Desta vez
Em 2016 Will Smith afirmou, em entrevista a Stephen Colbert: “We are talking about race in this country more clearly and openly than we have almost ever in the history of this country. It’s on the table. (…) Racism is not getting worse, it’s getting filmed.” Em 2014, as últimas palavras de Eric Garner foram “I can’t breathe”. Seis anos depois, as mesmas palavras são pronunciadas, com o ar a esgotar-se na sua garganta pisoteada, por um outro homem, negro, afro-americano. Não consigo respirar, diz. Por favor, não consigo respirar. Desta vez, em Maio de 2020, o seu nome é George Floyd. Digam o seu nome. George Floyd. Mas já foi, em Fevereiro, Ahmaud Arbery e, em Março, Breonna Taylor e, entre uns e outros, certamente muitos e muitas mais. Desta vez, o racismo e a violência policial foram filmados. Tantas vezes não são. Recordo-me da canção Jewelry, do artista Dev Hynes, stage name Blood Orange: “And a man get shot on the passenger side / Too bad ‘cos a nigga went live, (went live).” Arrepio-me com estes versos pela primeira vez, eu que ouvi inúmeras vezes esta canção e sei de cor o seu vídeo. Ainda em 2016, Philando Castile foi morto a tiro por um polícia, e é sobre ele este verso. Em 2020, as hashtags #icantbreathe e #justiceforahmaud têm povoado as redes sociais enquanto milhares de pessoas se juntam através delas para exigir fim à violência racial. Estados Unidos da América e Brasil ocupam os primeiros lugares enquanto países com maior número de mortes por coronavirus. Nenhuns outros países poderiam ocupar também esses lugares quando pensamos em casos de mortes de pessoas negras às balas, mãos e joelhos das forças policiais. O menino João Pedro, de 14 anos, é mais uma perda incomensurável deste mês de Maio, no Brasil. João Pedro Mattos Pinto morre a a 18 de Maio e, a 19, comemora-se o aniversário do nascimento de Malcom X.
Decorre, no Instagram, uma campanha de sensibilização para que não se chame a polícia sem razão, de cada vez que se vê uma pessoa negra a fazer jogging, estudar na biblioteca, fazer um churrasco, viver. Agora que todos temos mais uma máscara para usar, a população masculina negra nos EUA admite correr um perigo de vida ainda maior, pela associação da bandana à imagem de criminosos. Vermelho, azul e preto são cores associadas a gangues. O próprio modo como se usa a bandana, com a ponta de fora ou não, mesmo se de uma cor “inocente” como o verde ou o amarelo, pode dar a impressão errada num país onde o medo e a ignorância parecem ser uma e a mesma coisa. Um problema de saúde e segurança públicas, civismo, justiça social. Nem todas as pessoas têm máquinas de costura ou condições financeiras para a compra de máscaras. A mesma bandana no rosto de uma mulher branca não tem qualquer conotação negativa, ninguém pensará nela como uma ladra. Veja-se o exemplo de Olívia Palermo, empresária, socialite e modelo que, recentemente, postou várias fotos suas nas ruas de Nova Iorque, onde reside, a passear o seu cão, um lenço a cobrir-lhe o rosto. Um lenço bonito, caro, sedoso. Uma mulher branca, rica, privilegiada. O rosto, ainda que coberto, da segurança, da beleza, da abundância. Agora que as máscaras caem cada vez mais e não podem ser ocultadas, o corpo substituirá talvez as caras no célebre ditado. Porém, mais e mais corações deixam de bater todos os dias. Quem vê corpos não vê corações. Ironicamente, o casal mais poderoso da cena norte-americana, Beyoncé e Jay-Z (até os Obamas vos poderiam confirmar isto), mostrou o seu apoio ao ajoelhar de Colin Kaepernick, que se recusou permanecer de pé durante o hino nacional, por discordar com a versão esclavagista da bandeira que fora hasteada durante esse jogo. No seu vídeo para Apeshit, filmado no Louvre, a cena do joelho dobrado é recriada, com as letras de Jay-Z a recordar à NFL quem precisa de quem, outra fagulha para a discussão sobre quão apreciada é a cultura negra e o quanto ela rende, em detrimento de quem faz essa mesma cultura e dos seus lucros se vê privado. Numa outra cena, Beyoncé retira a bandana pejada de pérolas que lhe cobria o rosto.
Ainda não consegui esquecer, nem jamais poderei, o modo como Ahmaud foi caçado como um animal selvagem. Mesmo assim, há caçadores que respeitam as vidas que tiram. Como em todas as crises, são as minorias étnico-raciais as primeiras e as mais afectadas. O covid-19 não foi diferente, nem mais generoso, porque os vírus não escolhem. Os governos, sim. Os cidadãos também. E foi precisamente de uma cidadã que a minha irmã me enviou um link para um vídeo no Twitter. Se voltamos à conversa entre Smith e Colbert, este último completa o raciocínio com: “The revolution may not be televised, but it’s being tweeted. (…) We have a history of ignoring problems until we can’t anymore.” Mas dizia eu que a minha irmã me enviou o vídeo no qual, em pleno Central Park, uma mulher telefona à polícia reforçando inúmeras vezes que está a ser ameaçada, ela e o seu cão (à solta, sem trela, incumprimento da sinalética do parque que terá iniciado a conversa) por um homem afro-americano. Não um homem, não um homem qualquer, não um homem branco, não apenas um cidadão, como ela, que talvez nem o visse como tal, ou como um ser humano, mas um homem afro-americano. Pergunta, e bem, Reni Eddo-Lodge: “What history had I inherited that left me an alien in my place of birth?” (em Why I am no longer talking to white people about race). Um homem afro-americano de câmara do telemóvel ligada durante todo o tempo da interacção e que assistiu (sereno, sem nunca mudar o tom de voz, a vários metros de distância e sem nunca lhe tocar ou fazer qualquer gesto na sua direcção) a um teatrinho abjecto. Teatro esse em que a mulher (cujo nome é conhecido mas não merece estar aqui, não desta vez, desta vez não, ela não, eles sim) finge, com voz lacrimejante, gritante, estar em perigo. O homem afro-americano agradece-lhe e a filmagem termina. Sucedem-se consequências. Este vídeo e a facilidade com que se pode destruir a vida de alguém só porque sim, não deixaram de me assombrar até agora.
Ainda ontem, mais tarde durante o dia, recordava-nos a Teresa Coutinho (actriz e coordenadora do Clube dos Poetas Vivos) algo que a professora e escritora Ana Luísa Amaral observou numa das suas recentes e brilhantes participações: “Somos o nosso corpo e as nossas circunstâncias.” Quem vê corpos verá, também, circunstâncias? O tema desta semana do Clube dos Poetas Vivos, resistente em versão directo de Instagram, era a poesia negra norte-americana, do famoso Black Arts Movement, fundado por Amiri Baraka (nascido Leroi Jones). Ao longo de mais de três horas ouviram-se leituras de Toni Morrison, Leroi Jones, Maya Angelou, Nikki Giovanni, Gwendolyn Brooks, Audre Lorde, June Jordan, Langston Hughes, James Baldwin, Etheridge Knight, Ntozake Shange, Lucille Clifton.
Mas também poderíamos ter estado apenas em silêncio a ouvir Gil Scott-Heron e a sua statement piece The revolution will not be televised. Ou My poem, de Nikki Giovanni, onde ela diz: “if they kill me it won’t stop the revolution.” Esteve-se à conversa com o activista Mamadou Ba. Reflectiu-se ainda sobre o porquê da categorização limitadora e abrangente de literatura como africana. O porquê desta marginalização, desta separação do que é conhecido apenas como literatura quando escrita por pessoas de pele branca e, como tal, tida por cânone. Ou, como podemos ler no prefácio do livro de Reni Eddo-Lodge: “To be white is to be human; to be white is to be universal.” Existe a literatura e as suas subdivisões mas, à parte, existe a literatura africana. A raça é uma construção social e os alicerces estavam podres desde o início. Reni Eddo-Lodge, novamente: “I write - and read - to assure myself that other people have felt what I’m feeling too, that it isn’t just me, that this is real, and valid, and true. (…) I won’t ever stop myself from speaking about race. Every voice raised against racism chips away at its power. We can’t afford to stay silent. This book is an attempt to speak.” A nossa voz é a nossa herança pois, como escreveu Audre Lorde, “Your silence will not protect you.”
Esteve-se à conversa, com incontáveis dificuldades técnicas sofridas por praticamente todos os intervenientes, negros e não-negros, durante horas, como disse. Do actor Marco Mendonça ouvimos a belíssima voz, e terá sido esta a mais poética falha da tarde. O Marco via, no lugar do seu rosto (não menos belo do que a sua voz ou as camisas de padrão de meter inveja), um quadrado negro. Nós, cada um do seu lado, apenas víamos a Teresa, como se a voz do Marco nos chegasse de um lugar ainda por alcançar. Um lugar melhor, onde as mães não choram enquanto desligam a televisão, momentos antes de tirarem a inocência aos filhos rapazes, explicando o que fazer e, sobretudo, o que não fazer, se algum dia forem mandados parar pela polícia. Ontem, por momentos, vi e ouvi pessoas como eu (embora devêssemos ser, sempre, mais), e temas que são muito meus mas que, na verdade, deveriam ser de toda a gente (da mesma maneira que estes autores deveriam ser lidos por toda a gente) terem lugar no TNDMII (e no único Clube de que me assumo membro) pela primeira vez. Ainda que longe uns dos outros, de compreender totalmente a realidade uns dos outros, ainda que com ecos, cortes, quebras, interferências, más-interpretações e todas as dificuldades da nossa luta contínua. Houve o espelho e a janela, houve um lugar de fala, houve a invisibilidade e o escurecimento, por momentos, da nossa imaginação e do átrio virtual do Teatro Nacional D. Maria II. Houve o queixo erguido e o joelho flectido. Disse-nos o Marco, esta manhã: “Estava de luto e não sabia”. É que, sabem nós não conseguimos respirar. E vocês?