Doidão Bahia

Brasil, Bahia. Percorrendo as ruas da cidade de Cachoeira, na fronteira entre o sertão e o recôncavo, não há como não reparar no ateliê de Doidão. As duas portas clamam para a rua: aqui há arte! Não são só as carrancas feitas para atrair turistas, aqui deparamo-nos com uma arte bruta e impressionante.

Faz já mais de um ano que visitei o ateliê do escultor José Cardoso de Araújo, Doidão, 45 anos de arte. Ao entrar encontra-se o artista, postura descontraída, conversador nato, disposto a desenrolar histórias de prender o ouvinte.

Doidão vive por dentro da cultura afro-brasileira e seus representantes mais antigos e legítimos, como a Dona Dalva do Samba de Roda, ou as negras da Irmandade da Boa Morte. Era amigo de Jorge Amado e aproximou-o da vida cultural e social de Cachoeira, acompanhando-o na descoberta irmandade da Boa Morte e outros traços importantes desta cidade banhada pelo rio Paraguaçu.

A arte do escultor está embrenhada nessa cultura afro-brasileira, nos sincretismos do candomblé e nas miscigenações culturais que fazem a história brasileira. Essa vivência cultural é inteira, como a que referiu Jorge Amado no livro Carta a uma Leitora sobre Romance e Personagens, publicado pela Fundação Casa Jorge Amado em 2003.

Que pálida seria a descrição dessa festa de candomblé se o conhecimento do artista fosse apenas de observação, mesmo de larga e aguda observação, se não houvesse entre o criador e a criação um anel de sangue, aliança de noivado e casamento, esse bater de coração em uníssono. Como quereis que vos dê viva e ardente a imagem desse mundo mágico e defeso mais além do pitoresco, do decorativo e da ilustração, que eu vos apresente sua verdade, seu segredo, sua íntima ressonância, se dele eu souber apenas por ter assistido algumas cerimónias, sentado entre os visitantes, por vezes armado apenas de curiosidade vã quando não de preconceito. Se vos posso falar de tudo isso sem mentir nem degradar, é porque tudo isso é parte intrínseca de minha vida, de meu ser, da minha própria verdade. Não se trata, assim, senhora, de crer e de não crer, e sim, de ser ou não ser. Essas coisas eu as trago dentro de mim, não as obtive, não as comprei em nenhum mercado de conhecimento ou de sentimento, são minhas de direito e de algumas eu sei mesmo antes de tê-las visto, eu as trago dentro de mim.

Doidão vive assim, por dentro dos sincretismos e das substâncias com as quais trabalha. Esculpe em madeira morta. Aproveita raízes arrancadas de jacarandás já mortos há décadas. Negoceia com mestres de obra ébano e outras madeiras que recolhem nos seus trabalhos de restauro em casas centenárias da cidade. Revitaliza uma velha jaqueira, usa processos vários para aceder à árvore.

Falando do processo criativo quando está perante a madeira, o artista explica que vai da contemplação à observação e depois aproveita o movimento da Natureza transformando uma raíz num santo, um tronco numa ceia de orixás, uma velha madeira de um sobrado numa mãe parideira.

Na sua loja ateliê encontramos orixás para decoração, orixás para protecção das casas e também para protecção pessoal. A sua obra está imbuída de sincretismos. Doidão criou e segue recriando esculturas em que está representada A última ceia dos orixás, procissões dos Negros da Boa Morte, anjos e santos, virgens grávidas, mães negras, santas amamentando.

Sobre as suas crenças religiosas Doidão é claro: Estudei o candomblé para me inteirar dessa linha afro que sigo. Dou um “banhozinho” de vez quando para o descarrego apesar de não ser assíduo, como não sou um frequentador habitual da igreja. Sou mais de chegar debaixo de um pé de pau folhado e pedir a misericórdia de Deus. É lá que eu o encontro, na Natureza.

Quando o belíssimo livro sobre os escultores populares do Nordeste brasileiro O Reinado da Lua foi lançado em 1980, Carlos Drummond de Andrade escreveu sobre Doidão Bahia e seus colegas de ofício no Jornal do Brasil:

A lua reina sobre os artistas que nasceram artistas, não precisam academiar. A Lua os inspira e fataliza para a criação. Como não amar de amor enlevado esses homens supostamente rústicos que têm tamanha capacidade de interpretar a vida, exercendo a imaginação com as mãos? Rústicos somos muitas vezes nós, os sofisticados habitantes das capitais, que não sabemos manejar a ferramenta dos dedos e só nos distinguimos na abstracção. Os do Reino da Lua, estes, sim, merecem respeito e alegre homenagem.

Doidão teve um lugar de exposição global e crescimento pessoal na Praia do Forte. Klaus Peters foi o seu mentor. Este iniciou em 1972 um projecto visionário de preservação e desenvolvimento ambiental nesta praia. Quando conheceu Doidão e a sua arte convidou-o para criar e divulgar a sua obra, arranjando-lhe um espaço para loja e ateliê. Infelizmente, hoje a Praia do Forte é muito mais um empreendimento turístico e de sobre exploração de recursos do que um lugar de sustentabilidade da Natureza e partilha cultural. Lá, sobrou um lugar em Hotel de luxo para o mestre expor a sua arte mas não para criar.  

Mas Doidão tem ainda outro ateliê fora da cidade de Cachoeira, numa chácara em Alecrim. À boleia na sua carrinha, atravessámos longas estradas de terra batida e esburacada, chegando a um lugar de campos e hortas onde seu tio, Boaventura Sousa Filho, escultor conhecido por o Louco, ergueu uma casa de imponente e circular arquitectura. Aí, Doidão guarda e esculpe as suas obras maiores, chegando a criar totems de orixás com vários metros de altura. Entre os vários projetos e sonhos fala-nos da criação de uma escola de artes e de um centro cultural, que beneficie toda a região com a experiência da arte e da transformação do quotidiano.

As suas obras já viajam acompanhando o ritmo da globalização, quem sabe então se este sonho de arte-educação se materializa e dinamiza a vida cultural de cachoeira fazendo pontes entre o sertão o recôncavo, o brasil continente e o mundo imenso de outros continentes.


 

por Maria Prata
Vou lá visitar | 11 Junho 2013 | afro-brasileira, Doidão, escultura