De volta a Lisboa: celebrar Dylan, e os excrementos dos pássaros
sou profissional do sofrimento
professor de sentimento
do amor fui artesão
mestre do viver já fui chamado
conselheiro do reinado
cujo o rei é o coração
Batatinha, um dos maiores compositores de samba da Bahia, anuncia o amor entrando pelo vento de maio, enquanto eu respiro fundo, com as pernas estiradas no sofá, pensando no calor que aí vem. Será que o Verão vai trazer novos concertos ao ar livre e, já vacinados, vamos poder tirar a máscara e viajar? Comer mexilhões da Costa del Sol, e sonhar em italiano como o João Gilberto canta em Málaga In quella casa dal patio antico/ Quante dolcezze t’ho sussurrato... Se é pra imaginar que a globalização vai de vento em popa, podemos carimbar o passe sanitário eletrónico e chupar uma manga na praia da Córsega a inteirar-nos ao telemóvel sobre as últimas da vacina: segundo António Guterres, que há dias discursou na abertura do Conselho de Direitos Humanos da ONU “10 países administraram 75% de todas as vacinas da covid-19, enquanto que 130 países ainda não receberam uma única dose.” Além disso, em alguns países a pandemia vem sendo utilizada como pretexto para instaurar uma segurança severa, criminalizar as liberdades básicas, e restringir as atividades das ONG’s. No Brasil, onde passei grande parte da crise sanitária, uma nova política de terror ganhou terreno através das intervenções do presidente, que provocou aglomerações de moto sem máscara ou com os banhistas dentro do mar, com o povo negacionista a sair à rua munido de armas em carreatas de apoio, aqui e ali fazendo estragos.
A notícia esta semana de que um bebé Yanomami morreu de desnutrição numa comunidade ao sul de Roraima, é mais um sinal dessa negligência reiterada pelo Estado. Às tantas, a notícia diz que o bebé Yanomami apresentava os olhos fundos e um “choro sem lágrimas”. Lembrei-me de repente dos três meninos que estão desaparecidos há quase meio ano na Grande Rio, e suspeitando-se agora que foi porque roubaram um passarinho a um traficante.
Desde quando o mundo se tornou tão áspero?
Não é de agora a desigualdade social, no entanto, parece que ela se reatualiza de forma bizarra e aleatória, aproveitando-se de forças externas, para deixar as pessoas ainda mais estranhas.
Em conversa há dias com uma amiga, perguntava se ela me achava uma boa pessoa. Ela respondeu que “nem por isso”, mas que não me preocupasse muito porque no fundo já não é mais fácil reconhecer essa “humanidade” que se advoga numa ética qualquer, hoje em dia. Depois de muitas cervejas, chegámos à conclusão que eu sou demasiado misantropa para ser uma boa pessoa, mas que me preocupo seriamente com o cosmos. É bom beber com os amigos, ainda que à distância de um écran. Fiquei a pensar que ela deve ter razão, já que os sinais que mais me chamaram a atenção durante a pandemia têm a ver com comportamento animal, algumas árvores no meu caminho, e o fundo do mar.
Divulgado recentemente, o plano estratégico da União Europeia para a Biodiversidade na próxima década, baseia-se na ideia de que “sociedades saudáveis e resilientes dependem de dar à natureza o espaço necessário.” Fico a pensar nesta última frase e no seu possível significado, enquanto lembro o comportamento bizarro dos pássaros nos céus da Califórnia, durante a pandemia.
Na altura dos grandes incêndios que aconteceram em setembro do ano passado na costa oeste, centenas de milhares de pássaros apareceram mortos no Novo México. Andorinhas, papa-moscas, toutinegras caíram no campus da universidade, e os cientistas acreditam que elas teriam migrado antes de estarem preparadas para a viagem, tentando fugir do fogo, e perderam as forças. Além disso, podem ter inalado o fumo e sofrido danos nos pulmões. Recentemente, em abril, foi a vez de milhares de pássaros entrarem pelas chaminés e invadirem as casas dos moradores da Califórnia. De acordo com as reportagens locais, uma família deparou-se com mais de 800 “andorinhões” presos nas grades da lareira, e acionou o xerife e o departamento de controle de animais da cidade. Os bombeiros tentaram projetar um sistema de rampa para canalizar os pássaros para fora da lareira e libertá-los pela porta dos fundos. Aconselhada a deixar as portas e janelas abertas para que os animais pudessem sair, eles no entanto resolveram ficar no imóvel, e a família teve que ir dormir a um hotel, enquanto o pai passou a noite tirando os animais um por um com a mão. Uma outra moradora falava numa entrevista que a situação era “muito difícil de explicar”, e que não podia andar em lugar nenhum da casa sem pisar em excrementos de pássaros. Um mês antes na Austrália, as fortes cheias e inundações que assolaram o país também causaram um êxodo em massa de animais, arrastando cobras e lagartos para o interior das casas. Milhões de aranhas formaram tapetes escuros nas garagens, subiram aos postes, e pelas pernas das pessoas acima. Entre esses animais contava-se a aranha mais perigosa do mundo, a aranha-teia-de-funil, cujo veneno pode matar um homem em 15 minutos. Os habitantes de Sydney ficaram em alerta total, uma vez que é frequente ela esconder-se nos recantos das piscinas, debaixo de pedras ou dentro de sapatos, mordendo as pessoas no momento em que se tentam calçar.
Fico a imaginar como, depois de tantos incêndios, cheias, derramamentos e invasões, pode o homem conceder à natureza esse tal “espaço” que ela necessita.
De volta a Portugal, que me parece localizar-se numa nova galáxia a anos luz do bastião carioca, onde há pessoas em situação de clausura há mais de um ano e toda a gente tem um parente que morreu ou quase morreu de Covid, é difícil falar sobre a espécie de tristeza que se instalou no país em que escolhi viver a última década. Está tudo confuso. Lembro-me do taxista que me falou no Gramsci para dizer que foram os comunistas como eu que inventaram o vírus para derrubar o governo, e nesse momento avistei um tucano no topo de uma árvore no aterro do flamengo. Tinha a plumagem cor de laranja e o bico preto, e encantou-me quando o vi sair voando para o alto na direção contrária, enquanto o taxista fazia a curva e falava comigo pelo espelho retrovisor.
Ou talvez a minha sensação de estranheza resida no facto de que já é Primavera em Lisboa, os jacarandás floriram, e os seus tons azuis e púrpura fazem-me sorrir um pouco por todo o lado, no Campo Pequeno, em Santos, nas Amoreiras. E eu estou feliz porque sinto o meu coração aliviado, e até já mergulhei na água gelada do mar com a pessoa mais gentil que conheço, pisando na areia dourada, acolchoada de limo, sob um céu de nuvens doce. Sussurrando uma prece entre o berbigão e os caranguejos, enquanto avistava o pilrito-das-praias à beira da água, procurando o seu ninho. E estou feliz porque vou ser vacinada contra a Covid-19 já no próximo mês de junho. “Não deve ser permitido”, penso, no fundo, com tudo como está, ser feliz. As pessoas sem dinheiro, ainda a ter de passar álcool gel e a fazer filas impossíveis à porta das lojas. Olhar para as estrelas despreocupadamente, recolher conchas pequeninas só para vê-las junto ao lavatório, e acreditar que a carne da anchova cura todos os nossos males. Desejar o bem maior e a alegria do nosso semelhante, indagar pela paz da pessoa que amamos, com pulseiras coloridas e olhar de criança, confiar no segredo do lince e nas grandes orelhas alerta da raposa do deserto, prescrutando oásis infinitos para curar a nossa sede… certamente não deve ser permitido em tempos pandémicos.
A União Europeia recebeu o dobro das doses de vacina do continente sul americano, seis vezes mais do que a Ásia, e vinte vezes mais do que a África. Somos uns sortudos. No entanto, tenho sempre a sensação quando regresso, de que celebramos muito pouco. É pena. Gosto de viver a vida a celebrar. Às vezes pergunto-me se deveria sentir culpa por isso, mas de repente uma música já antiga do B Fachada está a dar no rádio do carro e eu aumento o volume.
Felizmente ainda há prazer
Navegar navegar navegar
A nação a renascer
Afro-xula para dançar
Ainda sobre o Brasil, fico a pensar que nem tudo está perdido porque existe a Bahia, Lula é candidato, e Juliette ganhou o BBB. Claro que os amigos portugueses torcem o nariz à hipótese remota de um progama de tv que serve para anunciar marcas e vincular estereótipos ser ao mesmo tempo um campo de disputa política, mas como eu tenho para mim que o mundo é pop, e o nordeste é top, acredito que sim, e acompanho a final já em Lisboa, torcendo pela representatividade da paraíbana que defende os direitos da mulher, e que perdoou tudo e todos pelo caminho, enquanto os maquilhava. E leio mentalmente mais uma passagem do livro do Comité Invisível Aos nossos Amigos, que fala que a insurreição “é o reino da iniciativa, da cumplicidade prática, do gesto; as decisões, ela toma-as nas ruas, lembrando àqueles que o tenham esquecido que “popular” vem do latim populor, “arrasar, devastar”. Ela é a plenitude da expressão – nos cânticos, nas paredes, na palavra tomada, nos combates – e o vazio da deliberação.”
E penso nos protestos marcados agora contra o governo Bolsonaro, e na contradição que é tomar as ruas quando isso significa arriscar a própria vida.
O aníbal a comer
O polícia a cozinhar
Toda a gente sem poder
E ninguém a trabalhar
Escrevo para tentar explicar melhor os estados de transição entre as coisas, as pessoas, as canções, os desejos, e distraio-me lembrando-me só de gentilezas. Creio que na vida, a felicidade vai e vem. Engendramos verdades absolutas para nós porque achamos que podemos confiar de repente em alguém, para brincar com as possibilidades, despreocupadamente, até que de repente nos apercebemos da fragilidade das coisas. Afinal o meu país não é meu, afinal o som da minha voz não diz nada sobre mim. Um filme sobre um rio torna-se uma teoria das plantas, e há que saber perder-se no seu labirinto verde. Entretanto, uma cadelinha cai de uma janela de dois metros de altura sobre um chão de pedra e parte os joelhos. Que mistério parece ser o tempo, e a substância de que é feito! Afinal a felicidade não existe. Vai e vem.
No intervalo da escrita, apercebo-me que o Bob Dylan acaba de fazer 80 anos, e vou ouvir aquela que é talvez a minha interpretação preferida dele, “Tomorow is a long Time”, ao vivo no Town Hall de Nova Iorque, em 1963. É uma bela canção de amor, que ele escreveu para a companheira com quem aparece de braço dado na capa do álbum desse ano e que, aos 17 anos, lhe ensinou tudo sobre direitos civis. A sua voz dá-me vontade de abrir um vinho, e celebrar o dia de amanhã.