A memória ensina ou ensina-se a memória?
A relação entre a memória e a educação é, no mínimo, exigente. Educar significa, sobretudo, sensibilizar sobre como aprender do passado e pensar assim na sua atualização, também através de disciplinas específicas, como por exemplo a História. Mas será suficiente esta consideração tão imediata, que assume uma óbvia contiguidade entre o que herdamos do passado e o que transmitimos como conhecimento? A resposta é complexa.
Nunca tivemos acesso a tantos arquivos e documentos como hoje, usando simplesmente um teclado. É desnecessário ir à procura do passado: se quisermos, o passado, nas suas multíplices dobras, está - ainda que no simulacro digital - ao nosso alcance. Está à nossa frente. No entanto, o paradoxo é evidente, pois a facilidade de acesso corresponde não a uma potencialização, mas a uma deterioração da nossa capacidade de reter e entender o passado aproximando-nos dele e de construirmos uma memória menos precária; uma memória que ultrapasse as barreiras das recordações individuais ou das sombras de imagens projetadas nos ecrãs que não remetem para nenhum conhecimento.
Muitas são as causas destas assimetrias da memória, que parece decalcar – e até aprofundar – a “Segunda consideração intempestiva sobre a desvantagem da história para a vida” de Nietzsche, nas suas possibilidades e perdas.
Podemos ainda considerar o que se tentou fazer perante o abismo da Shoah, o coração de trevas do século XX: poucos eventos – inclusive pelas culpas coletivas que implicava –- foram tão longamente exibidos, mostrados e comentados. Sobre o extermínio dos judeus na Europa - uma definição já por si parcial -, construiu-se um vastíssimo arquivo público e uma musealização considerável. Por um lado, positivamente, resgataram-se assim do mnemocídio, racionalmente planeado pelos próprios perpetradores, memórias em forte risco; mas por outro, no campo educativo, aquela famosa “superação do passado” (Vergangenheitsbewältigung) que foi um tema recorrente de cursos, de visitas, de conferências ou de programas escolares, não produziu os efeitos esperados, ou seja, não produziu a rutura definitiva do dispositivo de reprodução do racismo, do fascismo, do antissemitismo, do patriarcalismo e de outras formas autoritárias de discriminação. Muito pelo contrário, os ressurgimentos das intolerâncias discriminatórias, as regurgitações de racismo e de colonialismo, estão presentes nas sociabilidades contemporâneas, fortes como nunca. A institucionalização da memória (com a criação de eventos públicos disciplinares ad hoc, como por exemplo, o dia da memória, em 27 de Janeiro) criou imagens e imaginações que, no entanto, perderam muito da eficácia de citar e de, indiretamente, testemunhar, o passado traumático. A memória não se pesa ao quilo.
Não se pretende aqui condenar uma função sempre positiva de valorização da memória. Se a história se espelha no valor ciceroniano de magistra vitae, a memória resgatada e valorizada possui um valor de monumento. No sentido etimológico, a palavra, derivada do verbo latino monere, significa lembrar, mas também admoestar, avisar, informar. Assim, a presença da memória cria um elo com o passado em si positivo. A memória é sempre portadora de algum conhecimento, a sua ativação é em si potencialmente educativa.
Mas bastará só a presença da memória para pensar, criar, realizar um evento educativo? A resposta é, infelizmente, negativa. Sabemos que frequentemente, nas salas de aula, por ocasião de comemorações de relevo, se usa o cinema para criar um contacto imediato com a monumentalidade de memórias também incómodas. Às vezes, os esforços de salvação de memórias em risco, que são imensos e fundamentais, induzem a pensar que o gesto salvífico é por si só suficiente para promover uma inscrição estável do passado dentro do tecido cultural e social contemporâneo. Não é assim. A salvação da memória conserva passados ameaçados, mas não ativa nenhum tipo de praxis no uso daquele passado. Se quisermos encontrar uma metáfora para este gesto, podemos pensar que é como se um filólogo conseguisse, através de um paciente trabalho de reconstituição, recompor um texto (e, portanto, um sentido) perdido de uma obra deteriorada e desmembrada. E, uma vez concluído esse trabalho, a obra ficaria ilegível e inacessível num espaço fechado, sem condições efetivas de leitura e apreciação.
Por si só, o abandono da memória a uma possibilidade de significação só como um resto ou, iconicamente, como uma ruína, típica de uma tendência cumulativa e não crítica, deixa emudecidos os eventos a que se remete. E os conhecimentos que poderiam ser transmitidos tornam-se intransmissíveis e perdidos. A especialização da memória no século XX, provavelmente o seu traço ontológico mais marcado, criou, de facto, uma opacidade nos escombros que sobraram da destruição: os escombros já não possuem a capacidade de transcendência para uma significação ideal das vítimas. Estas já não morrem pela pátria ou por uma causa nobre. Pratica-se a destruição por uma negatividade total, uma pura redução do sujeito a uma forma biológica desprovida de cidadania, de direitos, de relações, de pertença.
Esta situação complica a pura e simples monumentalização da memória - sem nenhuma mediação crítica, na sua imediata materialidade - como evento educativo e de conhecimento. Em Auschwitz en héritage? D’un bon usage de la mémoire Georges Bensoussan observa que: “A Shoah subverte as habituais categorias intelectuais e os conceitos clássicos da cultura humanista ministrada nas escolas. Convida a sair dos caminhos percorridos do pensamento e a libertar-se dos esquemas simples, mas tranquilizadores: sendo a barbárie ‘antinómica à civilização’, rejeitar uma significa fazer com que a outra triunfe e preparar os estudantes para uma vida de adultos livres”.
Poderia dizer-se que o que dificulta um uso também didático da memória é a complexidade conceitual que ela tem vindo a assumir, proporcional à profundidade dos abismos e das catástrofes que a marcaram e que, ao mesmo tempo, minaram a sua possibilidade de registo ou de rasto. É o emaranhado dificilmente destrinçável que impede a monumentalização da memória, como ocorreu noutras épocas quando existia uma “arte da memória” (como uma escrita ou uma pintura interior, comentava Giordano Bruno) que garantia, só pela conservação, a produção e transmissão do conhecimento associado à memória.
São estes os obstáculos que impedem uma reprodução direta do passado só pela sua simples emersão. Mais importante é refletir sobre os usos do passado. Enzo Traverso, num livro que é um catálogo, poderoso e sintético, das aporias da memória, na sua relação perturbada com a história, O passado. Modos de usar, indica as possíveis saídas do labirinto insidioso do reuso ou da citação do passado, sobretudo do que foi mais doloroso e traumático. Uma das saídas indicadas é o mapeamento da força que se associa à memória e da sua variação no tempo. Uma memória débil e em risco pode transformar-se, noutro contexto, numa memória forte que integra as muitas “religiões civis” que se substanciam num culto às vezes parcial ou estereotipado do passado (muitos genocídios passam por esta transformação de acordo com a qual de uma quase perda, pela força, pelo tempo, pela quantidade, é mudada a escala do impacto).
A memória impõe uma aliança com o conhecimento crítico. Assim, pode tornar-se parte de um projeto formativo, de partilha e de comunicação intergeracional de saberes. O problema, se quisermos, é como abordar o tema da memória não de modo monolítico, mas perceber como, na sua extrema friabilidade, na precariedade que a expõe a riscos de deformação ou apagamento, o importante é tutelar e compreender o potencial da sua imensa diversidade, das suas inexauríveis variações, um processo - este do mnemólogo - que se pode assimilar, pelo seu conteúdo ético, ao papel do tradutor que seleciona e gere perdas e acréscimos sem detrimento do sentido.
O pensamento de Walter Benjamin foi o de um sismógrafo a entender como a modernidade alterava a memória a partir da conceitualização da experiência. Walter Benjamin situa a memória a partir de alguns traços qualitativos que a constituem: a rememoração como dimensão alternativa da história assemelha-se à metáfora do calendário - feito da alternância de feriados e dias de trabalho - que exibe uma outra tipologia, não de um tempo simplesmente cumulativo, mas de um tempo especial. Os calendários de facto - e não os relógios - ”monumentalizam uma consciência histórica” que ainda vem de gestos revolucionários e inovadores que fundaram uma primeira vertente da modernidade.
A reflexão sobre os funcionamentos, as combinações, as possibilidades da memória, poderia estender-se até ao infinito. Servem os exemplos citados para mostrar que recorrer à memória, por si só, sem preocupações com as suas genealogias retorcidas, as suas conceitualizações e as suas imagens cristalizadas, não permite um uso crítico do passado, e a sua transformação em evento educativo.
A memória poderá continuar a ensinar só quando, na sua dimensão de monumento - no seu sentido de rememoração -, ela se transformar em conhecimento através de uma responsável e profunda triagem crítica. E a memória ensina-se, mais do que pela exposição de objetos ou por fáceis essencialismos, pela desmontagem atenta dos elementos, precários e delicados, que a constituem - em que o papel da seleção e do esquecimento são essenciais - e pela sua inscrição dentro das forças históricas que condicionam, às vezes negativamente, a sua sobrevivência. Ensinar a memória é partilhar a responsabilidade sobre o uso do passado, é tomar consciência da sua fragilidade extrema através do indispensável tratamento crítico dos seus débeis vestígios. É assim que a memória passa de resíduo do passado a um conhecimento que se abre para o futuro.
MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624);
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