Deus é uma mulher preta e poeta
Este é o título de uma série fotográfica de Josiane Santana, minha colega num curso de expressão artística que fiz recentemente na Gávea. Moradora do Complexo do Alemão, Josiane é uma dos nove artistas convidados a participar da exposição “Favelagrafia” actualmente em exibição no Museu de Arte Moderna - MAM, e que pretende responder à seguinte questão: “o que você imagina quando pensa num morador de favela?” Uma vez, quando vínhamos de metrô para casa depois do curso, ela contou-me que foi forçada a demitir-se, por conta da pressão que sentiu no ambiente de trabalho, na Secretaria de Estado de Cultura, por ser abertamente contra a política do atual governador do Estado, José Witzel. Ela continuou dizendo que tem um colega que se policia nos seus posts da internet, tendo o cuidado de não postar nada contra o governador, com medo de perder o emprego. Ora, “se Deus é uma mulher preta e poeta, talvez esse político “juiz” seja um discípulo undercover de Xangô, que vai transformar essa Secretaria num braço forte de Aruanda”, penso para mim com puerilidade, em forma de prece.
Lembro as palavras do sociólogo português Boaventura Sousa Santos, em entrevista recente: “[Bolsonaro] É um homem que não estava preparado para dirigir um país, nem sequer para dirigir uma empresa, ao contrário do Trump que pode dirigir uma empresa. Penso que Bolsonaro tem causado um dano extraordinário ao Brasil porque veio legitimar tudo aquilo que havíamos pensado que havia sido superado.”
Inferno Astral
Já não sei que poeta disse que o penúltimo mês do ano é aquele que nos inspira mais sonhos e desejos. Plena Primavera no hemisfério sul, véspera do meu aniversário, a lunação em escorpião e as excêntricas decorações de natal, denotam um período de intensidades pessoais e coletivas. No meu caso, vazamento no banheiro e resistência do chuveiro queimada, contratos anulados e novas parcerias de trabalho… assisti à minha primeira defesa de mestrado, revi ex-amantes e amigos importantes, consolo pessoas próximas que lidam com a morte, aprendo a velejar na Baía de Guanabara.
Uma sensação borderline me tem vindo a acompanhar este mês, de ser atropelada pelos acontecimentos, que é afinal (já não me lembrava), característica de viver num Rio de muitas (talvez demasiadas) realidades concomitantes. Senão vejamos: enquanto tomo um copo na Joaquim Silva na Lapa, olho para o slogan impresso em fonte elegante a azul e vermelho no guardanapo: “a nossa cozinha faz comidas gostosinhas”, passa um carro que abre a janela e um cara fala que alguém se atirou lá atrás da varanda de um 9º andar, pertinho dos Arcos, fecha o vidro e continua o seu caminho, enquanto um bloco de fanfarra toca e canta atrás de nós nas escadinhas do Selaron como se não houvesse amanhã: “Ô ô ô ô… Aurora”.
Alguém comentava que devia colocar no CV Lattes “sobrevivo ao Rio de Janeiro”, pois é um trabalho que exige e desenvolve vários skills: resiliência, empatia, flexibilidade…
“Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada como a nossa casa.” Claramente D. Casmurro viveu noutro tempo que não o das calamidades ambientais do governo Bolsonaro… com o seu óleo invasor dos mangues, que cobre os olhos das tartarugas. Desde o final de Agosto, que acontece um derrame de petróleo na costa brasileira, de origem desconhecida, que já afetou 877 localidades de onze estados do país. Este mês, manchas negras foram avistadas pela primeira vez no litoral do Rio de Janeiro. Fui velejar no dia em que li esta notícia, e vi surgir a cabecinha amarela de uma tartaruga fora de água, de repente, no meio da baía… Mandei um axé para ela, mesmo sabendo que era ela quem me sussurrava, entre as manobras e o imprevisto do vento: “Olá Rita… ainda estou aqui… viva.” Ricardo Salles, o ministro do Ambiente, chegou a postar na sua rede social uma imagem do navio do Greenpeace, lançando suspeitas de que a ONG estivesse por detrás do derrame, o que motivou um processo por parte da organização ambiental. “É a primeira vez na história do Brasil que temos um ministro anti-ambientalista”, lembra Marina Silva, ex-ministra do Ambiente do governo Lula. Lula que, saiu da prisão a 8 de Novembro. 8 de Novembro é o aniversário do meu irmão. Quem sabe este jogo de fazer associações contínuas me ajuda a lidar com a realidade?…
Lula Livre
Num gesto quase premonitório, dias antes do ex-presidente do Brasil sair em liberdade por ordem do Supremo Tribunal Federal - STF, dei-me ao trabalho de assistir às suas audiências de defesa com o juiz Sérgio Moro, porque fiquei curiosa com os meandros do processo do Petrolão e da reforma do sítio de Atibaia. Para lá da sensação de um vazio processual e do tom de perseguição política, confesso que retive pouca coisa, além da seguinte informação: Lula não utiliza nem email, nem celular. Achei isto extraordinário, e pensei “como contrasta com a política feita na rede destilando um ódio em número de caracteres limitado, do governo atual.”
Nesta tarde emocionante do dia 8, eu saí para tomar um banho de mar em Copacabana, ao final molhei só os pés, mas caminhei na praia, e encontrei depois um casal gay de mãos dadas, a quem pedi para tirar uma foto, para assinalar o momento. Perguntei se estavam contentes com a notícia, e se achavam que havia liberdade para os homossexuais no Brasil, e se alguma vez sentiram um clima de perseguição… um deles me surpreendeu ao falar: “A gente não liga pra isso não. A gente não quer saber de política não.” Fiquei pensando “se o drama vier a acontecer, pelo simples facto de estarem de mãos dadas na rua, quem sabe não mudarão de ideias.”
Nos écrans, Lula de novo nos braços do povo, espalhando jovialidade de casaco de cabedal com a nova namorada, dizendo que se sente com o “tesão” de um jovem de vinte anos, falando de amor e que é preciso recuperar a alegria. Choro. Como é bonita a esperança, num país tão cansado.
Talipot
Com direito a todas as projeções antes de nos ocuparmos dos balanços, num último fôlego anual, sopro da confusão antes de nos voltarmos para a magia do número 2020, floresceu no Aterro do Flamengo a Talipot. Palmeira trazida do Sri Lanka por Burle Marx, autor do projeto paisagístico do parque, ela floresce uma única vez na vida, cerca de cinquenta anos depois de plantada. Em seguida, inicia um longo processo de morte. Em casa de amigos, tento trazer este assunto à mesa do jantar, explicando que a palmeira produz uma tonelada de sementes durante os dois anos que separam a explosão de flores da sua morte, a forma que a natureza encontrou para garantir a sobrevivência de uma espécie que leva tanto tempo para se reproduzir…. mas os meus amigos preferem discutir os últimos acontecimentos políticos na América Latina. Não os censuro. Perante os factos, tão escandalosos como os últimos dados do IBGE sobre a renda no Brasil, o meu vazamento no banheiro já me parece um problema menor, apesar de me causar grande angústia. É que a existência humana é rara, e mesmo a angústia parece não obedecer a princípios racionais de uma ordem hierárquica de valor… Alguém aponta a necessidade de se avaliar melhor o lugar do privilégio: no Brasil, segundo os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, metade das pessoas vive com apenas R$ 413 por mês, considerando todas as fontes de renda, com a desigualdade atingindo novos patamares em 2018. No Chile, organizações estimam que mais de 220 pessoas foram feridas nos olhos pela polícia e, segundo o Ministério da Saúde, 16 perderam já a visão de um olho. Alguém refere que na Bolívia, a pobreza extrema passou de 38,2% para 16,8%, entre 2005 e 2015. Perco-me na abstração dos números, antes de conseguir perceber que espécie de convulsão atravessa o continente. Sou muito pequena, e na maior parte das vezes sinto que vivo numa ilha sem país, tentando contato apenas com o mar. Platão dizia que existem três tipos de pessoas: as mortas, as vivas, e as que vão para o mar… Encho o copo de vinho, e penso que me identifico com a terceira estirpe, enquanto os meus amigos estão convencidos que o povo brasileiro é o próximo a ir para as ruas partir tudo.