Tradidanças, ainda há encontros humanos francos

E já vai na sexta edição o Festival Tradidanças, organizado pela ATASA (Associação de Turística e Agrícola da Serra da Arada), recuperando e dando uma nova vida às sementes deixadas pelo Festival Andanças que se realizou aqui durante várias edições, já há mais de uma década.

No Tradidanças há bailes com música ao vivo, há concertos, há animação com dj’s, há oficinas de dança e de música, há conversas e caminhadas, há massagens e yoga…

No recinto há ainda uma cantina, zona de acampamento, de restauração e bancas de artesanato e arte. 
É um festival que reúne gente de todo o país e do mundo, gente de todas as idades, procurando fazer a diferença na comunidade, é um festival feito com trabalho voluntário e com trabalho remunerado de artistas, produção e organização.

Através da música e da dança, este encontro de culturas celebra as tradições e sua recriação fazendo da ancestral nota um som contemporâneo e trazendo ao corpo a atualidade dos dias e dos encontros quotidianos.

Numa época de crescimento de ideias fascistas, de ódio e violência, num momento de ascensão política da extrema direita mundial, é emocionante e belo perceber que há encontros humanos francos e profundos, juntando vidas de tão distantes origens e pensares, saberes e fazeres numa convivência comunal pacífica e profícua.

Este ano a dança africana esteve representada pela grandiosa bailarina Marisa Paulo, com André Rodrigues Soares, Gueladjo Sané e outros incríveis percursionistas, acompanhada por percussão ao vivo, nas oficinas “Da Raiz ao Movimento” e ainda numa noite de baile e animação em que se pôde sentir como vai crescendo a comunidade que aprende e mergulha nesta cultura.

Telmo Santos, bailarino de street dance e outras danças fez também uma concorrida oficina de afro vibes.

Houve forró, kizombas e batidas noutras animações noturnas e um encontro absolutamente novo com as músicas e danças da “AfroVenezuela” com o Ensamble B11.

De Carvalhais à Venezuela

Aproveitando a presença e disponibilidade do Ensamble B11 no Tradidanças, estivemos à conversa com Belkys Figuera, para descobrir o percurso deste tão original e surpreendente grupo que mistura as tradições da AfroVenezuela com tambores feitos em beatbox, músicas com vozes a capella seguindo as tradições de gospel e harmonias, instrumentos de cordas e percussão, há invocação para o baile, celebração e ritual com sons ancestrais e contemporâneos.

Esta formação nasceu na Escola de Música e Dança da Fundação Bigott, pela orientação de Belkys, durante anos, aluna desta escola, tendo sido convidada pela sua professora para a substituir. Com receio, aceitou o desafio, abandonou uma possível carreira em trabalho com fronteiras e burocracias e estudou novas técnicas e repertórios, a fisiologia do canto e novos métodos de ensino, estando já há 17 anos na Fundação como professora.

Há cerca de uma década, Belkys Figuera tinha criado um grupo que trabalhava sobre parrandas (estilo musical tocado em época natalícia) e fez várias apresentações públicas. Belkys pediu então à direcção da escola que encerrasse a turma com a qual tinha estado a progredir. Alguns destes alunos vinham desde criança acompanhando as suas aulas, demonstrando talento e uma inesgotável vontade de continuar a aprender. Com esta turma, criou uma oficina composta por aulas de canto, dança, cordas e percussão, em que cada jovem podia escolher aquilo com que se identificava mais.
Apesar dos pedidos da professora, a direção da escola colocou quatro novos alunos nesta turma quando estava a ser trabalhado um repertório de canto tradicional de trabalho. Os novos alunos, não tendo contacto com a música tradicional, não demonstraram interesse por estes cantos de lavadeiras, colheitas, de celebração ritual.


Nas palavras de Belkys: “Estes são cantos que, para quem não conhece a tradição podem soar aborrecidos.” Nas aulas, estes quatro alunos estavam sempre meio adormecidos, enfadados, e Belkys dizia-lhes, “têm de cantar” e eles diziam que não. Então ela perguntou-lhes:”O que fazem nesta aula se não querem cantar ou participar? “Os jovens explicaram-se: “Pensávamos que esta aula era outra coisa. Nós somos cantores de reggaeton, de rap.” Então Belkys explicou-lhes que haveria tempo para esses cantos. Numa outra aula, estes alunos começaram a fazer com a boca beatbox dos ritmos de tambores e Belkys repreendeu-os, pedindo respeito para o canto tradicional que acontecia. Mas refletiu sobre o som dos “tambores bocais” que tinha escutado e que, na verdade, lhe tinha parecido extremamente interessante e, no final da aula, pediu-lhes que viessem apresentar-se. Eles ficaram assustados, pensando que Belkys iria ralhar novamente com eles. Mas foi assim, a partir deste momento de irreverência e desobediência, que se cruzou, então, o canto tradicional ancestral com este som moderno e contemporâneo, descobrindo passo a passo que conseguiam transferir para o beat box os vários ritmos dos tambores ancestrais.

Quando o seu amigo músico Aguinaldo y Gaitas ouviu este projeto, ficou surpreendido e disse:
“É o mais genial que ouvi nos últimos tempos. Refresca a música tradicional e permite levá-la até aos jovens.”
Foram surgindo vários convites para apresentações dentro da Venezuela, em ambientes mais tradicionais e também de música moderna, tendo até o Ensamble B11 aberto um concerto de rock, para o qual prepararam duas peças dos Beatles.

A Fundación Bigott é financiada por uma empresa tabaqueira, mas não há nenhuma publicidade a essa mesma tabaqueira na escola. O trabalho é separado. O trabalho da Fundação não decorre apenas na escola. Os professores vão também a outras escolas num programa chamado “A Fundação Vem à Tua Escola”. E há também um projeto para comunidades e para empresas em que os professores vão até aí fazer aulas.

O Ensamble foi crescendo nas suas apresentações e, apesar de continuarem a ser apoiados pela Fundación Bigott, que financiou o seu álbum de estreia “AfroVenezuela” (2022), têm total liberdade criativa e propriedade sobre os direitos de autor dos seus trabalhos.
Através da Fundação, colaboraram com o famoso guitarrista Aquiles Baez, que estava a gravar um disco de cantos de trabalho e pediu apoio. A Fundação concedeu-o e  pediu-lhe que incluísse o Ensamble B11 no disco,  gravando com eles dois temas. Um dos vídeos gravados com Aquiles Baez foi inscrito nos prémios de música Pepsi, muito importantes na Venezuela, e foram os vencedores nesse ano, como melhor grupo de música tradicional.

Na Fundação há também um trabalho de arquivo com vídeos, fotografias, textos e áudios, desde há 40 anos. Inicialmente, era necessário, para entrar na escola da Fundação, fazer uma audição. Agora, a Fundação está numa fase diferente e qualquer um pode entrar mesmo no nível inicial. Há também a Aulas Online, um projeto chamado Tradición en Línea, em que qualquer um, em qualquer parte do mundo, pode aprender mais sobre ritmos, canções e danças da tradição venezuelana. A Fundación Bigott não tem realizado parcerias com as orquestras de “El sistema”,  mas alguns dos seus integrantes fazem parte de orquestras e coros clássicos.

Ao início, o Ensamble chamava-se “Muchachos da Fundação Bigot” ou “La Muchachera de Belkys”. Até que, num concerto de Natal, num importante teatro, um amigo de Belkys que era o apresentador do evento disse lhes que tinham de arranjar outro nome, com mais presença e solenidade. Assim, os jovens músicos deliberaram em cinco minutos: “Ensamble B11”, B de Belkis. 12 não poderia ser pois soaria como a vitamina B12, e tampouco B13, porque seria um número mal considerado. 11 é um número afortunado e assim ficou B11, apesar de, na verdade, o conjunto nunca ter tido 11 integrantes.

A propósito do panorama cultural da Venezuela, Belkys contou que, na Venezuela, há ainda diversas celebrações populares nas quais as tradições continuam vivas, havendo muita gente que sabe os cantos e danças. Há ainda um respeito pela tradição que implica por vezes um estrito zelo em que não deixam que qualquer um toque ou dance, apenas os que são conhecidos. Se alguém quiser entrar na música, tem de pedir autorização. Em algumas aldeias não é permitido que uma mulher dance vestida de calças, tem de usar saia. Faz ainda parte das atividades da Fundação a pesquisa e criação de arquivo, com bastante trabalho de campo e investigação. Percorrem aldeias e vilas e falam com vários elementos, os que tocam, bailam e cantam.

Para Belkys, Caracas é um caldo de culturas. É uma cidade esponja, nas suas palavras, que absorve as tradições da Venezuela, por causa das migrações de todo o país e da Colômbia, Peru, Uruguai, Haiti. Na capital, há uma fusão de tradições e influências. Há salsa, merengue, reggaeton, músicas muito ouvidas pelos jovens. E no Ensamble B11 demonstra-se que a tradição se pode misturar, mantendo o respeito e a verdade sobre a criação. Ao princípio, gente ligada à tradição pediu a Belkys que tivesse cuidado com o que propunha. Mas em geral, têm recebido sobretudo apoio e reconhecimento. Como diz Belkys:  “A tradição renasce ao ser vivida. Enviei um vídeo de uma das aulas aqui no Tradidanças, a um amigo, e ele disse-me que também queria vir mostrar a música da sua aldeia pois estava espantado com a cara feliz das pessoas. Este festival é muito diferente por ser tão livre. As pessoas desfrutam a partir do que sentem. Não há limitações, todo o mundo se deixa levar pelo que está a ver e sentir e deixa-se incorporar e aflorar. Toda a gente participa e é um ambiente de família, um encontro livre de música e danças de todo o mundo, aberto a toda a gente. Para além do mais, é um sonho estar dentro da natureza. É algo que torna este festival ainda mais especial estar nesta montanha. Para nós tem sido incrível! E eu creio que é também este ambiente natural que dá energia às pessoas para bailar, para desfrutar, para estarem alegres o tempo todo. Foi tudo muito bonito aqui. Aplaudo esta iniciativa, muito completa com gastronomia e artesanato, passeios. Lá na Venezuela temos montanhas muito bonitas, temos também desertos e imagino que, se levamos esta ideia podemos criar um festival maravilhoso como este. Também temos festivais sobre música e dança tradicional, mas sempre em ambientes urbanos.”

Na Venezuela, a maior parte das pessoas escravizadas vieram a partir de Cabo Verde, Guiné e Costa do Marfim. A escravatura foi permitida no país de 1526 até 1800. No dia 22 de junho de 1749, houve uma revolta de escravos negros pela liberdade religiosa. Durante as procissões de São João, centenas de negros escravizados ocuparam a catedral de Caracas com seus tambores de Xangô. A partir dessa data, os principais líderes quilombolas conseguiram aumentar a resistência. Desde 2019, a data passou a ser reconhecida pelo Câmara de Vereadores da capital como o Dia da Rebelião Espiritual de Caracas.
Na Venezuela não existe candomblé como no Brasil, estando a tradição de afrodescendentes ou expressa pela religião católica ou na denominada de santeria. A santeria foi trazida sobretudo a partir de Cuba, mas há também muita charlatanice reconhecida por todos, mas disseminada. Por vezes, grupos são convidados a tocarem algumas celebrações de santeria, como as de Santa Bárbara. Os afrodescendentes venezuelanos celebram os santos populares, como em Portugal. O São João, o Santo António e São Pedro têm festas grandiosas.

O passado de escravatura e colonialismo ainda deixa marcas no quotidiano, mas há várias instituições de proteção e denúncia de abusos de xenofobia e de racismo. Belkys relatou que, durante esta tournée, raramente se sentiu discriminada, sendo que na maioria das terras por onde passaram foram muito bem acolhidos. Apesar de raras, algumas vezes sentiram um desconforto, provocado por  um racismo mostrado nos olhares e pela forma como se afastavam à sua passagem.

Em termos políticos Belkys considera que, apesar de sabermos que a política está em tudo, a arte deve manter-se afastada da política.
“Eu canto aqui e ali para o governo e a oposição, representando uma arte que junta todos, uma união. A minha posição é sempre não me relacionar com nenhum partido.”

A primeira saída do Ensamble B11 para fora da Venezuela deu-se para Portugal, para o festival EXIB Música, realizado em Setúbal, em 2023, uma mostra de música ibero-americana. A partir daí surgiram convites para diversos lugares, Tradidanças, Madrid,  Áustria, República Checa. No outono de 2024 irão participar no WOMEX que irá realizar-se em Manchester, espera-se que a partir daí surjam muitos novos convites internacionais para este Ensamble B11, tão alegre, original e com uma qualidade musical fabulosa.

Para o ano haverá mais Tradidanças em Carvalhais, para que possamos reinventar o mundo em cantos e bailes. Até lá acompanhem e apoiem o trabalho da ATASA e de outras associações que recriam comunidades culturais.

https://www.brasildefato.com.br/2019/06/26/conheca-a-festa-afro-venezuelana-de-sao-joao-uma-das-mais-populares-no-pais

https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5663398

https://www.guatacanights.com/noticias/ensamble-b11-el-caribe-venezolano-en-voces

https://www.fundacionbigott.org/tradicion-en-linea/?v=a99877f71bd9

Fotos da autora.

 

por Maria Prata
Vou lá visitar | 18 Agosto 2024 | Belkys Figuera, dança, festival, Tradidanças, Venezuela