Reconstruir, verbo não só transitivo
Vivemos um tempo em que reconstruir parece ter-se tornado a preocupação central de todos, como acontece de modo geral num pós-guerra. A pandemia faz proliferar planos e ideias de reconstrução, recovery plans, programas de retoma, de reconstrução, de recomeço, de recuperação. É uma reação típica a determinados tempos do fim, quando se viveu uma espécie de fim dos tempos, uma experiência catastrófica ou final que profunda e destrutivamente se abateu sobre um determinado tempo, deixando a posteriori uma intenção - antes de um gesto - de superação do fim ou de reinício, o virar da página.
Reconstruir, no entanto, não é, como aliás também a gramática prescreve, um verbo intransitivo. Supõe sempre um objeto, uma relação. A reconstrução — para voltar ao deverbal, de algo que se perdeu ou se quebrou ou se suspendeu — abre para um conjunto de problemas complexos, que não se pode desconsiderar, sob pena de a reconstrução se tornar uma inexorável segunda destruição.
O primeiro desses problemas refere-se a um termo próximo de reconstrução que se define no contacto como evento de ruptura ou de destruição: o restauro. A reconstrução é sempre um restauro? Não. A proximidade das duas ações é evidente, mas o segundo termo orienta-se mais para uma restituição supostamente quase integral de algo que se interrompeu ou quebrou. Restauro mantém uma aura originária de retorno a uma condição que se perdeu e que, provavelmente de modo ilusório, se pretende reativar, com uma nostalgia ou com um desejo inconfessável de superação. Trata-se de uma aura de caráter metafísico, porque, como bem mostra a história da arte e do restauro, as intervenções necessárias para realizá-lo podem ser ocultadas, na perspetiva de secundar o efeito da reprodução literal, ou evidenciadas, o que mostra mais uma preocupação de ordem filológica. A ruptura não é negada, mas exibe-se, assim como se mostram as intervenções necessárias que se depositaram sobre o resto da obra.
Um segundo aspeto em jogo na reconstrução, e que decorre também de atitudes análogas às referidas relativamente ao restauro, centra-se na complexidade da relação entre original e cópia. Um exemplo clássico da impossibilidade pura da cópia decorre do romance de Machado de Assis, Dom Casmurro: no meio do contraste duvidoso que permeia todo o romance, Bentinho manda reconstruir no Engenho Novo a casa da rua de Mata-Cavalos onde nascera e conhecera Capitu. O objetivo seria, para o narrador, conjugar os dois tempos da sua vida, através da memória. Mas a cópia realizada do Engenho Novo revela-se mera ilusão. O passado não regressa e a conjugação dos dois passados não se realiza, mesmo considerando a cópia como outro original.
A reconstrução como cópia idêntica de um original é um assunto crítico que já dominou largamente o campo da cultura. A reconstrução pode ser conservadora, ou seja, implicar um modelo tautológico, de repetição possível do idêntico. A não coincidência entre cópia e original levou, em particular no âmbito pós-estruturalista, a pensar a cópia fora de uma metafísica da identidade: a repetição implica sempre diferença.
No contexto dos estudos pós-coloniais, quando se abordou o tema das culturas periféricas inscrevendo-as no processo de formação, definiu-se a fase de cópia da cultura da metrópole. O desajuste entre os dois objetos, entre o original e a cópia, levou a consagrar o célebre “direito de copiar”, porque a cópia nunca seria conforme. Pelo contrário, seria na cópia que se inscreveriam os elementos subversivos de diferenciação, mesmo que impercetíveis ou latentes, pelo simples ato de copiar. O manifesto literário desta reconstrução que perde o prefixo recursivo (re-) e se torna uma outra construção plena é o célebre conto “Pierre Menard, autor do ‘Quixote’”, de Jorge Luis Borges. O Quixote escrito noutro lugar e noutro tempo, só aparentemente idêntico ao modelo, produz uma outra escrita e uma outra possibilidade de leitura.
A cópia como tradução diferencial e não tautologia leva então a problematizar o modelo das reconstruções e talvez desloque o problema para um outro campo reflexivo. Mostra, essencialmente, que a reconstrução se funda a partir de uma memória da obra que se perdeu, que age como uma ausência ativa na sua rearticulação. Ao mesmo tempo, mostra também o espaço de arbitrariedade que existe na “reconstrução” (a partir de agora entre aspas). Sendo assim, a “reconstrução” mobiliza sempre uma relação com uma temporalidade dupla: uma voltada para o passado que reestrutura o objeto a partir de uma memória e, uma outra, projetada numa refuncionalização, que eventualmente nem existia no objeto que se perdeu.
Se quisermos manter a comparação com a tradução, a passagem de uma língua para outra significa o conhecimento de uma memória linguística e cultural ampla, mas também a capacidade de renovar uma frase assumindo a responsabilidade — e o risco — da reformulação na língua de chegada. A tradução é sempre um ato de ética, neste caso linguística, tal como a “reconstrução” é também, sempre, um ato de ética temporal com os tempos imbricados em que tem lugar.
Uma outra analogia que implica a mesma escala de valores da tradução é a da memória. A memória também não é literal em relação ao passado. Reconstrói-se sempre como seleção, pela ação do esquecimento e das perdas. O que resta depois do processo da memória é um simulacro do passado factualmente não coincidente, cuja natureza artificial é evidente. Todavia, é através da memória que ficam gravados rastos únicos do passado que de outro modo se perderiam.
Os exemplos brevemente expostos servem para repensar a palavra e o conceito com que iniciei este breve texto — a “reconstrução”. Aquilo que poderia ser, afinal, uma impropriedade lexical, revela-se como um problema geral que, neste tempo de reconstruções pós-Covid somos convidados a (re)pensar. A consciência da inviabilidade da cópia deveria ser um primeiro elemento de partida. Se a “reconstrução” se baseia sobre uma matriz de diferenças, será importante pensá-la numa lógica de refundação e potencialização fugindo um pouco da facilidade banalizadora do fetiche, da inexorabilidade do postiço ou da ilusão da cópia literal.
O princípio da não identidade com os originais que a tradução e a memória mostram, oferece uma oportunidade imensa de inovação. O mesmo significado pode ser produzido de modos diferentes, por uma diversidade de combinações dos elementos constitutivos, mas que garanta — e este é o desafio — a produção e a tutela do mesmo sentido. A “reconstrução” pressupõe sempre um posicionamento ético em relação ao tempo e deve ser pensada a partir do duplo movimento de desconstrução e reconstrução do objeto que a práxis da tradução exemplifica.
Por isso, o “como” reconstruir é tão importante como “o que” se reconstrói, como indicado de modo imperfeito pelo verbo transitivo “reconstruir”. Só assim a “reconstrução” é uma oportunidade de renovação e mudança, mesmo que implique sempre um risco de perda. Mas é um risco a correr, sob pena de ficarmos condenados à repetição do idêntico, à indiferenciação do passado e do presente, à perda da ideia de desejo e de futuro. E da nossa possibilidade de agirmos neles.
*MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624); MAPS - Pós-Memórias Europeias: uma cartografia pós-colonial é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT - PTDC/LLT-OUT/7036/2020). Os projetos estão sediados no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.