A solidariedade como democracia radical e não-oficial (parte 1)
Democracia, migração, racismo e desobediência civil são algumas das áreas de especialização dos pensadores Robin Celikates e Hourya Bentouhami, com quem tive a oportunidade de conversar na última semana. O diálogo entre Celikates e Bentouhami integrou a primeira parte da programação da Filo-Lisboa (14 e 15 de novembro), na sua edição inaugural, sob a temática “Crise Pandémica: Quem sou eu neste novo mundo?” O evento, transmitido por Zoom e facilitado pelo Teatro Municipal São Luiz, Goethe Institute Portugal e Instituto Franco-Portugais junta 16 filósofos, académicos e investigadores de França, Alemanha e Portugal, de entre os quais se destacam nomes como António de Castro Caeiro ou Boaventura Sousa Santos, e aborda «“questões que convocam cada um de nós a refletir sobre como podemos assumir um papel decisivo na construção de um novo mundo, um mundo diferente do que era antes - para não voltar ao “normal”.»
Boaventura Sousa Santos abre a sessão apresentando o seu novo livro, O Futuro começa agora – da Pandemia à Utopia (Edições 70, 2020), no qual fala da pandemia como o acontecimento que verdadeiramente marca o início deste século, uma pandemia intermitente da qual não prevê que nos livremos tão cedo. Um vírus não democrático e caótico, que ataca comunidades já vulnerabilizadas e por isso expostas a maior letalidade, como por exemplo a população negra, que tem três vezes maior probabilidade de morrer do vírus do que a população branca, nos Estados Unidos. Boaventura relembra as guerras biológicas associadas à colonização e dá ainda o exemplo da varíola nas comunidades indígenas da América Latina.
“The earth is the very quintessence of the human condition, and earthly nature, for all we know, may be unique in the universe in providing human beings with a habitat in which they can move and breathe without effort and without artifice.” (Hannah Arendt, The Human Condition, 1958)
Os refugiados ambientais vão ser o maior número de refugiados no futuro, num mundo sem precedentes na sua desigualdade, prossegue Boaventura Sousa Santos. Antes da pandemia, muitos países como França, Chile, Líbano, Tunísia, estavam em protesto. O slogan era BASTA. A pandemia dificultou a mobilização social, mas a nova normalidade será de resistência, à qual o Estado responderá com violência. Os líderes negacionistas como Bolsonaro, Trump e Boris Johnson são já parte desse cenário distópico. Conclui dizendo que vamos mudar apenas o suficiente para que nada mude na sua essência.
Falei com Hourya Benthoumi antes de serem conhecidos os resultados das eleições nos Estados Unidos. Em França houve uma plataforma criada pelo governo para chamar os franceses aos campos, relembra. Os sindicatos discordaram porque os migrantes, esses sim, eram especializados em agricultura. Ou seja, racializaram-se as competências agrícolas, foi o validar de uma negação e ao mesmo tempo a confissão de uma dependência racial: precisamos de migrantes. Para uma sociedade capitalista ser eficiente, esses corpos marginalizados têm de manter-se invisíveis, excepto quando são aplaudidos das varandas e janelas. Em qualquer outro momento, para que eu possa manter a minha verticalidade política, esses corpos devem vergar-se em direcção ao chão, aos pratos por lavar, aos corpos inválidos dos quais tomam conta.
São figuras intelectuais, sim, também usadas pelos pensadores críticos num duplo sentido. Como sujeito destas discussões mas também enquanto parte dessa estrutura e posição prostrada que lhes permite, aos outros, exercer as suas próprias funções laborais. A morte de George Floyd teve muito impacto em França, e as manifestações foram uma oportunidade de fazer o luto por um ser humano mas também de expressar o quão francesa é a questão racial. O racismo é uma emergência e o primeiro confinamento mostrou isso mesmo. Há uma ligação entre o que George Floyd disse, “I can’t breathe” e estas mortes que ocorreram por doença nas comunidades racializadas, as primeiras a serem afectadas e as que mais o foram. A doença é tão natural como o racismo, por essa lógica, e nenhuma dessas causas de mortes é, na verdade, natural. Não é natural que um marroquino ou árabe apanhe uma doença pelo seu fenótipo [(grego faínô, -ein, trazer à luz, fazer aparecer + -tipo) segundo o Dicionário Priberam]. É-o, sim, pelo modo como a nossa sociedade está tão estratificada em prol da desigualdade social. Esta hiper-visibilidade também é uma forma de invisibilização. Temos de pensar nisso enquanto estratégia política: quando faz sentido procurar esse foco de luz e quando devemos fugir dele.
“However, civil disobedience today through its multiple forms of expression (electronic civil disobedience, virtual sit-ins, road blocks, parody … etc.) seems to largely exceed conscientious objection insofar as it assumes more political than moral characteristics. Moreover, due to the development of media support, and especially of the internet, civil disobedience is now a collective means of action which is easily practiced because of the high visibility it causes and the low cost of effort that it demands. Among other advantages are flexibility in the means of resistance and the potential for multiplication of the contestation fronts. But both rest on an illusion: the one that the idea of borders no longer exists.”
(Hourya Bentouhami, Civil Disobedience from Thoreau to Transnational Mobilizations: The Global Challenge, 2007)
Em França, o assédio policial (quer das polícias fronteiriças quer de outras) é uma oportunidade política para atacar a solidariedade e o modo como nos reproduzimos, o toque, a alimentação. Foi proibido, tornado ilegal fornecer refeições aos migrantes. Com a pandemia, a justificação para esta proibição deixou de ser não querer fomentar a migração mas passou a ser também por questões de saúde pública. Não posso ajudar o outro porque isso prejudica a minha saúde, como se a fome não fosse também um problema para a saúde. Estamos a reinventar e a justificar a noção de identidade nacional mas em termos médicos. A tecnologia da divisão pelo poder será reforçada por este discurso sobre a saúde, defendida de modo militar, em que lutar contra o vírus é também lutar contra o estrangeiro ou, melhor dizendo, o cidadão nacional que não seja branco. Temos de defender a noção de solidariedade, o modo como nos nutrimos uns aos outros. Não podemos delegar a estes estados racistas o modo como cuidamos uns dos outros. O modo como a polícia nos cerca implica até não poder recorrer a ela, visto que somos sempre culpados à partida, pelo modo e pelo lugar onde vivemos. As redes sociais não deveriam ser imunizadas politicamente. A virtualidade é também um modo de possibilidade, não apenas um gerador de distância: pode acrescentar mundos ao nosso. Apenas temos de entender como manter vivos esses mundos sem perder a sensibilidade e sem divergir da realidade, do essencial.
As estátuas são ofensivas para a vista, para a História dos nossos antepassados. Existe a negação de um novo racismo que seria interpretado como a mutação de um não-racismo. Paira esta atitude liberal que insiste que falar em racismo é tornar-se racista e, logo, ser racista, o que obriga a uma pedagogia exaustiva e repetitiva. Não queremos ouvir e agimos sempre de modo surpreso, como se o racismo fosse uma novidade constante e cada episódio indissociável do anterior. Sofremos de uma fadiga pedagógica, como tal cada pessoa deveria educar-se a si mesma, pois as pessoas racializadas não têm tempo para isso. Enquanto professora, isso faz parte da minha vida. No entanto, é importante que nas comunidades racializadas se dedique tempo a essa auto-educação. Precisamos de espaços para tomada de consciência dentro das nossas próprias comunidades. Toni Morrison disse que o racismo é uma diversão, uma distracção que nos afasta de tudo e nos tira tempo de cuidar de nós mesmos.
“The function, the very serious function of racism is distraction. It keeps you from doing your work. It keeps you explaining, over and over again, your reason for being. Somebody says you have no language and you spend twenty years proving that you do. Somebody says your head isn’t shaped properly so you have scientists working on the fact that it is. Somebody says you have no art, so you dredge that up. Somebody says you have no kingdoms, so you dredge that up. None of this is necessary. There will always be one more thing.” (Toni Morrison, A Humanist View, 1975)
O modo como, colectivamente, tomamos conta uns dos outros, independentemente dos governos ou de ser proibido, é o que me dá esperança. Precisamos desta esperança concreta, quotidiana, em que juntos imaginamos e construímos o que entendemos ser uma vida melhor. A democracia social e radical. A solidariedade radical e não oficial. O mundo do possível e não só das minhas limitações.
“So, it seems that the future of civil disobedience resides in this capacity to entitle some minorities – until now invisible – to claim their rights. And civil disobedience permits this due to the minimalist nature of the resources it supposes: literally, anyone can participate politically if action consists precisely in an omission, that is in refusing to do what is demanded. The minimalism of civil disobedience in fact entails an anti-contractualist perspective since it implies that “lack of will is enough” whereas the contractualist theory of democracy always maintained that the real meaning of citizenship relies on consent.” (Hourya Bentouhami, Civil Disobedience from Thoreau to Transnational Mobilizations: The Global Challenge, 2007)
A solidariedade é feita nas fronteiras e em diálogo com elas. Que tipos de vida estão expostas e em perigo, no contexto actual? Arendt dizia que, se o interior dos corpos pudesse aparecer, seríamos todos iguais, não poderíamos distinguir um indivíduo do outro. A nossa vida orgânica mostraria que pertencemos a uma espécie mais abrangente. A aparência não é a expressão do interior, no interior somos todos iguais. Se somos todos iguais, como diz Arendt, se a vida interna orgânica é igual, o que faz com que haja uma grande diferenciação entre populações? A exposição estrutural à doença e à morte prematura e que é, como relembra Boaventura Sousa Santos, destinada às populações racializadas. O racismo, que faz parte do fenómeno baseado na aparência e a sua vertente biológica associado à ferida orgânica.
Existe, na Europa, a preocupação com o auto-cuidado, hoje em dia visto como uma qualidade, uma competência de responsabilidade nacional, em que cada um deve ter amor à vida. A vida está directamente ligada aos meios da nossa existência e isso mostra como devemos defender a nossa vida do ponto de vista material, logo, existe uma diferença entre os que amam a vida e os que não a amam ou descuram, entre nós e os outros. A noção de vida é diferente nos países do sul, países como Portugal, Espanha, Itália, vistos como promíscuos por serem mais dados ao contacto. Simultaneamente, esses mesmos países acusam as comunidades migrantes que neles vivem dessa promiscuidade de hábitos e rituais. O privilégio da inocência da ignorância. Pela distracção e pelo bem-estar distraído do seu contexto pela forma como me reproduzo e consigo estar em pé, desinteressado do meu ambiente e sem pôr em vida o meu corpo. Em modo pandémico, a hiper-vigilância, monitorização e a paranóia passam a ser uma forma de protecção. Isto não é novidade para os migrantes, pois eles estão em constante evolução, sempre conscientes do seu corpo ao longo das deslocações. Qualquer falha corporal funciona contra eles. A pandemia torna-nos a todos paranóicos e, sobretudo, passamos a sê-lo contra os que fabricam, entregam e limpam. O vírus é, de certa forma, o resultado da destruição de outras formas de vida, da desflorestação nas ex-colónias, da extracção de valores dessas zonas de playground europeu cada vez mais inabitáveis, onde o modo de vida se tornou insuportável. O modo de vida europeu é, também ele, insustentável. No entanto, é tido como um santuário higiénico onde a vida é sagrada e deve ser mantida a qualquer preço, agora em risco de ser invadido pelos outros. Os corpos velhos, doentes mas mais poderosos são, ainda assim, limpos e mantidos por outros corpos no extremo oposto da sociedade. A imunidade da comunidade nacional tornou-se parte do metabolismo da nação europeia e a sua forma de defesa.
Devemos constatar que a selecção das vidas acontece e aconteceu já muito antes do hospital. Como é que a economia nacionalista se transforma num cuidado necropolitico na qual o gesto de curar pode ferir ou até matar? Estamos, de certo modo, isolados nas nossas vidas privatizadas pela crise sanitária em que usamos o sentido da vida contra o outro. Quando os migrantes chegam à Europa, não é realmente pela primeira vez. Há algo que faz falta na melancolia racial que apagou o que constitui o estrangeiro aqui e lá porque fere a nossa nostalgia. Esta força que os migrantes têm de fugir dá uma nova força à coragem política e ao amor pela vida. Uma pessoa corajosa é um ser que decidiu que não será o intérprete forçado do espectáculo que o medo quer dar. Neste exílio a que somos obrigados, encontramo-nos numa zona ténue entre o amor pela vida e o amor de liberdade da forma mais material e existencial. Os migrantes já são a prova viva de que o amor à vida é indissociável da liberdade e da interajuda entre eles mesmos, e é essa a grande lição a retirar.
A Filo-Lisboa 2020 pode ser acedida aqui.