O túmulo perdido de Copacabana
Vim para o Rio de Janeiro em setembro do ano passado, fazer uma pós-graduação em Cinema Documentário. Tenho visto muitas imagens que me ajudam a pensar o Brasil atual, filmes de Eduardo Coutinho e Maria Augusta Ramos, arquivos de coleções privadas sobre o nazismo na Europa, diários autobiográficos no Médio Oriente, ensaios mais ou menos experimentais sobre a cidade, a classe média passeando ao sol de Copacabana. Além das aulas, temos o desafio de desenvolver um filme de curta duração, e apresentá-lo no final do curso. Eu sempre me interessei pelo mecanismo do acaso, e pela ideia de como ao virar de uma esquina, nos deparamos com tesouros insuspeitos. Tem sido assim ao longo da minha vida, fruto também do privilégio de me poder movimentar entre Portugal e o Brasil.
Um dos desafios enquanto documentarista, é precisamente o de fazer com que a história apareça quase como imposição, uma janela de luz própria que se abre de repente na repetitiva escuridão dos dias. É um trabalho ínfimo e contínuo, de desenvolver uma atenção e uma escuta, que evidencie os elementos, que podem resultar num suspense e numa descoberta partilhada. Que seja pertinente não só pela descoberta, mas também politicamente, já que acredito que a tarefa da arte é também a de resgatar o sentido do bem comum. Jugo que esse tem sido o meu esforço, mais ou menos consciente, enquanto diretora.
Ora, quando marquei encontro com o antropólogo Thaddeus Balchette num boteco em Santa Teresa, para falarmos sobre o espólio encontrado o ano passado numa ocupação LGBT em Copacabana, sabia que ia abrir um velho baú cheio de surpresas, e que este seria o início de uma grande aventura.
A Casa Nem existe desde 2015. Acolhendo pessoal LGBT excluído pela família e em situação de rua, há meses atrás ocupou um prédio centenário e abandonado na rua Dias da Rocha, no coração de Copacabana. De gestão horizontal, a associação tem na figura de Indianara Siqueira uma liderança carismática, alvo de um documentário multipremiado, e que abriu o último festival Queer Lisboa. Eu já conhecia a associação desde que existia no Beco do Rato na Lapa, através de convívios e festas que frequentei. Ora, fiquei curiosa quando soube que o seu novo endereço era bem perto de onde moro atualmente. Decidi fazer uma visita. Foi então que descobri a história que pretendo contar no meu filme, que gostaria que fosse o primeiro de vários episódios passados em Copacabana.
Thaddeus Blanchette é um antropólogo norte-americano professor da UFRJ, há 20 anos radicado no Brasil. Dando garfadas numa galinha de tempero nordestino, entre goles de chope artesanal, de microfone de lapela ao peito, explica-me no seu sotaque marcado, como se desenrolou essa história. Quando as trans da Casa Nem entraram no prédio da Rua Dias da Rocha, numa fria sexta feira de julho, imediatamente vários manifestantes bolsonaristas, e prováveis milicianos, deram início a um protesto no portão, trancando-as lá dentro. Passado uns dias, e à medida que elas se instalavam, subiram ao sótão e aí encontraram um espólio valioso de peças de museu, envolvidas em fezes de morcego e de pombo, e várias camadas de pó… Uma pele de crocodilo e um pinguim embalsamado, quadros e bustos de gesso de figuras históricas como Santos Dumont, uma coleção de apitos indígenas, ferramentas de pedra que pareciam ser do neolítico, dentes de baleia, cerâmicas quebradas e inteiras, e até ossadas humanas!… A sua primeira impressão foi a de que seriam peças roubadas provavelmente do incêndio do Museu Nacional que ocorreu em 2018, que teriam sido guardadas ali, e que estariam atraindo de novo a atenção da milícia. Decidiram então alertar as autoridades, e contactar Thaddeus e a sua companheira Ana, que há anos mantêm uma estreita colaboração com a Casa Nem. Thaddeus, à medida que ia recebendo as fotos do espólio no seu celular, contactou então as figuras da museologia do Rio de Janeiro, como o diretor do Museu Histórico Nacional, Mário Chagas, ou Antônio de Souza Lima, do Museu Nacional. Como todos ficavam espantados com o que aparecia nos écrans, incumbiram-no de descer até Copacabana, para ver as peças de perto e atuar como representante da ciência brasileira no local. Chegado ao edifício, com as suas botas e blusão de couro, e vendo a agitação do confronto entre punks de um lado defendendo as trans, e possíveis milicianos do outro, Thaddeus diz que sentiu como se estivesse dentro de um filme dirigido e produzido por John Waters, José Padilha e Penelope Spheeris: “Indianara Jones e o Templo do Tesouro Perdido Punk Travesti de Copacabana”, algo assim.
Quando subiu as escadas iluminadas pela luz dos celulares, atrás do delegado da polícia, na companhia dos jornalistas da TV Globo, e encontrou Indianara e as amigas de robes coloridos e óculos escuros servindo chá, ele sentiu que aquilo era exatamente o que o seu professor na primeira aula de Antropologia disse que nunca iria acontecer… No artigo ainda por publicar, que escreveu à Associação Americana de Antropologia, Thaddeus conta que a sua reação ao sótão é ainda um retorno ao campo da egiptologia dos anos 1920, quando Lord Carnarvon e Howard Carter exclamam, ao descobrir o túmulo de Tutankamon: “I see things! Things covered in pigeon shit!”
Coleção de slides
Além da história sobre a descoberta do espólio pela ocupação da Casa Nem em Copacabana, gostaria de contar outro episódio. Encontrei uma coleção de slides na loja de um senhor português aqui no Shopping onde vivo. Mário Abreu veio de uma vila do norte de Portugal para o Rio de Janeiro há décadas, e fundou uma loja de material de cinema, que funcionou durante muitos anos no piso térreo. Como o aluguer ficou caro e impossível de pagar, ele passou o material para um apartamento mesmo por cima do meu, e aluga os seus objetos para servirem de decoração em cenários de filmes, além de alugar e vender câmeras super 8 e 16mm. No dia em que subi para visitá-lo, interessada em comprar-lhe uma câmara, notei umas caixas com slides antigos, e numa delas escrito a letra branca em relevo sobre tirinhas vermelhas: “Lisboa”, “Alfama”, “Ruínas”. Espantada e intrigada por ver de repente palavras tão familiares – a minha primeira casa foi em Alfama, bairro popular de Lisboa, onde morei por vários anos – comprei-lhe os slides e trouxe-os para o meu apartamento.
Naquele tom português tipicamente ranzinza e extremamente lato, Mário disse-me que não sabia de quem eram, que foram de alguém que uma vez tinha passado por ali, que “talvez” tivessem sido tiradas por vários fotógrafos. Sem conseguir saber mais sobre a sua origem, decidi comprar um velho projetor de slides em segunda mão, para visioná-los. Quando aconteceu o surto epidemiológico do Coronavírus, eu começava a pesquisa sobre o espólio na Casa Nem, queria ir à ocupação para apresentar-me melhor e, se possível, começar a filmar, Então estava vendo estes slides. Uma imagem de um senhor à janela de um avião, outra de uma senhora de lenço à cabeça dentro de um ónibus, pareciam dizer-me que, apesar de tudo, o mundo não pára, que sempre estamos a ir para algum lugar, nem que seja para dentro de nós. Enquanto os meus dias se confinavam a um espaço de 20m2, descobria imagens que, no escuro da noite, me mostravam crianças no mar do Nordeste, um tucano num parque em São Paulo, ou um casal de mãos dadas num banco ao sol, ao fundo uma montanha com neve. E Lisboa, sim, com obras no Rossio, os seus táxis preto e verde, Lisboa dos anos 60 ou 70? Enfeites nas ruas de Alfama, uma matrícula de um carro aí estacionado que diz “fé”. A bandeira do Brasil, junto com a de Portugal, numa fachada de um prédio da Calçada do Carmo. Fico a pensar se na localização dos “Chapéus Leonor” ainda existirá uma tasca onde eu ia jantar muitas vezes há uns anos, antes de me perder no rumo que o turismo deu à cidade. “Trata-se claramente de alguém que gostava de fotografar”, digo para mim, depois de me recompor do impacto das imagens. “Temos filme”, sorri.
Pequenos absurdos da quarentena
Apesar de ninguém mais me responder da pesquisa ou dos artigos PÓLEN, sem poder ir a campo, e aceitando a monotonia das aulas em modo virtual, agradeço por estar viva, com saúde, e dinheiro a entrar na conta, neste momento. Comecei uma lista de pequenos absurdos do quotidiano, que me parecem mais reveladores do meu estado de espírito, do que qualquer conjectura sobre o futuro da humanidade.
No início da quarentena, tive a ideia de comprar comida para pássaros e deixá-la no parapeito da minha janela. Talvez achasse que iria atrair as aves e fazer descobertas e me sentir menos só, assim. Mas me enganei, e acabei encomendando pela internet mais comida do que aquela que imaginava, e fiquei com quilos de pacotes de mistura para beija-flor, papagaio, e alpiste comum. Nenhum pássaro apareceu. Como choveu passado uns dias, a comida empapou sobre o mármore branco, e assim continua esperando que alguma alma da floresta da Tijuca se lembre de alcançar esta janela do 14º andar do Shopping Cidade para me dizer olá. Outro dia também acordei entusiasmada e fiz vários litros de batido de mamão com ananás e leite de aveia, no liquidificador, sem sequer me questionar se estas frutas combinariam, o que vim rapidamente a descobrir que não. Também encomendei um conjunto de facas boas pela internet, de uma marca conceituada de origem alemã, e quando fui experimentá-las, consegui cortar-me no dedo não uma, mas duas vezes.
Sorrir no escuro
Num destes dias em que já acordamos com a notícia de que o presidente do país em que vivemos, não só não se importa com a morte dos cidadãos que representa, como parece desejá-la, eu entrei no elevador, vindo das compras. Dentro do elevador estava um senhor já velho, pegando com braços finos e de modo jovial nas suas sacolas. Ambos estávamos de máscara. Não me contive, e perguntei: “Você está bem?”, ao que ele me respondeu: “Você sabe que idade eu tenho? 86. Estou sim… obrigada por perguntar.” Eu repliquei, no meu jeito meio bobo de ser: “Nossa, tem um ar mais novo.” Ele fez uma pausa e falou: “São os olhos”, e saiu no 10º andar. Daqui para a frente irei lembrar-me sempre deste nosso encontro dentro do elevador, ambos a sorrir com os olhos.
Há uma estranheza em sair à rua em Copacabana, um bairro cheio de lojas, com a população mais envelhecida do Rio de Janeiro, onde praticamente tudo se mantém aberto, da fila da lotérica no piso térreo ao dentista, até alguns antiquários que julgo que abrem à revelia das ordens da síndica. Enquanto isso os músicos, que sempre aqui estiveram, parecem ressignificar a rua com os seus gestos: um homem toca acordeão sentado num banquinho de frente para o Bazar Camelo, onde as pessoas respeitam a distância social assinalada com fita amarela no chão, à espera de serem atendidas… um homem de pé numa esquina toca uma flauta, um outro faz um karokê com um microfone e uma caixa de som. Numa cidade com tantos trabalhadores de rua, e moradores de favela habituados a descer para trabalhar no calçadão, nas feiras, nos serviços do bairro, não é simples seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde, que parecem ter sido elaboradas a pensar numa classe média que constitui afinal uma pequeníssima fração da população mundial, como tão bem lembra o sociólogo português Boaventura Sousa Santos no seu ensaio recente sobre a pandemia, “A Cruel Pedagogia do Vírus”. Aí ele aborda os vários dilemas das populações da periferia: “Poderão manter a distância interpessoal nos espaços exíguos de habitação onde a privacidade é quase impossível? Poderão lavar as mãos com frequência quando a pouca água disponível tem de ser poupada para beber e cozinhar? O confinamento em alojamentos tão exíguos não terá outros riscos para a saúde tão ou mais dramáticos do que os causados pelo vírus? Muitos destes bairros são hoje fortemente policiados e por vezes sitiados por forças militares sob o pretexto de combate ao crime. Os jovens das favelas do Rio de Janeiro, que sempre foram impedidos pela polícia de ir ao domingo à praia de Copacabana para não perturbar os turistas, não sentirão que já viviam em quarentena?”. À medida que crescem os casos de contaminação por cá, vai-se instalando também o medo e a impotência na classe média. Perante o cenário de desigualdade gritante da sociedade brasileira, agravada pela irresponsabilidade política que todos conhecemos, uma forma de a combater é tornar-se útil, ou fazendo doações (quem pode), ou distribuindo comida à população de risco ou aos moradores de rua. Comecei a entregar “quentinhas” a alguns moradores aqui à volta, refeições que fiz em casa ou que compro a um rapaz aqui em baixo. Na última vez, um senhor me chamou, e disse que morava aqui em cima na comunidade dos Tabajaras, e sem eu lhe perguntar nada, apontou para uma planta da rua, e disse que era a “quebra pedra”, que podia marcerar a sua folha e beber o chá dela que fazia bem aos rins, e apontou depois para outro arbusto que disse se chamar “a árvore da felicidade”, que teria de ser oferecida por alguém para realmente dar sorte. Era um preto velho de olhos azuis profundos, e ouvir as suas palavras, depois de dias em que praticamente não falei com ninguém, me fez sentir acarinhada e protegida pelos orixás.
Outras palavras que também me acalmaram no meio na pandemia, foram as de Carlos Papá Mirim Poty, indígena Guarani Mbya que atua como líder espiritual na aldeia do Rio Silveira, na região paulista, e é também presidente do Instituto Guarani da Mata Atlântica. No âmbito da iniciativa “Selvagem, ciclo de estudos sobre a vida”, ouvi-o falar sobre a importância do escuro. Ele disse que o escuro é uma energia muito forte, responsável por todo o universo, e que está presente em todos os momentos, na hora de dormir, de morrer, ou quando tentamos nos encontrar a nós mesmos. Disse que o ser humano perdeu a capacidade de ver e de sentir no escuro, que não é à toa que na sua aldeia os grandes sábios são chamados de “aranduá”, que significa “pessoas que conseguem sentir a sua própria sombra”. Enquanto para eles o dia é o pai do universo, o escuro é a mãe do universo. O escuro é a ação misteriosa, capaz de parir, sofrer e ignorar a dor. Eles consideram por isso a mulher muito mais forte do que o homem.
Faço um chá de quebra pedra, com um saquinho da planta que encontrei aqui em casa, e enquanto sonho com tesouros, e tento abstrair-me das dores na coluna, ensaio um sorriso no escuro.