Memórias familiares e memórias públicas: campos de batalha
A literatura – e a literatura portuguesa não é uma exceção – abre fendas profundas dentro de mundos insondáveis como o das memórias e das relações de família. Um dos arquivos mais complexos é constituído pela resistente e escorregadia memória familiar. É como um antídoto à perda total do passado. O que se guarda no espaço íntimo e privado são imagens efetivas ou simbólicas de vivências pessoais, de experiências agradáveis ou dolorosas. A sua evocação remete sempre para a relação discursiva e vivencial, afetiva e familiar entre gerações, guardada e alimentada na esfera doméstica onde os gestos, os afetos, os símbolos, são até mais importantes do que a ordem e o fundamento do discurso.
Como já a filosofia antiga tinha percebido, o domínio da casa é separado do domínio da cidade e da comunidade. É por isso que, perante passados incertos e desbotados, numa fase crítica para as testemunhas como a atual – que constituem um grupo sempre mais exíguo e destinado mais cedo ou mais tarde a apagar-se – é importante refletir sobre os modos em que a memória individual ou familiar se pode converter numa memória coletiva e pública. Como se a casa pudesse, em suma, abrir-se para a cidade, transcendendo os seus limites privados.
A despersonalização do passado – numa época de subjetivização máxima e macroscópica da experiência, como a atual onde a relação direta com o passado é garantida pelo papel da testemunha ocular – é a premissa da sua possível inscrição dentro de um registo coletivo mais amplo, rumo à construção de uma visão do passado menos singular e mais comum. O problema de facto é como penetrar no emaranhado sensível feito de subjetividades, afetos, gestos, conflitos que caraterizam as relações familiares. A importância deste lugar opaco da casa é fundamental porque é nele que ocorre uma significativa transferência, voluntária e involuntária, de memória pessoal e, de transmissão de recordações individuais que se abrem para uma fruição mais ampla.
Também é preciso constatar que esta transmissão não é documental e objetiva. Confunde-se com elementos e interferências externos oriundos de outras fontes, outras versões, outras imagens, que exercem uma pressão externa – é o papel dos mídia – e contribuem para alterar e plasmar imagens porosas em que os elementos mediados das vivências diretas, confessadas no espaço familiar, se confundem com a imaginação e o senso comum.
Uma definição imediata de arte ajuda a compreender uma conexão profunda que se pode instaurar com a “arte da memória” familiar: a arte é o território onde a esfera íntima do pessoal e do privado se torna possibilidade de fruição por parte dos outros através da obra como facto esteticamente constituído. Na obra de arte, o que ocorre é a transmissão de um conteúdo pessoal ou íntimo ou até inconfessado e a sua receção cria um canal inesperado – estético mais do que comunicativo – impessoal. Um filósofo, Jacques Rancière, ao definir as relações entre política e estética, elabora o conceito de “partilha do sensível” como uma combinação que une e separa partes singulares e exclusivas e um comum que se partilha.
Esta definição esclarece o funcionamento da arte sobretudo em função de um duplo regime, o privado e singular e a sua combinação com o público da partilha. Observar-se-á que a literatura funciona por analogia: converte sistematicamente o privado em público. A escrita é a epiderme que põe em contacto estreito os sentimentos privados com a partilha mais aberta através da leitura.
Para afirmar uma generalidade óbvia, o arquivo da literatura portuguesa transborda de exemplos que mostram a tradução das memórias familiares em facto público possível e portanto acessível. Ficamos aqui com dois casos gravados na memória do século XX português. O primeiro é uma crónica de António Lobo Antunes, “078902630H+” do Terceiro Livro de Crónicas. A cena primária do trauma da guerra colonial vista e testemunhada prorrompe como um jorro excessivo de imagens: “a literatura que se foda”. Só no desfecho, com o desafio lançado – “Completem esta crónica, vocês, os que cá ficam 078902630H+. Filha” – é que se abre o espaço para a transmissão da memória que é partilha e herança e, ao exibir a sua cortante oclusão, se transmite entregando a tarefa para a geração seguinte.
Um romance que mostra a complexidade da exposição da memória familiar é Deixem falar as pedras, de David Machado. Três gerações confrontam-se e produzem cada uma a sua memória em conflito. Um avô preso pela PIDE e que sofreu as violências da história atormentada de Portugal no século XX deixa uma memória que o neto procura assumir, meio século depois. Em jogo, um amor perdido mas nunca esquecido, uma verdade que sempre escapa e não se fixa. As versões que se confrontam sobre o passado, inclusive dentro da própria família, divergem e não se recompõem. São desencontros que a narrativa consegue mostrar e acabam por se converter num objeto de reflexão sobre as perdas e as deformações do passado. As cicatrizes do avô, a testemunha (“Tu não viste as cicatrizes? Claro que vi as cicatrizes. E então? Vais dizer que também não são verdade?”), mostram rastos do corpo cuja decifração é problemática. Ou afetivamente mediada. No entanto, é a literatura que proporciona uma partilha de elementos próprios que nos aproxima de um passado impróprio, de outro modo em risco de extinção. Pela escrita a sua memória pode-se tornar legível e aberta também a nós, leitores e estranhos, garantindo alguma transmissão mesmo que problemática, parcial e subjetiva: “Por agora esta é a minha história”.
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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº 648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.