Hoje em dia
Amiga, não é você, tá todo o mundo surtando!
Essa frase, que surgiu o mês passado em conversa com uma amiga, enquanto cortava uma cebola às rodelas para um refugado, fez-me pensar na próxima crónica, que iria falar do clima de cortar à faca que se vive atualmente no Rio, numa associação entre as lágrimas da ocasião e todo um quadro geral. Pois se eu achava que a melancolia era uma característica tipicamente portuguesa, que contrastava com uma espécie de alegria a toda à prova carioca, há muito tempo que já não é assim. Silêncios constrangedores no intervalo das aulas, o mesmo impasse à mesa do bar, ao comentar os acontecimentos estranhos que se sucedem no palco da vida pública: um palhaço fazendo de Presidente da República distribui bananas aos jornalistas, homens a cavalo vestidos como nas Cruzadas convocam para uma manifestação contra o Congresso Nacional, todas as mulheres do governo aparecem com vestidos às bolinhas numa mesma cerimónia de posse.
Mais tarde, sentada na esplanada de uma padaria em Copacabana ao lado de três senhoras com três cãozinhos latindo, pensava no que escrever, e em como comungar desse pathos… Todos os cachorros eram brancos e pequenos, e um deles vestia um colete xadrez, apesar da temperatura média desta cidade ser de 26ºC. Comecei a imaginar ele a escorrer suor do pelo… até começar a arder, e desaparecer por completo formando um amontoado de cinza no chão. E lembrei-me do texto “Brazil cinza”, da professora e filósofa Márcia Tiburi, publicado em 2015 na revista Piseagrama, em que ela diz que conheceu a madeira do pau-brasil, em formato de cinzeiro, na casa de uma família de amigos fumantes: “Cadáveres de micos dourados pendurados aos fios de eletricidade. Cruzes no lugar de árvores com a inscrição Jabuticaba. Papagaios em espetos em vitrines de restaurantes caros. Índios vestidos como Drag Queens vendendo missangas e espelhos no saguão dos grandes hotéis. Essa seria a nossa real paisagem se fôssemos realmente pornográficos. Mas nosso bom comportamento apenas nos permite olhar a tela Traição das imagens de Magritte, e – substituindo o cachimbo – escrever: ‘isto não é um cinzeiro’.”
Os dias foram passando, e eu não consegui escrever essa crónica. Agora, enquanto penso sobre o sentido dela, observo que uma espécie de ironia maior se abateu sobre o mundo, obrigando-o a parar. Além da pandemia do novo coronavírus promover uma crise mundial na saúde e na economia, ela impossibilita-me ir a Portugal rever os amigos e a família, e deixa-me confinada ao meu estúdio com vista para o Redentor em Copacabana, de onde escrevo estas linhas. “Podia ser pior”, penso, com alguma noção do meu privilégio.
Enquanto não volto à gravidade dos números que nos preocupam, permitam-me que vos fale do Carnaval.
Freddy Krueger
Este ano decidi fugir à agitação carnavalesca e aproveitar uns dias de férias na mata. Mas antes disso, fui espreitar o ensaio do bloco Carmelitas, na Praça Tiradentes, no centro do Rio, que presta homenagem à Laurinda Santos Lobo, mecenas da Belle Époque carioca, que é como me passaram a chamar carinhosamente algumas amigas de Lisboa. Mas cheguei tarde, pois calhou-me um bloco dedicado aos clássicos do rock, em que todo o mundo cantava, de cara purpurinada e segurando lata no ar, “Pro dia nascer feliz”, do Cazuza. Em seguida, uma senhora dos seus 50 anos, com grandes argolas, uma máscara do “Freddy Krueger” e uma t-shirt preta com uma caveira e a inscrição “Bloco do Rock”, cantava ao meu lado a letra da música seguinte, que não percebi, mas que perguntava enigmaticamente no refrão: que país é esse? quando todos se juntaram a gritar em coro que país é esse?, veio-me à cabeça essa música quase desconhecida do Cazuza intitulada “o Brasil vai ensinar o mundo”, em que ele profetiza que “o Brasil tem que aprender com o mundo: a ser menos preguiçoso e a respeitar as leis. O mundo tem de aprender com o Brasil: a ser alegre e a conversar mais com Deus.” Será? Alguém ensina alguém a acordar mais feliz? Duvido. Quanto a mim fico-me com a definição de felicidade da cantora Amy Winehouse: “Acordar do lado do meu amor e não ter de ir trabalhar.”
Depois que vi o ensaio de carnaval da Mangueira, uma sensação de grande alegria me invadiu, e fiquei a torcer pela escola que, depois do ano passado ter colocado os navegadores portugueses minúsculos frente a uma imensa “Marielle presente” no desfile do sambódromo, este ano saiu com a cantora Alcione como Maria, mãe de Jesus, falando das origens pobres de Cristo e pregando uma mensagem de tolerância para os tempos: “Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira/ Me encontro no amor que não encontra fronteira/ Procura por mim nas fileiras contra a opressão…” Se carnaval é como ter time, então minhas cores são verde e rosa. Sozinha num chalé no meio da serra da Itatiaia, na região interior do Rio, chove sem parar enquanto na televisão as luzes esquentam o sambódromo. Dentro de uma armadura de latas, uma mulher do público explica à jornalista que a sua fantasia foi feita com todas as cervejas que bebeu desde a eleição presidencial. Sorrio, deliciada com o delírio que me espera. Quando eu era pequena e ficava com a minha mãe na sala a assistir ao desfile pela RTP, eu achava a coisa mais sem graça, todas essas fantasias de plástico, os passistas ridículos… um espetáculo pomposo e descartável, que durava uma eternidade. Hoje em dia, tudo me cativa: desde a pontuação dada ao mestre-sala e à porta-bandeira, ao inesperado enredo, as incríveis alegorias, as nuances da bateria, o suor coletivo brilhando na evolução. Este ano, não foi só a Mangueira que brilhou, mas tantas outras escolas que trouxeram a presença do artista negro e trabalhador para a avenida… Desde a história do primeiro palhaço negro, até às ex-escravas que lavavam roupa na lagoa do abaeté na Bahia, e vendiam fruta para comprar sua alforria, passando pelo rei do candomblé e travesti Joãozinho da Goméia, da Baixada Fluminense… como é belo e inspirador este desfile, para a luta dos tempos!…
Que país é esse?
Terceiro mundo, se for
Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as almas
Dos nossos índios num leilão
A Magia do Trópico
E porque a vida são dois dias mas o Carnaval são três, antes de voltar para Copacabana aproveitei para visitar Penedo na região, conhecida como a única colónia finlandesa do Brasil. Fundada pelo agricultor Toivo Uuskallio em 1929, que ali se refugiou com a família e dezenas de conterrâneos, para fugir do clima de desolação do pós-guerra. No seu livro Na Viagem em Direção à Magia do Trópico, ele descreve como pretendia construir uma comunidade auto-sustentável e viver em comunhão com a natureza, mas os seus planos saíram furados e eles acabaram por deixar a agricultura para se dedicar ao turismo. Como chovia muito, quase fazia sentido estar entre saunas e estátuas do pai natal, provando fondue de chocolate. Na receção do museu local, fiquei um tempo à conversa com uma senhora que me confessou que, por ela, viveria na Finlândia, que nunca se habituou ao clima quente e húmido daqui, que adoraria poder vestir um casaco de penas, e que só continua em Penedo por causa da neta. Sobretudo, o que ela não suporta é a noção de pontualidade do brasileiro. Contou-me que uma vez uma mulher a obrigou a abrir o museu a uma quarta-feira, habitualmente dia de descanso, porque vinha com um grupo de turistas que só podiam ir nesse dia, e que tinha telefonado várias vezes antes a convencê-la… e que depois não compareceu à hora combinada. Ela esperou meia-hora, e foi-se embora. Simpatizei com o seu tom de indignação, perfeitamente compreensível.
Durante esta estadia vi vários coelhos, e escrevi um trabalho sobre o presidencialismo de coliazão1 no Brasil. Que o surrealismo nunca nos abandone, nem antes nem depois da pandemia.
A.C, D.C
Parece até que estas siglas do sistema de datação ocidental utilizado no mundo inteiro, passaram de repente a referir-se ao vírus que transformou as nossas vidas, o Corona. Enquanto escrevo deitada na cama, no meu terceiro dia de quarentena “oficial”, penso que ainda não tenho ferramentas suficientes para lidar com esta nova realidade. Leio curtas passagens de livros de mestres espirituais, o poeta sufi persa Rumi, as afirmações de cura do guru indiano Iogananda, e tenho feito sopas, de feijão branco, abóbora com gengibre, e tocado Velvet Underground na guitarra, procurando ganhar tempo para achar palavras, sentimentos, razões, para que o mundo seja o que o mundo parece ser: uma espiral sem sentido girando entre a beleza e o caos, mera sorte em relação ao nascimento, ou à idade. Mas também uma oportunidade de reflexão sobre o poder do silêncio.
Recentemente li um livro do psicanalista e professor da USP, Christian Dunker, que investiga a experiência do sofrimento própria da vida contemporânea. No capítulo ‘Solidão: modo de usar’, ele indaga sobre o sentido positivo de estar separado do Outro: “A maior parte das pessoas pensa que o amor é uma experiência comunitária. Em grande medida, ele é uma experiência de solidão. Os infinitos espaços de tempo, que nunca passam, entre um encontro e outro, as intermináveis especulações de ciúme, os temores da perda, os diálogos que fazemos e refazemos com a cabeça no travesseiro são todos efeitos da impossibilidade de ficar só, que a experiência de amar convida a fazer de modo radical. (…) A solidão benéfica nunca se estrutura em torno de Eu não preciso do outro. É justamente quando me dou conta de que preciso do outro, mas não absolutamente, que a solidão se torna um espaço criativo. Ou seja, nesse momento, ela deixa de ser sentida como experiência deficitária. A solidão patológica é sentida como humilhação social, o que costuma ser resolvido por meio de mais e maiores práticas de isolamento, distância e controle sobre a presença do outro, que na verdade são divisões de falsa solidão. Solidão benéfica é solidão reconhecida. Cultivo da solidão é cultivo do Outro que nos habita.”
Para esta travessia, deixo estas palavras como um farol aceso sobre cada dia que atravessarmos, cada um com o seu livro, a sua música, a sua recordação, a sua prece. Cultivemos o silêncio dos automóveis dos cafés das filas das repartições, das rodas de samba, dos grupos na praia e nas pistas de dança. Pois, para além do balanço entre a recessão económica e os mortos, juntos ou separados, precisamos deixar a Terra respirar.
- 1. “Presidencialismo de coalizão” é um termo criado no final dos anos 80 por um sociólogo para falar da especificidade do sistema democrático do Brasil, que conjuga um presidente como executivo soberano com um multipartidarismo parlamentar.