A solidariedade como democracia radical e não-oficial (parte 2)
(…)
Falei com Robin Celikates após serem conhecidos os resultados das eleições nos Estados Unidos. Define este como um tempo difícil e deprimente, com a pandemia. Não sabemos ainda como será a presidência Biden, diz. O que me deixa esperançoso é que as pessoas percebem agora que há muitos aspectos da nossa sociedade que são realmente questões de vida e morte. Certas infra-estruturas têm de ser inclusivas, como a educação e a saúde. Claro que houve quem sempre tivesse sabido disso — os grupos excluídos e, claro, os movimentos que lutam pelos direitos desses grupos. Não podemos lutar contra os efeitos de uma pandemia se formos individualistas de uma forma egoísta. Enquanto sociedade, como queremos viver em comunidade? Desde o racismo à crise ambiental, mais do que esperança, há trabalho a fazer. Temos de pensar nos novos níveis de privilégio que esta pandemia revelou. As pessoas que podem trabalhar a partir de casa são suportadas por aquelas que não podem. Os aplausos não colmatam a descompensação económica e o quão desprotegidas politicamente estas pessoas estão: migrantes, trabalhadores de supermercados, entregas e limpezas.
“I am not sure I know when mourning is successful, or when one has fully mourned another human being.” (Judith Butler, Precarious life: the powers of mourning and violence, 2004)
Consigo compreender a ideia de sociedade traumatizada, mas por exemplo, na Alemanha, não falaria disso, comparativamente com outras sociedades. A sociedade não é um corpo homogéneo e sim fragmentado. Alguns grupos não foram verdadeiramente afectados (já tinham acesso a cuidados de saúde, públicos ou privados, a alojamento condigno, etc) enquanto outros, que já haviam sido marginalizados e excluídos antes da pandemia, estão agora ainda mais traumatizados. Há muitos casos individuais em que não podemos fazer o luto nem antes nem depois da perda. As famílias migrantes e imigrantes estão divididas e além-fronteiras. Há um problema mais colectivo: quem é reconhecido como vida que conta? Que vidas são iguais? Nem todas as vidas perdidas são tidas como passíveis de serem sequer lamentadas. Há perdas que nunca serão reconhecidas ou lembradas como tendo existido. Algumas vidas ainda contam mais do que outras. Nos primeiros meses da pandemia pudemos observar como um nacionalismo galopante conduziu ao fecho de fronteiras e ao confinamento. Estas medidas compensatórias e simbólicas contra a pandemia invasora e inimiga, são apenas uma resposta parcial e auto-centrada a um problema global.
Na Alemanha, o governo teve uma abordagem à pandemia de distanciamento pelo bem de todos, no entanto, essas medidas não abrangeram os matadouros, por exemplo, devido à grande procura de carne. Isto teria afectado desmesuradamente a economia, como tal mantiveram-se esses trabalhadores no activo e, claro, têm sido os mais afectados pela doença. Trabalhadores da Bulgária e Roménia foram trazidos (como se de convidados se tratassem) de avião e hospedados em condições precárias para trabalhar nos campos, para que os alemães pudessem continuar a comer espargos. Celikates recorda-me o exemplo das comunidades migrantes de origem asiática que são agora parte integrante do Alentejo, onde trabalham nas plantações agrícolas de grandes corporações e são parte de uma complexa rede de crime ambiental, discriminação, turismo e gentrificação.
“The indifference toward the suffering of refugees at the EU’s borders, or rather the EU’s exercise of its “power to make live and let die,” fits well with the logic of disaster nationalism that the hollow rhetoric of solidarity barely manages to disguise: every state is on its own, the virus is “othered” as a foreign threat or “invasion,” and the closing of borders intensifies the “border spectacle” that is supposed to assure citizens that their government has everything under control.” (Robin Celikates, Borders in Times of Pandemic, 2020)
Enquanto isto, nos campos de refugiados na Grécia, por exemplo, nem a possibilidade de lavar as mãos existe, que é o cuidado de saúde mais básico. A pandemia é um desafio internacional, como tal, não pode ser abordada de nação em nação, precisa de acordos transnacionais. A prioridade continua a ser tirar as pessoas dos campos de refugiados, é essa a necessidade premente. Houve uma grande discussão sobre isso na Alemanha, quando não deveria ser um tema, sequer. Alguns países não acolhem refugiados porém continuam a beneficiar e a capitalizar deles. A verdade é que os países menos estáveis política e economicamente são os que menos hesitam e mais refugiados acolhem, como a Turquia ou o Líbano. Não podemos, enquanto sociedade, esperar que os países estejam prontos, já tiveram tempo suficiente, se é que alguma vez estarão. Talvez seja uma questão geracional e daqui a dez anos vejamos uma diferença significativa, mas os refugiados estão aqui agora.
“The reality of the border regime, and the way in which it contributes to making the pandemic into a catastrophe for the most vulnerable on our planet, confront us with what in the end amounts to a simple choice: we can either affirm this regime and continue to naturalize it, thus sliding down the slippery slope toward a struggle of all against all, or we can contribute to the manifold struggles by refugees and migrants alike to denaturalize and politicize the border regime, to expose its violence, and to make it less catastrophic.” (Robin Celikates, Borders in Times of Pandemic, 2020)
Celikates elogiou ainda as recentes mudanças na lei da nacionalidade que têm ocorrido em Portugal. No entanto o seu foco é o caso que melhor conhece, o alemão. O racismo não conta como racismo na Alemanha, se não for projectado para um passado e tiver uma identificação com a identidade nacional. Isto, claro, cria outra invisibilização. Continuamos a relacionar tudo com o nazismo ou com a xenofobia. As vítimas destes ataques, assim, continuam a ser estrangeiros e não alemães, perpetuando o imaginário racista do alemão branco. Nos últimos anos, plataformas como o Facebook e o Twitter definiram-se como neutras, quando não o são: são corporações privadas, interessadas em fazer lucro. Há uma contradição estrutural a nível do público, porque de facto quer dar-se primazia a esse espaço de livre debate. O outro problema estrutural é que os próprios algoritmos favorecem escândalos e uma imagem deturpada de certas comunidades, o que é contraproducente.
A precariedade e a vulnerabilidade trazidas pela pandemia são repartidas de modo extremamente desigual, comprovadas por análises epidemiológicas. Em todos estes sectores, como os correios, os cuidados informais, o tratamento de lixo e outros, considerados fundamentais para o sistema mas, ainda assim e sempre, sub remunerados, precários e de índole predominantemente migrante. Marginalizadas e oprimidas como são as comunidades migrantes, o efeito da pandemia mostra-se de forma mais contundente nos limites fronteiriços da União Europeia. Falo de Lesbos. O incêndio em Mora tem de ser entendido como um acto de resistência desesperada. A reacção dos media e da política foi a habitual dinâmica de vítima versus vilão. Os valores fundamentais da UE sempre se aplicaram de forma selectiva, não se aplicando a todos ou sendo-o de forma muito limitada, se além das fronteiras.
“To be in the margin is to be part of the whole but outside the main body. (…) Across those tracks there was a world we could work in as maids, as janitors, as prostitutes, as long as it was in a service capacity. We could enter that world but we could not live there. We had always to return to the margins (…).
There were laws to ensure our return. To not return was to risk being punished. Living as we did — on the edge — we developed a particular way of seeing reality. We looked both from the outside in and from the inside out. We focused our attention on the center as well as on the margin. We understood both. (…) Our survival depended on an ongoing public awareness of the separation between margin and center and an ongoing private acknowledgement that we were a necessary, vital part of that whole.” (Bell Hooks, From Margin to Center, 1984)
Não raras vezes essas fronteiras são muito recentes e são parte de uma história recente. Apesar de consideradas naturais, as fronteiras são sempre lugar de conflito e de contestação, um campo de batalha. Uma indiferença perante o sofrimento dos outros. Ironicamente, a vacina que nos dará esperança a todos está a ser desenvolvida por filhos de imigrantes turcos que foram viver para a Alemanha. A propósito disto, Uğur Şahin, imunologista e co-fundador da BioNTech (com a sua esposa, a também cientista empenhada na criação da vacina para a covid-19, Özlem Türeci), afirmou:
“I think we need a global vision that gives everyone an equal chance. Intelligence is equally distributed across all ethnicities, that’s what all the studies show. As a society we have to ask ourselves how we can give everyone a chance to contribute to society. I am an accidental example of someone with a migration background. I could have equally been German or Spanish.” (Uğur Şahin em entrevista ao The Guardian, 12/11/2020)
Os movimentos sociais e políticas contribuem quer para a reprodução das crises como para regulação das mesmas, continua Celikates. O racismo torna-se inofensivo e circunscrito, como se a sua causa de fuga em nada estivesse relacionada com a ignorância global branca de que nos fala Charles W. Mills.
We didn’t cross the border. The border crossed us. Estamos aqui porque vocês estiveram lá. A politização da fronteira tem também uma função epistémica. A força considerada excessiva da migração obriga o observador que se crê imparcial a posicionar-se. Confronta-nos ainda mais contundentemente. Um potencial de resistência e utópico quando há a ressignificação da força dos migrantes. O capitalismo apoia-se nas forças neoliberais, na força dos migrantes e no trabalho de fronteiras, como limpeza ou obras, que não seriam pensáveis, seja esse trabalho legal ou não. A questão desta lógica de ligações irregulares e mão de obra ilícita. O que me chocou, no início da pandemia, foi o quanto o debate se focou na desresponsabilização do ser humano. Ali, no sudeste asiático, são sociedades totalitárias e conformistas, usam máscara de qualquer maneira. Esse discurso é de divisão e este paralelo entre a migração se deixar explicar como algo vindo de fora e o vírus como algo apenas biológico e não político. A divisão nasce da ilusão de que na Europa do norte fomos atingidos e, como tal, não só não reconhecemos a causa destes problemas como também caímos nos nossos nacionalismos para resolver este problema, não para o mundo mas para nós.
A Filo-Lisboa 2020, organizada pelo Goethe Institute Portugal, o Institut Franco-Portugais e o Teatro São Luiz, pode ser acedida aqui.