África Mundos - Resistências Contemporâneas
África Mundos - Resistências Contemporâneas é um projeto da plataforma exo-experimental org. iniciada em 2004, que propôs uma ousada grelha de “blocos de atividades transdisciplinares de longa duração, tais como festivais de cinema, seminários, edições, residências de autores, entre várias outras”. Ainda que não se tenham cumprido a maioria das etapas previstas - da proposta inicial realizaram-se somente shows de Tony Allen, em São Paulo e a residência com o autor nigeriano Eytayo Aloh, em Salvador e em São Paulo –, foi importante para situar uma agenda em torno da figura de Fela Kuti, nome lendário do afrobeat e inspiração política do ativismo.
O objetivo central do projeto foi estreitar relações entre as figuras centrais do pensamento contemporâneo africano e brasileiro, por via dos movimentos libertários do período da descolonização, o pan-africanismo, negritute, Black Power, entre outros, fundadores de uma vivencia pós-colonial não só no continente africano, mas também na diáspora global.
África Mundos - Resistências Contemporâneas considerou a relação descontínua e a generalizada ignorância que ainda prevalece entre o Brasil e a África. Como sabemos, apesar da relação histórica entre os dois lados do Atlântico sul, os modelos sucessivos de economia colonial só contribuíram para criar um fosso cada vez maior. Este desconhecimento deve-se a inúmeros fatores que não são passíveis de serem sumariamente elencados, e têm uma evolução histórica que gradualmente os complexifica. Porém, é ao nível do plano da representação que o mundo ocidental viu (e continua a ver) “África”, como um território desprovido de humanidade, imagem agravada pelos sucessivos séculos de delapidação material e simbólica, que desemboca hoje em formas de neocolonialismo, mascaradas de ajuda humanitária.
É preciso referir que o desconhecimento das ideias dos movimentos libertários e sua reverberação no mundo contemporâneo, não é realidade somente fora de África. Se tivermos em conta que seis em cada dez africanos têm menos de vinte e cinco anos, deduzimos que nasceram após o apartheid, que não vivenciaram a guerra civil e que terão ouvido os acontecimentos na segunda ou terceira pessoa.
É, portanto, a partir deste capítulo de desvinculação colonial tão “desconhecido” quanto contundente, da longa primavera da África (por relação aos acontecimentos políticos recentes no Oriente Médio), e de um novo pensamento ideológico e cultural (o exemplo da “pedagogia da revolução” de Amílcar Cabral, nas palavras de Paulo Freire), que as responsáveis – Ligia Nobre e Cécile Zoonens – pela plataforma exo experimental org., em colaboração com Anne Sobotta, “imaginaram” uma aproximação renovada e necessária.
Mas qual a importância contemporânea desta aproximação? O que alimenta esta necessidade hoje, em que o Brasil se assume como uma potência no mundo? O que existe para além da histórica descendência afro, de milhões de brasileiros?
São muitas as respostas, mas talvez possamos dizer que, a contrapelo da expansão global, assistimos à retomada de laços entretanto quebrados, mas fundamentais na formulação da “identidade inacabada” (Stuart Hall) caraterística do nosso mundo contemporâneo. À fragmentação e descontinuidade do momento atual, e ao apagamento das noções de periferia e centro, estamos a responder com a redescoberta das particularidades, a busca das diferenças, dos localismos. Em um cenário como o brasileiro, onde ocorrem bruscas mudanças provocadas pelas novas estruturas sociais, o conceito de Hall tem uma expressiva ressonância.
É interessante pontuar o espectro de adjetivações que “organizam” o Brasil enquanto espaço mental coletivo. Desde a ideia de um país “continental”, onde “o Brasil são muitos brasis”, até à reivindicação de identidades circunscritas (afrodescendente, indígena, etc.). Como refere o crítico Paulo Emílio Salles Gomes a propósito do singular ambiente identitário do Brasil, a “dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro”.
Assim, a partir da noção de identidade “inacabada”, ou “em processo”, lançamos três ideias-chave para futuros desdobramentos do projeto exo experimental.org, tendo em conta a sua natureza de rede virtual:
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Arquivo aberto. Dar conta do amplo espectro das posições históricas e críticas formuladas sobre África, por africanos e não-africanos, por meio da criação de um banco de dados que refira os diversos lugares de enunciação deste pensamento. Proporcionar um acesso privilegiado aos textos fundamentais dos ativistas dos anos sessenta e dos pensadores atuais (economistas como Céléstin Monga, escritores como Binyavanga Wainaina, Ruy Duarte de Carvalho, Luandino Vieira, cientistas sociais tais como Achille Mbembe, Ruth Simbao, Manthia Diawara, curadores como Stina Edblom, Paul Goodwin, Okwui Enwezor, Bisi Silva, artistas como Zanele Muholi, Nicolas Lhobo, Pascale Marthine Tayou, William Kentridge, Yto Barrada, Ângela Ferreira, entre muitos outros) promovendo uma ideia de arquivo como “um sistema geral de formação e transformação de discursos” (Agamben);
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Criticismo. Problematizar a noção de “afrodescendente” como parte do processo de “identidade imaginada”, no contexto do ativismo pela recuperação das identidades originárias, perdidas, ou ameaçadas (indígenas, regionais, etc), em particular nas redes da internet. No limite, “somos todos africanos”, “somos todos judeus alemães”, “somos todos guarani-kaiowá”. Ou seja, procuramos inscrever nossa identidade numa condição para além dos limites do pós-colonial (fora da modernidade). É sobre estes novos discursos identitários, mas onde ainda persistem os dispositivos do capitalismo, que devemos procurar criticamente um novo sujeito, a que alguns chamam de criolo universal, embora ameaçado pela indiferença recíproca entre processos de subjetivação e processos de dessubjetivação (Agamben, 2009, 47).
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Espaço público. Sabemos que é pouco, mas não sabemos o espaço real que ocupam as culturas africana, afro-descendente, da diáspora na esfera da cultura brasileira. Se sairmos do atavismo das políticas do Estado brasileiro para a sua valorização e salvaguarda, deparamo-nos com um vazio a este nível. Em especial a sua contribuição nas culturas urbanas das principais cidades do país. Cabe aqui questionar de que forma elas (re)desenham a evolução atual das cidades brasileiras e a vivência cosmopolita urbana? De que forma inscrevem um tipo de “urbanismo” pode ser lido no tecido social e cultural da sociedade, engajando os cidadãos na construção coletiva da alteridade e da diferença?
África Mundos - Resistências Contemporâneas é um projeto que ainda poderá contribuir para adensar criticamente o modo de pensarmos a hierarquia racial (e cultural) no Brasil, e que poderá também encurtar as distâncias e os impasses que persistem. Pondo de lado, assim, os lugares comuns e o desconhecimento.
artigo retirado do projecto EXO
introdução ao projecto:
O projeto transdisciplinar ÁFRICA-MUNDOS Resistências Contemporâneas procurou dar visibilidade às complexas posturas culturais e críticas da África contemporânea
ÁFRICA-MUNDOS Resistências Contemporâneas constituiu uma plataforma para a produção cultural de origem africana, re/ativando redes de pesquisadores, criadores, escritores e agentes sociais. Este projeto tentou rever os modos estabelecidos de interpretação da sociedade africana e buscou formas atuais de apresentação de uma produção contemporânea herdeira do discurso crítico dos grandes movimentos de independência (pan-africanismo, negritude, Black Power, consciência negra, nacionalismo africano, afrocentrismo). O projeto se estabeleceu como uma tentativa inovadora, procurando apresentar e discutir no Brasil a cultura e o contexto social africanos contemporâneos, colocando-os em perspectivas com os debates atuais e questões sobre a identidade afro-brasileira e as diferentes formas de militância.
•ÁFRICA-MUNDOS Residências Contemporâneas• foi idealizado para uma duração de dois anos (2004-2006), como processo contínuo pontuado por momentos de visibilidade. Cada bloco do projeto articular-se-ia em torno de uma figura-chave, uma temática ou um campo de pesquisa: encontros, publicações e residências seriam desenvolvidos, permitindo o compartilhamento de conhecimentos, assim como a expressão de modos de resistências e de discursos críticos. A exo documentaria as etapas do projeto com vários formatos editoriais e multimídia, alimentando um arquivo acumulativo.
A presença do percussionista Tony Allen no Brasil, em junho de 2004, marcou o lançamento dobloco/1 Fela Anikulapo Kuti, entre cultura e ativismo - Resistências Contemporâneas Africanas, com dois concertos de Tony Allen & band em São Paulo no Fórum Cultural Mundial - SESC Itaquera e na Mostra SESC de Artes no SESC Pompéia. Tony Allen é um dos maiores percussionistas do planeta, e é reverenciado como o homem que criou, junto com o músico nigeriano Fela Anikulapo Kuti (Fela Kuti),, uma das músicas mais significativas do século XX: o afrobeat, com seus ritmos únicos, super-funky e contagiantes. Tony Allen & band apresentaram a turnê do disco Home Cooking.
A residência do autor e jornalista Nigeriano Eyitayo Aloh em Salvador e São Paulo em novembro e dezembro de 2004, constituiu sua segunda etapa. Durante sua estadia no Brasil, Eyitayo Aloh contribuiu para o projeto através de uma análise crítica da obra e da filosofia de Fela Kuti.
Uma série de palestras/encontros, oficinas e projeção de filme foram realizadas com diversos públicos nas cidades de Salvador e São Paulo, examinando duas dimensões fundamentais de Fela Kuti: como oponente social e político nigeriano e criador do estilo musical afrobeat.
Tayo abordou a filosofia de Fela Anikulapo Kuti baseada em sua música, explorando suas letras, a representação do discurso de oposição à opressão, da campanha contra os vícios sociais e da emancipação das massas, apontando a relevância da “música como arma” em uma sociedade opressiva, em experiências intercambiadas brasileira e nigeriana. Algumas de suas canções foram cantadas com as crianças e educadores em oficinas em Salvador no intuito de buscar uma re-conexão com suas raízes Africanas, baseado nos valores aos quais Fela direcionou fortemente algumas de suas canções, (a música de Fela, de certa forma, foi influenciada por cantos populares tradicionais). Em ambas as cidades, Tayo discutiu também o Shrine: lugar de convivência e de formação política fundado por Fela e baseado nos valores aos quais ele direcionou fortemente algumas de suas canções, espaço de concerto à noite e centro sócio-cultural durante o dia. Templo da democracia e verdadeiro espaço público africano.
Fela Anikulapo Kuti, entre cultura e ativismo - Resistências Contemporâneas Africanas foi realizado com apoios, parcerias e colaborações importantes, com a co-concepção e coordenação artística de Anne Sobotta, participações de Eugenio Lima, Luanda Castella, Luca Baldovino, Carlos Moore, Eyitayo Aloh, dentre outros, e instituições como Prince Claus Fund (Holanda), Instituto Polis São Paulo, programa Coisa Fina/Galeria Olido - São Paulo, Universidade Federal da Bahia - Escola de Dança, Fundação Cultural Palmares- Salvador, CEAO- Centro de Estudos Afro-Orientais, Terreiro da Casa Branca – Ilê Axé Iyá Nassô Oká, Ilê Aiyê- Centro Cultural Senzala do Barro Preto – Salvador; Consulado Geral da França em São Paulo, Forum Cultural Mundial e SESC São Paulo, dentre outros.