Mitologia e memória
As neurociências ainda não explicaram integralmente o funcionamento da memória. Do ponto de vista cultural, pelo arquivo enorme de obras artísticas que se realizaram sobre o desejo de salvação do passado, possuímos alguns elementos, às vezes predominantemente figurais, que mostram em detalhe a urdidura da teia de Penélope da memória, como a definia Walter Benjamin, referindo-se a Proust.
Há uma redundância de metáforas que expressam a memória ou o seu contrário, o esquecimento. Mas, como apontado por Harald Weinrich, as imagens que representam a memória, na história das ideias ocidentais, não são ilimitadas. Na verdade, baseiam-se em torno de dois arquétipos essenciais: o do armazém e o outro, de origem platónica, o da lousa. O primeiro, ligado à retórica, refere-se ao campo da memória, o segundo, ao da recordação.
Dar expressão à memória a partir de metáforas é significativo porque assinala um aspeto fundamental da memória a que sempre ficamos presos quando tentamos delimitá-la. A memória deixa-se prender em particular através do que Aleida Assmann chama mediadores. Trata-se dos modos com que conseguimos dar uma forma mais concreta à natureza fluida, complexa e escorregadia da memória e da recordação como matéria, ao mesmo tempo física e metafísica.
Um papel relevante como mediador da memória é desempenhado pelo mito. O acesso ao passado é frequentemente mediado não pela exclusividade da experiência, pela vivência direta de fatos ocorridos, mas estes só adquirem significado a partir de outros elementos arquetípicos, de campos diferenciados, como o cultural, o simbólico, o imagético.
Estabelecer uma conexão entre o mito e a memória conduz-nos ao confronto imediato com a porosidade definidora do mito que oscila entre categorizações muito articuladas, como na antropologia ou na filosofia, e um uso comum e genericamente invasivo, que ocupa variados setores da cultura. Em termos funcionais e menos abstratos, a poesia clássica grega contrapõe o mito ao logos porque este é, tal como o mito, composto por palavras, discursos, mas motiva logicamente os seus pressupostos. O mito pelo contrário deriva da oralidade e trata do que tem uma raiz fantástica. Ao mesmo tempo, o mito mantém algum contato com a experiência e o mundo, sendo uma espécie de disfarce da realidade, embora não precise dela para adquirir significado. Esta consideração permite aproximar mito e imagem sendo esta aliás a forma evidente do mito, pois também ela funciona de modo análogo porque também tem no traço anti mimético o seu elemento constitutivo. O aspeto relacional é importante porque pode remeter para o evento cultural -real ou imaginário- que funda a comunidade que graças a ele se reconhece, conservando a memória dos seus começos.
Do ponto de vista cultural, em finais da década de 50, Roland Barthes encontra nas mitologias configurações ideológicas particulares, baseadas em imagens que permitem uma leitura atenta dos fenómenos da cultura, inclusive de massa e de consumo. A função do mito não é encobrir as coisas, mas deformá-las e condicioná-las naturalizando a sua caducidade e artificialidade. É por isso que as mitologias são poderosas lupas que ampliam aspetos encobertos e menos visíveis das sociedades modernas.
O uso do mito pode criar um acesso excecional ao passado, sobretudo quando este não se expõe totalmente nos fatos que o constituem. O potencial desta abordagem torna-se muito claro no ensaio mais divulgado de Eduardo Lourenço, “Psicanálise mítica do destino português” que integra O labirinto da saudade, o livro autointerpretativo no tempo da crise de uma acutilante ontologia de Portugal que celebra hoje, em 2018, os 40 anos da sua primeira edição. Lourenço opera um corte profundo nas mitologias históricas em que Portugal se reconhece desde os seus primórdios: o irrealismo, a função ativa do mito, os rastos da história como trauma, são os ingredientes não só de um olhar novo, mas de uma irreverência anticomplacente virada para a apreensão do passado. A desconstrução de um passado tão distorcido e indecifrável é possível porque a ficcionalidade do mito corroeu a fatualidade da história, reclamando um tratamento crítico próprio (aquele que Lourenço chama de psicanálise, mas poderia também denominar-se mitocrítica) para entender o funcionamento profundo da consciência coletiva portuguesa perante as catástrofes da história. O conhecimento do passado dá-se pela análise dos mitos e das imagens, que se depositaram sobretudo no arquivo da literatura, e que plasmaram a ideia autocentrada de um destino português.
O gesto crítico de Eduardo Lourenço desvenda-nos as modalidades com que a memória cultural se relaciona com a força profunda das mitologias. As imagens cristalizadas do passado oferecem um campo analítico em que não só a memória pode ser desmontada e pensada, mas também nos mostra o papel ativo do mito na sua construção. O problema interpretativo não será separar o mito dos fatos para isolar estes últimos, mas ver como a combinação imagética e inseparável dos dois se opera na articulação íntima da história. As mitologias são um mediador do passado no presente, um filtro de imagens que participa da relação não coincidente entre o passado, assim como ocorreu, e a sua reconstituição - parcial, seletiva, condicionada- no presente. Os mitos atuam como as imagines agentes da mnemotécnica clássica, ou seja, imagens ativas ou ativadoras que pela sua força permitem a fixação em memória. O mito possui uma força que torna a sua imagem inesquecível e serve como suporte para propagar uma memória mais ampla.
Nesta linha, a mitologia desempenha uma função de conservação, mas também de transmissão do passado e, numa discussão sobre a pós-memória como a nossa, torna-se essencial admitir a função do mito na passagem temporal, ao lado de um contexto corroído pelo tempo. Na verdade, a memória age de modo duplo em relação ao passado: mitologiza o passado e, por sua vez, é mitologizada por ele. A recuperação da vivência, por exemplo, de uma época simbolicamente marcada como a infância, projeta uma idealização do tempo, assim como a mitologia cultural da infância (com as suas matrizes românticas, que se estruturam numa multiplicidade de manifestações culturais) funciona como mediador na evocação do passado. Portanto, a corrente de mão dupla da mitologia, condicionará sempre as imagens recuperadas, pela seleção de materiais e de pontos de vista. Sem o princípio de realidade estar em jogo.
O mito, ao mesmo tempo que dissimula também revela a ideologia em que se inscreve. É oportuno lembrar que a memória também se configura como um simulacro onde a questão não é a do falso ou do verdadeiro, mas a do acesso subjetivo, o mais amplo possível, à fruição do tempo passado. Se quisermos, a pergunta que surge é a seguinte: quanto é que os mitos, como mediadores, favorecem ou impedem a transmissão da memória interpessoal? Sobretudo quando a função de “imagines agentes”, que constituem as mitologias, acrescenta força à relação de pertença (ou de fratura) que se estabelece entre passado e presente, entre uma geração e a outra? Se os mitos são uma parte naturalizada e portanto, às vezes, invisível, da memória, o que os carateriza é o uso que se pode fazer deles e que remete para duplicações, deformações ou reformulações pelo contexto.
Recentemente tive a oportunidade de participar num interessante Colóquio, em Bissau, organizado pelo projeto CROME do CES-UC, “Memórias e legados das lutas de libertação”. Nos vários contextos de discussão emergia claramente uma divergência, às vezes até radical, entre a geração dos que construíram a independência - a única conquistada militarmente no quadro das guerras de independência contra Portugal- e a geração mais nova que critica os erros que depois marcaram o pós independência e tornaram a Guiné um país com graves e inegáveis problemas de desenvolvimento. No entanto, o que emergia com análoga evidência era que perspetivas tão irredutíveis se fundavam sobre uma mitologia comum – o reconhecimento da ação e do pensamento de Amílcar Cabral na construção da independência do país. As memórias e as reconstruções podiam ser muito diversificadas, mas a presença de um substrato compartilhado, mostra, por um lado, como a mitologia funciona como disfarce e como pode ser submetida a ideologias muito diferentes ou até em conflito, e, por outro lado, multiplica as ocasiões de reconstrução de relações comunitárias e de vínculos de pertença.
O comum mostra sobretudo como memória e mitologia são vasos comunicantes de um único processo de reconstrução do rosto do passado – um rosto que pode ser diferente conforme os modos da sua produção, ou seja, de re-uso de mitos e memória – que garante não só a sua conservação contra as injúrias do tempo, mas facilita também a possibilidade de transmissão e de tradução de uma geração para outra.
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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias,financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.