sobretudo, próximo da estátua equestre do Rei Léopold II. Esta estátua é um dos muitos monumentos da capital belga que ainda lembram o passado colonial desta nação, e que tem sido alvo de repetidas manifestações por causa daquele discurso unívoco da memória colonial. Cabe salientar que a decisão, adoptada por unanimidade pelo governo local (o conselho comunal de Bruxelas) no passado 23 de Abril, vem reconhecer o longo combate por esta causa por parte das associações da diáspora belgo-congolesa e outros movimentos políticos afins. Foi também anunciada pela municipalidade a próxima abertura de um concurso para a implantação de uma estátua, elaborada por um artista a ser escolhido por concurso público, na nova Praça Lumumba. O facto de, em breve, coexistirem em Bruxelas um monumento a Lumumba num local simbólico e, a uma curta distância, a estátua do rei cavaleiro que iniciou a exploração colonial belga no Congo, constitui um primeiro passo para a mudança do discurso sobre o passado colonial desta nação, cuja história está fortemente ancorada à exploração colonial. Aliás, esta circunstância vem juntar-se à discussão sobre o Museu da África Central em Tervuren (iniciada já em 2005 aquando da exposição “La Mémoire du Congo”), e cuja reinauguração deverá apresentar um olhar crítico quanto à exposição do legado artístico e cultural africano, num âmbito pós-colonial.
Seja como for, a presença de Lumumba na Bélgica tem sido objecto de muitas polémicas. Recentemente, nas cidades de Charleroi e Mons foram inauguradas ruas ou placas relativas à independência do Congo e à sua maior figura. Aliás, a questão da memória colonial nos espaços públicos europeus é um tema vigente, como no caso de Berlim (já comentado aqui por António Sousa Ribeiro) ou Madrid, entre outras cidades. No entanto, os opositores a este reconhecimento, nomeadamente as associações de antigos colonos belgas, têm levantado as vozes de protesto contra aquele que consideram o principal responsável da instabilidade política e da violência (contra congoleses e belgas) que se seguiram à independência do Congo. É nestes casos de colisão das memórias privadas que o conceito de memória colectiva revela a sua complexidade.
Qual é o impacto que têm, na Europa de hoje, os poderes públicos locais e nacionais ao demonstrarem, com actos como o da decisão unânime da municipalidade de Bruxelas a propósito da Praça Lumumba, uma intenção de incluir no discurso oficial uma outra narrativa que não unicamente a do colonizador? Isto é, quem tem a responsabilidade de decidir sobre a maneira como a memória do colonialismo deve ser exposta numa Europa filha do período colonial? Por outras palavras, qual é a significação de, no discurso sobre o legado colonial, serem consideradas as vozes e visões dos afrodescendentes que fazem hoje parte de uma realidade europeia que dificilmente tem reconhecido os seus traumas e a sua invisibilidade? São estas algumas das interrogações para as quais a polémica sobre a Praça Lumumba parece apontar.
Ao fim e ao cabo, a questão da descolonização na cidade de Bruxelas, e por extensão na Bélgica, possui uma componente geracional inegável. Enquanto as lutas pelo reconhecimento de um outro discurso, afastado da dinâmica paternalista das gestas do rei Leopoldo II e dos benefícios da colonização, provêm essencialmente de homens e mulheres (congoleses e belgo-congoleses) das segundas e terceiras gerações, as reivindicações de quem se recusa a reconhecer a figura de Lumumba como um actor legítimo da história da descolonização são maioritariamente feitas por pessoas que viveram “em carne e osso” a experiência colonial. De facto, segundo a imprensa, no anúncio da inauguração da Praça Lumumba, Philippe Close, presidente da Câmara Municipal de Bruxelas, declarou que o fim do tabu consistente em fazer uma homenagem oficial à figura de Lumumba se devia provavelmente ao facto de se tratar “de uma outra geração”, ao mesmo tempo que salientava: “É uma pena que os factos do passado não possam ser mudados. No entanto, é possível aproximar as recordações”. É, nesse sentido, que um enfoque como o da pós-memória pode revelar-se essencial na construção de um diálogo sobre as recordações da herança colonial europeia.
Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº 648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.