As impotências da pós-memória

 Gamba | 2019-10 | Yara Monteiro (cortesia da artista) [fotografias originais de arquivo familiar (anos 60), com colagem digital] Gamba | 2019-10 | Yara Monteiro (cortesia da artista) [fotografias originais de arquivo familiar (anos 60), com colagem digital]

Mais do que um signo de união sobre a responsabilidade da transmissão da memória, a pós-memória é separador de águas. Menosprezada pelas ciências sociais, subestimada pelos historiadores, endeusada nos estudos culturais e nas artes, o tema da memória das gerações seguintes às gerações testemunhais é um território controverso, por vezes conflituoso, de qualquer modo estranho. As causas são multíplices, e é quase escusado enumerar todos os limites apontados: ter sido elaborada no campo dos estudos literários e culturais como um defeito de teoria e de reflexão crítica, assumir a relação complexa que se criara, na década de 1990, nos Estados Unidos, sobre a elaboração da memória da Shoah, a problemática distinção entre próprio e impróprio, uma popularidade no âmbito de algumas vertentes de estudos que a tornaram um fetiche acrítico, como ocorre sempre com as modas culturais.
A pós-memória surge também de uma impropriedade lexical: como todas as prefixações “pré” ou “pós”, delega a sua definição a conceitos suplementares, por sua vez problemáticos, o que produz um grau de problematização ao quadrado. Neste caso, além do mais, é a própria semântica que exibe uma impropriedade: a pós-memória parece delinear um tempo de fim ou do além da memória, ou seja, neutraliza e despotencializa o conceito que pretenderia salvar e, em hipótese, fortalecer.
No entanto, é a partir destes limites que é possível depreender que mais do que um conjunto de categorias, trata-se da manifestação de uma preocupação compartilhável. Se dentro de uma determinada visão, a experiência é a condição que gera a memória (direta, ocular, presencial, testemunhal etc.) o que será do horizonte da memória quando esta experiência se apagar pela extinção dos seus portadores, ou seja, depois da última testemunha? O debate que ocorre sobre o futuro da memória também se arrasta num horizonte de incertezas. O referencial não está claro: falamos de memórias individuais inexoravelmente fadadas à anulação, a não ser que sejam fixadas nalgum suporte (o que explica a prevalência da era da testemunha que se manifesta por índices mais quantitativos do que qualitativos).
Na verdade, ainda antes da invenção lexical do termo por Marianne Hirsch na década de 90, o problema já existia e era pensado. Cabia numa definição menos brilhante, mas mais exata: transmissão transgeracional da memória. A definição refere-se sobretudo (precocemente) ao âmbito da investigação sobre o efeito da vivência de experiências traumáticas. A transmissão estrutura-se a partir de conceitos originais, como no campo da psicologia cognitiva, o telescoping, a interseção de memórias que passa por uma inscrição de distanciamento variável das vivências traumáticas das gerações anteriores para a nova geração que, por sua vez converte estas memórias em memórias próprias através de imagens e fantasias. É compreensível que a raiz mais forte desta elaboração se configure na Alemanha, no contexto pós-bélico e no âmbito psicanalítico, com estudiosos como, entre os outros, Jürgen Straub ou Kurt Grünberg, e com amplas ramificações nos estudos da Shoah. Por trás da ideia de uma transmissão, necessariamente perturbada, entre gerações, está uma consideração de Freud (Totem e tabu) de acordo com a qual nenhuma geração pode ocultar à geração seguinte os processos psíquicos principais. Dir-se-ia que a tendência neste caso seria que a herança se dava pela transmissão de fardos do passado que se acumulavam no horizonte da outra geração, condicionando-a irremediavelmente.  É desta forma que se pode descrever a atitude das segundas gerações quando arcam com os resíduos traumáticos dos familiares mais velhos: uma transmissão de certo modo ruinosa mesmo sem a vivência de experiências análogas.
Na constelação crítica da memória, o tema da transmissão funda uma espécie de sentido lato. James Young, numa reflexão que remonta ao momento da definição e da explosão da onda pós-memorial, sugere que o verbo lembrar possa ter dois sentidos, um – convencional – quando quem lembra é o titular da experiência, e outro lateral, “lembrar” – entre aspas – quando não se vivenciou o conteúdo da lembrança. Um plano giratório como este, duplo e escorregadio, explica bem a impossibilidade de uma definição exata que agarre o sentido da pós-memória. A crítica argentina Beatriz Sarlo compreende muito bem esta fragilidade, quando sugere que – não só o seu “pós” –, mas que a própria memória funciona como uma impropriedade (vivenciada por outros, articulada no fragmentário) que se reativa e se projeta pelo tempo. A transmissão da memória para as gerações futuras, a pós-memória ou a memória vicária, remete, fora das alternativas nominais ou conceituais, para o problema mais amplo e universal da salvação de passados incómodos e ameaçados. Sem prefixos ou dobras, sem adjetivos e especificações. Inclusive de uma geração para outra.
Não é por acaso que se nota, na posição de Sarlo, o seu convívio com a obra, provavelmente capital, também para pensar a pós-memória ou as suas declinações: as teses sobre o conceito de história de Walter Benjamin. Uma obra que afirma a primazia da memória nos gestos de salvação do passado. O termo essencial, embora discretamente usado, é “rememoração” (Eingedenken). Carateriza-se de modo qualitativo (não cumulativo) em relação aos passados: é o tempo dos calendários e não o dos relógios. Sobretudo é o tempo que se afirma – e por isso quebra as falsificações das continuidades históricas – através de uma força que vem de uma espera não fatual, mas messiânica. Uma memória que mostra uma paradoxal aliança entre materialismo e teologia, o quotidiano e os dias de festa. Seguindo sempre os apontamentos de Benjamin, há uma outra imagem poderosa da rememoração, que combina fragilidade e força, exiguidade e resistência: a rememoração como um fio de palha. Nesta imagem, débil mas persistente, talvez surja o valor contemporâneo de uma ideia às vezes recursiva, mas ao mesmo tempo significativa, como é a pós-memória.
A filosofia mostra bem (da Metafísica aristotélica até hoje, passando obviamente por Bartleby) que a impotência não é o contrário da potência. Expressa melhor uma outra potência, a potência do não, o que cria a passagem para o ato, para a sua efetivação. É neste sentido que um conceito impotente como o da pós-memória pode – no seu papel de mediação de passados parciais, alterados e em risco – tornar-se um sinal de que a memória que procura traduzir o passado, se encontra, sempre com Benjamin, “no instante do perigo”. O instante da rememoração, iluminando sobrevivências de algo que oscila entre a falsa recordação e o abismo vertiginoso da perda, opõe, na sua precariedade, uma extrema, frágil resistência. É portanto a impotência da pós-memória, que a torna uma interrogação provavelmente sem resposta. Mas é uma interrogação necessária e ineludível, reveladora da potência do não, contra as incontáveis perdas sem rasto dos nossos passados.   

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MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

por Roberto Vecchi
A ler | 29 Maio 2020 | Memoirs, Pós-memória