Menos dois

Who wants to write Zimbabwe? 
CarlaCarla“Who wants to write Zimbabwe? Who? Kids?” Conclui tristemente, desistindo: “No one wants to write Zimbabwe.” Também, Zimbabwe, quando poderia ter escolhido, sei lá… Gana com h? Não chego a perguntar de onde ela vem, ocupada que está a coordenar as várias turmas escolares que visitam o British Museum naquela segunda-feira de manhã, três dias após o Brexit, mas ela claramente pertence mais ali do que eu. Estamos no piso dedicado à colecção africana, localizada no — 2. Tiro fotos a tudo, como sempre e, no meu espólio pessoal, guardo um grupo de miúdos da primária, tagarelas, uns de pé, outros sentados no chão. Um deles, que parece chinês, puxa o cabelo entrançado à menina negra. Guardo esta história para contar a Rashid, meu querido colega que se define como um proud Zimbabwean, e cujas raízes se estendem a Moçambique e à Índia. O Youtube, que tudo sabe e, o que não sabe escuta, continua a mostrar anúncios de testes que nos permitem aceder à informação se somos 0,5% cherokee ou 32,5% finlandeses. Em Barbican, nas poucas alturas do ano em que o Centro de Arte abre as portas da sua estufa aos visitantes, deparo-me com diversos avisos para não tocar nas plantas. Ninguém me diz o que devo fazer quando, ao passar, elas se prendem no meu cabelo, me puxam e obrigam a prestar mais atenção a tudo. Não é muito diferente de casa, portanto. Um dos recados não é um aviso mas uma súplica para as pessoas não roubarem mais plantas, porque isso entristece os funcionários. Antes do nosso encontro no Tate, a Nelly envia-me um link: a congressista democrata Ayana Pressley passou de twists senegaleses, também conhecidos como rope twists, para uma peruca e, desta, para uma careca. O mesmo artigo da BBC chama a atenção para estudos comprovativos de que, a juntar a um terço das mulheres de origem africana no mundo, nos EUA, são os afro-americanos os mais afectados pela alopécia.  Ao sair de um comboio para atravessar a correr a estação rumo à plataforma do lado oposto e apanhar outro comboio, uma mulher pára a minha irmã para lhe elogiar o cabelo. “Your afro looks great!”, grita. Ela própria ostenta longas tranças. Quando me vê chegar, estende-me o elogio: “Yours too!” Somos irmãs, respondo, agradecendo. Ela diz que isso explica tudo, mas a foto da minha irmã, aos dezasseis anos, cabelos longuíssimos que eu costumava alisar, essa foto na porta do frigorífico sim, talvez confunda ainda mais do que explica. A mulher fala do seu processo, de como gostaria de deixar o cabelo solto, e como não tem paciência para isso. Digo que tem de encontrá-la. A Carla diz que tenho de deixar o cabelo seguir o seu caminho, pois sabe exactamente o que tem de fazer e como se deve enrolar até chegar a cada conjunto de caracóis. Ela admoesta-me de cada vez que me ponho a enrolar e a desenrolar nervosamente com os dedos o que de si é já enrolado. Não sei se isto me ajuda a pensar ou dificulta a função. Parece que a minha paciência não dá, afinal, para tudo. Ou então, o meu cabelo tornou-se uma novidade; se calhar tento, apenas, perceber o que há de tão especial nisto. Quando sou eu que o toco, porém, o outro não sou eu e sim o meu cabelo, que já foi outro. É, vários graus de enrolamento.


O meu marido comprou uma mota
Black woman with chicken, Carrie Mae WeemsBlack woman with chicken, Carrie Mae Weems“O meu marido comprou uma mota porque tem 49 anos e está numa crise de meia idade. (Tento não rir muito alto porque ele está a ouvir) Posso mostrar-te este cabelo. António, anda cá. Tirou agora o capacete (É preciso abanar para desenformar, é um cabelo que guarda memórias e demora a voltar ao lugar, depois de encostado à almofada, a um ombro, a uma parede). Isto (leva a mão à cabeça e puxa ao de leve o cabelo) é tudo o que eu tenho. Eu sempre quis muito afirmar o meu lado africano porque a maioria dos meus amigos são brancos. Na questão convencional, se eu for a uma festa guineense, vou estar à parte, encostada a uma parede, aliás, não te conheço assim tão bem, mas acho que também estarias (ah, a subtileza das guineenses). Não sinto que tenho de me integrar como uma pessoa que cresceu em Chelas. Se calhar procurei mais em livros do que em experiências, de uma forma mais académica. Tenho um rapaz e duas meninas gémeas. Uma tem olhos verdes e a outra não. Houve um dia em que a minha filha decidiu que queria mascarar-se de Rapunzel. Esta é a minha verdadeira história de revelação capilar. Comprei três ou quatro pacotes de cabelo para acrescentar ao dela. Começou a chorar porque o cabelo não era loiro e sim preto. Não foi feliz, mas estava fantástica. Mais tarde comecei a perceber que a Gabriela ficava triste com as diferenças. Queria ter o cabelo igual ao da irmã, que é mais liso e longo. A irmã, que tem os olhos verdes, é extremamente tímida. Ela baixava a cara. Uma vez começou a chorar e a dizer que não gostava dos olhos porque é a única na família com olhos claros. Elas querem ser iguais uma à outra e trocar de pele. Ultimamente, a Gabriela está muito mais confiante. Comecei a pensar, devo isto às minhas filhas. Procuro referências na rua, pessoas normais, em vez de pessoas famosas. Ela agora está com mais auto-estima. É, este cabelo mais crespo, o que ela chama puffy hair. Ela brinca às perucas com o Playmobil. A pequena sereia? Elas não têm noção desse debate. Têm a experiência de serem diferentes e diferentes uma da outra, mesmo enquanto gémeas. Consciência de si que não tem muito a ver com outras experiências como a minha ou a tua. Uma identidade muito própria, muito criativa. A Isabel quer ser artista, tem outras prioridades. Tenho 43 anos e considero-me uma mulher atraente, inteligente. A única coisa que ainda hoje mantenho, e que até acho infantil, é essa insegurança, essa incerteza com o meu cabelo. A minha irmã é muito mais escura e crespa e de cabelo mais longo, e ela pinta de loiro. A Gabriela e eu somos obcecadas pelo cabelo. Se havia dez pretos na minha escola secundária, era muito. Se eu trabalhasse num banco, provavelmente mudaria o meu visual. Não condeno quem tem de ser assim. Os africanos mudam para nomes europeus para irem a entrevistas de trabalho. Havemos de preencher as quotas juntas! Eu sou de uma família mandinga e o sonho da minha vida sempre foi ter aquela pele de ébano da minha mãe. A beleza é tal que se torna chocante o contraste com a cores dos tecidos. Hoje não tenho dúvida de que sou uma mulher africana. Até então, a minha experiência era aprendida, não era real. Onde me enquadro? Não me enquadro. Até o andar, o ritmo é diferente. Apaixonei-me por tudo o que é guineense, mas a subserviência choca-me. Uma vez um tio falou-me sobre uma segunda mulher. O meu marido vai arranjar outra mulher no dia em que eu arranjar outro homem, respondi. Ele tropeçou nas escadas e ia caindo. Ninguém vai olhar para mim e achar que sou guineense. Foram à Guiné na Páscoa e adoraram. O António ficou muito admirado com a liberdade das crianças, as crianças livres que os meus filhos nunca vão poder ser.”

 

Can I borrow your hair?
Kitchen table, Carrie Mae WeemsKitchen table, Carrie Mae Weems“Can I borrow your hair?”, pergunta o porteiro de um hotel. Usa luvas, como aqueles que revistaram a afro da minha irmã num aeroporto, certa vez. Estas, porém, são brancas. Ele também. Nenhuma de nós ri. Seguimos caminho e, desta vez, já nem abanamos a cabeça. Temos mais que fazer. Temos de comer chicken and waffles pela primeira vez na vida. Dias mais tarde, já em Lisboa, um outro homem vem atrás de mim na rua durante o que me parece ser muito tempo. Eu estou com pressa para encontrar um amigo e afastar-me do desconhecido. É um outro tipo de assédio, mascarado de elogio como todo o bom assédio. Finalmente chego ao café e ele segue, mas é como se ainda estivesse atrás de mim, na rua, a reparar, a fazer-me reparar, a fazer com que outros reparem. A envergonhar-me. No Carnaval, no Largo do Intendente, pára uma rapariga negra bem escura, com uma trança comprida gigante, amarelo limão, um cabelo grosso de boneca de pano entrançado no dela, que lhe cai até meio das costas. Tiro foto para mostrar à Nelly para que mostre à filha. Descreve a imagem como “Sítio do Picapau Amarelo meets Ariana Grande”. Rimos. “Estava à janela, atenta ao teu cabelo, para saber que eras tu, porque o Rúben me deu como referência a afro mais espectacular de sempre.” É simpática e exagerada, a Carmo. É porque não conhece a minha irmã. “Desculpe, posso fazer-lhe uma pergunta? Porque é que vocês alisam o cabelo? Ainda se não ficasse bem…” Hoje não temos tempo para isso, caro senhor motorista de Uber. Fica para a próxima. Tudo isto me passa pela cabeça enquanto estou no 735 da Carris, a chegar a Sapadores. Numa breve pausa no caminho, olho através do vidro do meu lado esquerdo e vejo-o: um miúdo indiano, janela do rés-do-chão escancarada, escova em riste, penteando-se em paz, ao mesmo tempo em público e em privado, em casa e na rua, indiferente a tudo, fazendo festas a tudo, a todos. A última vez que fui a algum lado, quero dizer, a última vez que saí de Lisboa, foi para ir a Albergaria. Às vezes não sei que idade tenho, carregada de memórias pesadas e a leveza de um porta-chaves da Sailor Moon. Às vezes não sei o que importa, falar de tudo isto. Mas depois penso em todas as canções em que o Kendrick Lamar refere o seu nappy hair, que é o equivalente a nigger para o cabelo. E depois penso nessa viagem a Albergaria, de estar na igreja, a última a que fui, antes de começar o serviço fúnebre, e de o Elísio vir sentar-se perto de nós e dizer: “Gisela, de cada vez que olho para o teu cabelo, parece que estou a ver o Xico, esqueço-me, depois lembro-me, e sorrio. Vai ficar tudo bem. Está tudo bem.”

por Gisela Casimiro
Corpo | 9 Abril 2020 | cabelo, confinamento, crónica, identidade, origem, paciência