Viver o isolamento social e o decretado estado de emergência num espaço aberto e rural, acompanhando a agitação diária da infância, contradiz, e quase que insulta, o filme de terror sem autor nem nacionalidade, a que assistimos sete dias por semana, 24 horas por dia. Partilhar os dias com uma menina de três anos — feliz por ter os pais só para si e com as alegrias próprias à idade — torna esta experiência bela, onírica e plena de contradições. Respiremos, pois, os que ainda podem, durante o filme.
Mukanda
14.02.2021 | por Marta Lança
O que me chocou, no início da pandemia, foi o quanto o debate se focou na desresponsabilização do ser humano. Ali, no sudeste asiático, são sociedades totalitárias e conformistas, usam máscara de qualquer maneira. Esse discurso é de divisão e este paralelo entre a migração se deixar explicar como algo vindo de fora e o vírus como algo apenas biológico e não político. A divisão nasce da ilusão de que na Europa do norte fomos atingidos e, como tal, não só não reconhecemos a causa destes problemas como também caímos nos nossos nacionalismos para resolver este problema, não para o mundo mas para nós.
Jogos Sem Fronteiras
18.11.2020 | por Gisela Casimiro
Vimos, em nossas noites confinadas, os satélites de Elon Musk substituir as estrelas, assim como a caça de Pokémon substituiu a caça de borboletas extintas.
Vimos durante a noite nosso apartamento, que nos havia sido vendido como um refúgio, se fechar sobre nós como uma armadilha.
Vimos a metrópole, uma vez desaparecida como o teatro de nossas distrações, revelar-se como um espaço panóptico de controle policial.
Vimos em toda a sua nudez a estreita rede de dependências da qual nossas vidas estão suspensas. Vimos ao que nossas vidas estão sujeitas e por que estamos sujeitados.
Temos visto, em sua suspensão, a vida social como um imenso acúmulo de limitações aberrantes.
Não vimos Cannes, Roland Garros ou o Tour de France; e isso foi bom.
Mukanda
30.10.2020 | por Julien Coupat e vários
E será que conseguimos sequer imaginar um mundo sem o constante stress da competição capitalista, sem o infinito stress da imersão tecnológica nas redes, sem o horrível stress do fluxo informativo ininterrupto, que quanto mais diz, menos sentido produz? À medida que as Crónicas avançam, e se aproximam do ponto onde nos encontramos quando as publicamos a questão que ocupa um espaço cada vez maior é a da nova “normalidade” que se impõe a partir do momento em terminaram os confinamentos. Na verdade, as perspectivas não são boas: o provável é que todas estas coisas, a luta pela sobrevivência, a exploração tecnológica, a psicose informativa, e outras ainda saiam reforçadas. Como já o era desde o início da pandemia, também para Berardi.
A ler
24.09.2020 | por Ana Bigotte Vieira e Nuno Leão
É preciso agir com as lutas de todxs xs trabalhadorxs, mesmo daquelxs que até agora não eram visíveis nos trabalhos reprodutivos e dos cuidados, e principalmente das mulheres, em conjunto com as demais lutas de setores e movimentos indígenas, racializados e das comunidades locais e de mulheres rurais, em alianças urbanas e rurais, desde os níveis mais locais e de vizinhança até os espaços regionais, transfronteiriços e internacionais. Articular as práticas que nos permitem sobreviver, transformar o sistema, e superar os impactos das mudanças climáticas e ambientais.
A ler
10.08.2020 | por Oficina de Ecologia e Sociedade
A Suécia está ainda no eixo do socialismo (social democrata) e mantém relações bem ao seu estilo, apaziguadoras e pacificadoras. Ganhou com a presença da Greta internacionalmente uma missão: a de ser dura nos limites e exigências com o green deal. Ganhou presença discursiva com esta saída dos ingleses do panorama moral europeu. Há muitas décadas que trabalha discretamente nas relações internacionais em direitos humanos e questões ligadas ao ambiente. Tem uma visão muito particular de socialismo que promove um tipo de Swedish dream que contempla uma sociedade mais feliz e menos desigual, mas não condena a riqueza nem a abundância. Querer pagar os impostos numa sociedade que os aplica de forma a criar mesmo uma rede de segurança e bem estar social, é apenas um resultado.
A ler
08.08.2020 | por Adin Manuel
o bairrismo tende a agudizar-se em tempos de COVID-19 e na discussão do EEP, ou seja, tanto do ponto de vista das relações sociais como político , na base de instituições jurídicas e políticas, bem como os modos de pensar e as respectivas ideologias ao estruturar a sociedade caboverdeana.
Cidade
26.07.2020 | por Elsa Fontes
A pandemia e esta loucura universal microscópica. Milhares de migrantes mexicanos e centro-americanos estão a morrer nos Estados Unidos. Os corpos perdem-se na burocracia, nas valas comuns e nas estatísticas. Não voltam mais a casa. No México, há quem faça enterros com caixões vazios.
A ler
20.07.2020 | por Pedro Cardoso
Proponho uma análise fanoniana das relações dialéticas entre capitalismo, colonialismo e racismo, subjacentes à conjuntura política e sanitária brasileira. Em um primeiro momento, tomo a noção de violência colonial presente em 'Os Condenados da Terra', como referência para problematizar as respostas brasileiras à pandemia de Covid-19.
Cidade
10.07.2020 | por Deivison M. Faustino
Estes rasgos de continuidade sabem muito bem. É que a Nova Ordem Mundial confunde Ordem com Regime e de ordem não percebem nada, a ordem é difícil como tudo, por isso é que aparecem regimes que fazem passar formatação por ordem em desespero tentam impor aquilo que existe e só com muita gentileza atinge ordem.
Corpo
14.06.2020 | por Adin Manuel
Dividimos por uns meses um apartamento em Bayswater, Londres, que me lembro tinha um fotógrafo que morava em frente e nos tirava fotos pela janelas – todas elas despidas de cortinas, que é aliás algo de que gosto muito. A Monika, sendo sueca, andava nua pela casa quando lhe apetecia e eu, está claro, tuga vestido desde o duche da manhã – sem essas frescuras nórdicas. Fazíamos um casal de lésbicas muito bonito, por isso não nos tocávamos em público ou aquilo era logo uma matilha de lobos.
Corpo
30.05.2020 | por Adin Manuel
O coronavírus age sobre e através corpos individuais e sociais. Tem material genético, tem personalidade viral, perturba certos biótipos mais do que outros. É um vírus que mata pela reação dos organismos nos quais se instala. O descontrolo dos anticorpos criados pelo ser humano contra o vírus acaba por ser a causa do maior número de óbitos. Mas a agência deste vírus não se fica pelo corpo humano, interfere no “pulmão do corpo social”. Propaga-se em sociedades, cada uma com a sua forma de “respirar”, ritmada por uma cultura, por um ethos.
A ler
12.05.2020 | por Alix Didier Sarrouy
O que os mortos pelo vírus nos diriam caso tivessem a oportunidade? Ficam assim mais perguntas no ar. O cinema proporciona esse momento de introspecção, como se estivéssemos, assim como Narciso, vendo nossa imagem refletida na água, como na decepção por não conseguir ver a própria imagem nas águas escuras da noite. O cinema é uma janela que nos permite sonhar, criar, efabular outros mundos, outros horizontes.
Afroscreen
12.05.2020 | por Marco Aurélio Correa
No início da quarentena, tive a ideia de comprar comida para pássaros e deixá-la no parapeito da minha janela. Talvez achasse que iria atrair as aves e fazer descobertas e me sentir menos só, assim. Mas me enganei, e acabei encomendando pela internet mais comida do que aquela que imaginava, e fiquei com quilos de pacotes de mistura para beija-flor, papagaio, e alpiste comum. Nenhum pássaro apareceu. Como choveu passado uns dias, a comida empapou sobre o mármore branco, e assim continua esperando que alguma alma da floresta da Tijuca se lembre de alcançar esta janela do 14º andar do Shopping Cidade para me dizer olá.
A ler
03.05.2020 | por Rita Brás
O meu maior luxo neste tempo foi escrever este texto e ontem à uma da manhã sentar-me durante meia hora, a revisitar as gravações que fiz no pátio interior do hotel Barbas, a 80 Kms da fronteira com a Mauritânia, no Sahara Ocidental, enquanto uma televisão fazia o relato do jogo da bola em árabe, sempre tão enfáticos nos seus relatos, e um grupo de senegaleses chegava em caravana para comer um thiebou djenne feito pelo cozinheiro do hotel, ele também
Mukanda
22.04.2020 | por Ricardo Falcão
Marcelo estabelece uma ponte entre as seguintes ideias: “eles dizem que fizemos um milagre” + “estamos a fazer o milagre”. E avança a explicação oportuna: estamos a fazer o milagre porque Portugal é um milagre há 900 anos! Com o cansaço derivado de quatro semanas de isolamento, quem então ouviu os telejornais deve-se ter rido dessa ideia um pouco disparatada, ou pode ter pensado que se tratava de um excesso de entusiasmo do Presidente. Mas, conscientes ou não do que estava a acontecer neste discurso, os portugueses foram atingidos por um torpedo silencioso, em directo do Palácio de Belém para suas casas. O milagre explodiu no DNA cultural dos portugueses.
A ler
21.04.2020 | por Ana Pais
O barco custa a amarrar. Fico sem sonhos nem energias vivas. Ando por aqui a inventar tarefas e vou procurando trabalho online com outros milhões, agora. O futuro chegou mesmo depressa demais e nada me preparou a mim nem a ninguém para tudo isto. Condições ou doenças mentais, fábricas de comunicação, teletrabalho, hospitais de campanha, 15min de fama a enfermeiros portugueses, presidentes mediáticos, vazios de gente e ruído, concelhos fechados em si, lojas de vidro higiénico e empregados de luvas, filas para tirar senha para o supermercado, desinfetantes tantos quanto precisos e a estranha importância do papel higiénico. Tudo ao mais pequeno pormenor noticiado, como se a vida em si se transformasse num Hiatos e agora Home.
Mukanda
16.04.2020 | por Adin Manuel
Nas águas quentes das Venezuela, lançaram âncora navios de guerra norte-americanos. Prontos para desmantelar a rota de cocaína que sai deste país para os EUA, via ilhas caribenhas. Os piratas ou cowboys do século XXI, como lhes chamou Nicolás Maduro, cercam de mansinho o regime venezuelano. Distraído, confinado e monotemático, o mundo quase nem deu por isso.
Mukanda
11.04.2020 | por Pedro Cardoso
O processo foi mil vezes intentado. Podemos recitar de olhos fechados as principais acusações. Seja a destruição da biosfera, o resgate das mentes pela tecnociência, a desintegração das resistências, os reiterados ataques contra a razão, a crescente cretinice das mentalidades, ou a ascensão dos determinismos (genéticos, neural, biológico, ambiental), as ameaças à humanidade são cada vez mais existenciais.
Mukanda
09.04.2020 | por Achille Mbembe
Constatar a nossa finitude é, em tempos de pandemia, angustiante. Deixa-nos com os sentidos abertos e com a sensação de que algo nos espreita. A morte desfilou nas ruas de Bérgamo e mostrou toda a sua grandeza e nos colocou diante da nossa nulidade. Não estamos preparados, muitos de nós, para constatar nossa insignificância diante dela e do mundo. Encarnada em algo tão minúsculo como um vírus, nos priva do adeus, nos priva da sociabilidade real, nos priva do convívio e da alegria plena.
A ler
30.03.2020 | por Waleska Rodrigues de M. Oliveira Martins