A Argentina e as suas cicatrizes familiares

O tema de Memoirs é a transmissão familiar e intergeracional da memória também traumática, o que aliás, sintetiza, por defeito, o conceito de pós-memória. A família é o objeto opaco e indecifrável o que torna os estudos das memórias privadas um desafio problemático. De fato, como se pode perfurar o diafragma espesso que protege e encobre os passados subjetivos, privados, denegados, afundados como cárceres de grupos afetivos nas regiões mais escuras e profundas do perímetro familiar? Paraíso, purgatório e inferno, as famílias – e os seus passados inconfessados ou inconfessáveis – são um enigma permanente para qualquer decifrador externo.
O Maior Espetáculo do Mundo | 2018 | Pedro Valdez CardosoO Maior Espetáculo do Mundo | 2018 | Pedro Valdez Cardoso
Um caso literário recente, o do livro de um jovem escritor, Julián Fuks, A resistência, publicado no Brasil em 2015 e em Portugal em 2017, merecedor de notáveis prémios (Jabuti 2016, Saramago 2017) proporciona uma anatomia profunda e cortante, de certo modo exemplar, do problema teórico da transmissão da memória, num espaço familiar fragmentado pela violência. Pelas potencialidades da autoficção, Fuks, brasileiro e filho de pais argentinos psicanalistas e exilados políticos no Brasil em consequência da repressão sangrenta executada pela ditadura militar na década de 70, constrói uma narrativa que disseca e interroga um passado familiar marcado por silêncios, interditos, mistérios, afetos enroscados. Sobretudo, por intermédio de um membro disjuntivo da família, um irmão adotivo, que representa a peça fundamental para deslindar uma trama familiar tortuosa e impenetrável.

Há dois ícones que se definem ao longo da narração, a herança – na sua dualidade também negativa, a herança de um exílio – e a cicatriz, o marco do passado que fica exposto, que traça a fronteira entre o corpo e mundo. E a cicatriz mais vistosa, sinal próprio e silencioso, é justamente aquela do irmão adotivo, nunca chamado pelo nome pelo narrador (a quem, no entanto, o livro é dedicado), mas constantemente, na sua mudez fugidia e desarmante, no centro da cena e mesmo nas margens, exibe uma embaraçosa não pertença.
 
O livro coincide com os limites problemáticos de um contexto familiar fraturado pela história do continente latino americano. Um casal de militantes adota um filho, e depois é coagido a exilar-se no Brasil, onde nascem dois filhos. A história atravessa a memória familiar e torna-se inapreensível, como se a memória a ofuscasse e impedisse enxergar o seu contorno.

A escrita estende-se para encontrar uma significação no ato de resistir. Na epígrafe, Ernesto Sábado interroga-se sobre como encarar esta palavra. E como se observa (cap.13) “ter um filho há de ser, sempre, um ato de resistência”. Assim como é um ato de resistência escrever, desafiar o limite semântico das expressões e das palavras. O livro é como um filho. É por esta razão que a escrita de Fuks é tão controlada e rigorosa, inclinando-se para uma densidade que a aproxima da escrita poética, virada para a dobra de uma linguagem sem pretensões representativas, esgotando-se dentro da forma da expressão.

No entanto, há um espesso contexto neste memoir familiar: o passado é o da Argentina dos militares, o contato dos pais com o desaparecimento forçado de uma médica amiga, o medo devastador dos opositores sempre em risco de delações e de vida. A família está salva depois de se mudar para o outro país, mas vive dentro dos muros domésticos a presença singular do outro, o outro filho, o outro irmão. Ele é o exílio dentro do exílio, exilado da Argentina, exilado da família, e do silêncio surge e estoura o seu lamento “Vocês falam demais e não vêem” (cap.42). O livro do irmão torna-se assim o meio para iniciar uma procura impossível no âmago da dor do familiar adquirido. O narrador para entender o que lhe foge do “irmão possível”, adotivo, regressa para Buenos Aires, para procurar o inacessível passado familiar. Aqui reencontra restos da história traumática que se abatera sobre a Argentina. Em particular aproxima-se das Mães da Plaza de Mayo que procuram os netos adotados pelos círculos familiares dos militares, como forma de reparação precária da morte dos filhos e da destruição dos seus corpos. Se o irmão tivesse sido um descendente de desaparecidos políticos, mesmo que fora de qualquer lógica, sendo os pais do lado dos perseguidos, a narração poderia ter adquirido uma tonalidade heróica. Mas falsificada.

O livro escrito pelo filho, com um passado apesar de tudo ainda impenetrável, é lido pelos pais no penúltimo capítulo. E eles não se identificam no enredo.

A escrita, qualquer escrita do passado, será sempre marcada por desvios e incongruências. Mas apesar dos limites intransponíveis da representação, o passado encontra uma inscrição, a memória pode fluir de uma geração para outra. O passado será sempre interdito, mas sinais, indícios, sobrevivências, poderão refundar a memória familiar, perdida e recalcada. O privado, através da escrita, politiza-se e torna-se público, um lugar onde outros olhares podem reconhecer-se. Os filhos e os pais reencontrarem-se, embora as versões sejam sempre múltiplas e os passados sempre outros: “este meu relato vem sendo construído há tempos pelos meus pais, que pouco me desvencilho de sua versão dos fatos. Ao vê-los, sinto que eu sou em parte um ser que eles moldaram para contá-los, que minha memória é feita da sua memória, e minha história haverá sempre de conter a sua história” (cap.35). Esta dobra familiar da memória é a pós-memória. 
 
 

por Roberto Vecchi
A ler | 12 Maio 2018 | Argentina, família, Memoirs, memória, trauma