As culpas da história
Por ocasião dos 60 anos da independência do Congo, em 30 de Junho passado, numa carta ao presidente congolês, Félix Tshisekedi, o rei Philippe da Bélgica apresentou oficialmente, pela primeira vez, desculpas (“les plus profonds regrets”) pelas “feridas coloniais” que a Bélgica provocou à sua antiga colónia africana. A manifestação do soberano inscreve-se no movimento de revisão (complexo, tumultuoso, mais reativo do que reflexivo) do passado de injustiças que se manifestou através de multíplices atos iconoclastas em relação aos monumentos que são símbolo de violações históricas de direitos, hoje, consagrados.
A atitude do monarca não é inédita: em 2000 houve o ato de “purificação da memória” do Papa João Paulo II que, numa liturgia especial, intitulada “Confissão das culpas e pedido de perdão”, proferiu diversas orações, algumas das quais reservadas aos crimes que mancharam a Igreja no passado (contra a paz, as culturas, as outras religiões, os direitos dos povos, contra a dignidade das mulheres, contra Israel). Depois da manifestação penitencial o Papa pronunciou um articulado “nunca mais” em relação ao passado.
Gestos como estes exibem uma fratura com o passado, possuem um fôlego – simultaneamente espetacular, simbólico e político – relevante. No entanto, os dois casos mencionados, em particular o mais recente e relativo ao colonialismo, colocam algumas questões éticas e jurídicas extremamente complexas que se referem a atos hoje percecionados como erros cometidos na história – mais ou menos longínqua – por comunidades, e abrem um espaço crítico em relação às heranças das violações ocorridas noutros tempos que deixam um lastro nos contemporâneos.
Evidenciei acima sobretudo os verbos usados nas circunstâncias evocadas, porque nas ações expressas se insinuam os problemas com que nos depararmos sempre que ocorre um “uso” do passado (que pode ser repetição do idêntico ou tradução da diversidade). Reúno aqui algumas considerações que nunca esgotariam um problema de tal magnitude, mas que procuram contribuir para uma reflexão que deve ser ampla e bastante participada. Uma reflexão que se liga não tanto ao nosso passado, mas ao nosso futuro.
Alguém poderia achar suficiente um “pedido de perdão” público (que não são simples desculpas mas algo que apela a uma dimensão relacional bem mais articulada) relativamente ao passado: trata-se de uma revisão até radical que mostra um espírito crítico não passivo. No entanto, temos em torno do termo perdão (na sua aparente aura religiosa) uma constelação a que a filosofia contemporânea nos acostumou de palavras-conceitos não coincidentes, com algumas tangências. E cada uma destas constelações levanta multíplices problemas e traz exíguas soluções.
O século XX foi o tempo que melhor definiu o alcance histórico e político dessas palavras-conceitos cruciais: perdão, esquecimento, amnistia, imprescritibilidade, remoção e, como possíveis expansões consequentes, restituição, compensação, reparação, restauro, etc. Na esteira de uma reflexão sempre sinuosa que envolve filósofos como Vladimir Jankélévitch, Paul Ricoeur e Jacques Derrida (todos interrogando o silêncio da Shoah) o perdão foi inscrito no campo do imperdoável, do inexpiável. Neste sentido, e sem paradoxos, poder perdoar tem a ver com o impossível. Mais recentemente, no plano da etimologia, Ettore Finazzi-Agrò (2018) tem vindo a mostrar que o verbo perdoar está ausente no latim e no grego clássicos: isto significa que não pertence, como de imediato se poderia pensar, à esfera da ética cristã, onde se afirma, diferentemente da vulgata, o verbo dimittere. O pedido de perdão levanta portanto um a priori conceitual e jurídico de enorme complexidade; um dos verbos com que se expressou uma ação congruente de perdão – condoar, no português antigo - deixou como rasto, sempre em português, uma palavra envolvida em mistério como a varinha de condão, que mostra a sua natureza excecional e anti-histórica.
Indo além da viabilidade ou não do perdão, surge, porém, um problema anterior: em que nome se endossa a culpa de ações do passado que parecem injustas? Só uma narrativa pretensamente homogénea (sem fraturas, hiatos, vazios), descarada e ingenuamente nacionalista pode pensar que há uma continuidade ininterrupta entre quem praticou a escravatura, a inquisição, o colonialismo, a exploração, e outras formas estruturais de injustiça e os nossos dias. Esse é o papel da narração comunitária, mas onde reconhecemos que as continuidades são substancialmente mitológicas e deliberadamente falsificadas.
No plano teológico, as assunções vicárias de culpas evocam a antiga doutrina do traducianismo (II século d.C.) de acordo com a qual a alma do pai se reproduz na alma dos filhos. Assim, as culpas do pai transmitem-se para os filhos, o que explicaria, como S. Agostinho observara, a transmissão histórica do pecado original. Com a idade moderna, afirma-se plenamente a interpretação oposta, o criacionismo, sobre a unicidade da alma imposta por Deus, e assim a impossibilidade de transmissão de culpas de uma geração para a outra. Uma interpretação que se inscreve no desenvolvimento moderno da noção de responsabilidade individual.
Pedir perdão em nome dos antepassados configura um dispositivo que, do ponto de vista crítico, é complexo. Esforça-se por manter ativa a assim chamada “culpa inocente”. Uma culpa que remete diretamente para o trágico da tragédia clássica. Nesta, os heróis (e Os Lusíadas, na épica, são também um bom exemplo desta herança do classicismo) são inocentes porque os atos que praticam são da esfera de responsabilidade dos Deuses. A culpa inocente surge portanto quando um ato de violação é cometido por uma imposição alheia. Este é o paradigma da culpa frequentemente invocado, por exemplo, no estado de guerra, quando crimes são cometidos a partir das ordens dadas pelos superiores hierárquicos. Mas depois do século XX, a estrutura da culpa muda profundamente: o abismo sem retorno de Auschwitz, o horror criado por uma racionalidade iluminada como foi o colonialismo moderno, impedem a reprodução da culpa trágica, mudando de fato as relações de força da ética contemporânea, no conflito abissal entre a inocência subjetiva e a culpa objetiva. Assumir uma culpa por atos de outros no passado, como assistimos agora, parece configurar a reativação da culpa inocente, o que dificulta uma reflexão da ética contemporânea que valorize em particular a responsabilidade do indivíduo perante a culpa, aplicando o novo paradigma da culpa assim como o século XX o plasmou.
Além do seu lado público exterior e do seu simbolismo, o que é que poderia significar uma assunção de culpa em relação a crimes do passado? Que margem é que atos como estes deixam na consciência do presente? A resposta não é imediata e expõe sempre um limite intransponível. Ao mesmo tempo exige que a resposta seja procurada, com insistência. Num ensaio recente, a filósofa política Magali Bessone, Faire justice de l’irréparable. Esclavage colonial et responsabilités contemporaines (2019) oferece um mapa não simplificador das aporias com que nos deparamos quando tentamos assumir a responsabilidade de atos históricos. A filósofa chega a definir uma atitude criticamente ativa em relação às culpas da História que ultrapassa o círculo restrito do perdão. Trata-se de uma atitude não ligada a um genérico pedido de perdão, mas a um articulado e reflexivo exercício. Não é de fato possível pensar em reparações que só se entenderiam dentro da lógica individualista e retrospetiva da justiça corretiva. É necessário pensar em injustiças históricas estruturais não a partir de uma ingénua tentativa de reparação dos crimes do passado, que são irreparáveis, mas numa história que é necessariamente sem perdão. No entanto, uma intervenção de algum modo reparadora pode articular-se nas atuais estruturas remanescentes das violações de direitos, praticadas no tempo presente.
A escravatura está jurídica e historicamente abolida, mas os seus efeitos deformadores continuam a projetar-se como sombras no tempo presente: racismo, discriminações sociais, atraso e subdesenvolvimento dos “suis” e das periferias. A responsabilidade persiste e é nossa, individualmente nossa, aqui e agora, mesmo perante a irreparabilidade dos crimes do passado. E é neste tempo presente que deve emergir a ação de uma memória política viva das injustiças. Uma atualização que não se pode limitar a uma retórica pseudo-restauradora, mas que impõe pensar, no presente e no futuro, os imperdoáveis erros do passado, as inextinguíveis culpas de uma história, também e sempre nossa.
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