Europa, periferia das ilhas crioulas
1
Aimé Césaire, Franz Fanon e Édouard Glissant foram filósofos que refletiram profundamente sobre o mundo que nos constitui, a partir da condição colonial e da herança da escravatura que tanto marca a sua ilha natal, a Martinica, nas Antilhas Francesas. Para tal terão tido muita importância as suas próprias experiências de homens mestiços/negros, a sua circulação pela Europa (e, especialmente, por França) como estudantes e trabalhadores, a vivência da Segunda Guerra Mundial e dos seus efeitos devastadores, mas também decisivos para a libertação do mundo e, em particular, do mundo colonizado. A partir das heranças do tráfico negreiro e da escravatura que atingem a América do Sul, o Caribe, Cuba e a América Central, os filósofos interpretaram estes espaços e desestabilizaram os lugares comuns e as narrativas coloniais, reinterrogando-as a partir dos territórios, dos corpos, das pessoas e das suas subjetividades. E foi assim que, com diferenças entre si, e em pleno período de discurso anti-colonial, interpretaram o sentido destas violentas heranças como manifestos de resistência e de luta pela dignidade da condição humana. Este parece ter sido um objetivo que une os seus estudos, o sentido das suas vidas e da mensagem que deixaram às gerações futuras. É esse aliás o sentido da carta que Aimé Césaire escreveu ao Presidente da Câmara de Fort-de-France, capital da Martinica, quando surge a proposta de fazer um museu à volta das suas ideias, do seu trabalho e das suas relações. Hoje este espaço é um gabinete – o gabinete que foi de Aimé Césaire na Câmara Municipal de Fort-de-France – onde podemos ver o mobiliário, objetos pessoais, a sua obra, os primeiros números de Tropiques e de Présence Africaine, os quadros dos amigos pintores entre quais Madame Lumumba de Wifredo Lam, assim batizado por Aimé Césaire, na sequência do assassinato de Patrice Lumumba, em 1961. O Centre Caribéen d’Expressions et de Mémoire de la Traite et de l’Esclavage (Mémorial ACTe), em Pointe-à-Pitre, capital da Guadalupe, também nas Antilhas Francesas, obedece a esta filosofia matricial e constitui a materialização desta ambição. Nas palavras de Victorin Lubel, deputado e Presidente do Conselho Regional, que podemos ler no site do museu: “Nós, os herdeiros e filhos da Guadalupe, testemunhos e atores desta história, devemos criar um novo humanismo, capaz de trazer a compreensão e a fraternidade aos homens. Estas não são palavras vãs, num mundo e sociedades em crise, mas antes uma oração, uma demanda, uma ação: reunir, testemunhar, recordar, registar para evitar o esquecimento, para que amanhã os piores momentos da história não se repitam. Este é o significado e o testemunho do Memorial ACTe.”1
Inaugurado em Maio de 2015, o Memorial ACTe é provavelmente uma das mais surpreendentes propostas museológicas a abordar o tema do tráfico e da escravatura não como facto histórico, mas como memória contemporânea. Concebida sob a direção do Conselho Regional por uma equipa multinacional e multidisciplinar, o museu é constituído por vários espaços, de que destaco: o centro de pesquisa genealógica, onde as famílias se podem dirigir para encontrar algo de profundamente privado e público, ou seja, o seu próprio nome e de, através dele, os seus rastos familiares na ilha. Tendo à disposição entre 6000 a 8000 árvores genealógicas de famílias da Guadalupe e documentação proveniente na maioria de arquivos públicos e privados, este acto de restituição de uma identidade é fundamental para que se possa começar a contar a história da ilha e do longo momento histórico de que os seus habitantes são herdeiros; essa é a história contada no outro espaço que destaco, o da exposição permanente que nos oferece um visita imersiva no processo da escravatura, da segregação e do racismo através de variados meios. Um guia áudio acompanha-nos ao longo da visita e através de projeções vídeo, quadros interativos, encenações, filmes de animação e peças patrimoniais percorremos uma exposição apresentada numa cenografia ousada e pontuada por intervenções de artistas contemporâneos das Américas e de África que nos remetem permanentemente para o presente como herança, memória ou realidade. Este é, sem dúvida, um dos elementos que mais nos compromete com a história aqui narrada hoje, bem como a atenção que é dada às subjetividades expressas na representação de vivências quotidianas, na procura de histórias pessoais traçadas entre a realidade e o mito, na dimensão da resistência e da luta individual e coletiva, e na constante oscilação entre a dimensão global do tráfico e da escravatura e na ilha da Guadalupe e no Caribe. A exposição é constituída por 37 ilhas que, por sua vez, se reagrupam temática e cronologicamente em 6 arquipélagos que fazem desfilar diante dos nossos olhos os tempos e os temas fortes da escravatura, desde a Antiguidade aos nossos dias. A invenção das Américas com a chegada dos Europeus; os inícios da escravatura e do tráfico negreiro transatlântico; o tempo da escravatura; o tempo da abolição; o pós abolicionismo com as migrações, as políticas de segregação, as lutas pelos direitos civis e o retorno à terra africana prometida; a colonização e a descolonização, e a mudança de imagem do negro. A escravatura hoje e a denúncia dos 36 milhões de pessoas escravizadas finalizam a exposição permanente, mostrando-nos mais uma vez que o problema da escravatura está longe de ser histórico, na sua realidade e na memória da humanidade.2
Todavia é importante registar uma questão, na senda da observação do historiador Amzat Boukari-Yabara com raízes familiares na Martinica e no Benim, relativamente a este centro situado em território francês ultramarino: “O Centre Caribéen d’Expressions et de Mémoire de la Traite et de l’Esclavage (Mémorial ACTe) situado na Guadalupe (Antilhas Francesas), reafirma a ideia de uma memória longínqua que exclui diretamente o território francês europeu, a partir do qual toda a empresa da escravatura foi organizada.”3 Esta observação, para além do que ela afirma sobre a dificuldade europeia em lidar com esta herança, é também muito pertinente quando olhamos a última proposta literária do escritor cabo-verdiano e português, Joaquim Arena, Debaixo da nossa Pele – Uma Viagem (2017) que nos convoca para uma reflexão sobre a presença negra, nomeadamente de escravos, em Portugal e na Europa. Originário de Cabo Verde, um arquipélago fortemente marcado pelo tráfico, a escravatura e as migrações, Joaquim Arena empreende uma viagem na senda do afropeísmo protagonizado pelos europeus, filhos de migrantes africanos que cresceram e viveram na Europa e que integram na sua identidade europeia uma memória e uma vivência africana mais ou menos real, mais ou menos ficcionada. Esta é a linha protagonizada por muitos artistas europeus como o britânico Johny Pitts ou o belga flamengo John K Cobra (Roland Gunst) entre muitos outros. Misturando motivações biográficas, passado, presente e futuro, e realidade e ficção propõem uma rutura de paradigma na leitura da história europeia, não mais confinada aos seus limites territoriais continentais, e não apenas narrada a partir dos grupos de poder, mas também dos grupos minoritários, portadores de narrativas silenciadas, ocultas ou alternativas, em que África está presente e assim se torna parte do país europeu em questão e da Europa em geral.
2
Debaixo da nossa Pele – Uma viagem tem início num encontro de teor académico sobre a presença negra na cidade de Lisboa. A atenção do narrador fica presa em Leopoldina, uma professora do ensino secundário aposentada, que na sua comunicação aborda, com admirável à vontade, a presença negra em Lisboa. Mas logo nestas primeiras páginas ficamos a saber, pela explicação que nos é dada sobre o convite realizado pela organização ao narrador, qual é o sentido da sua viagem: trata-se de uma viagem pessoal, filosófica e identitária de um cabo-verdiano em reflexão sobre a trajetória da sua família de imigrantes e que, em si, condensa a história do seu país natal e de uma diáspora mestiça e negra global. A comunicação de Leopoldina reflete sobre os conhecidos quadros renascentistas portugueses, aliás recentemente discutidos, em que a presença negra se afirma no centro de Lisboa e que serão o pretexto para uma visita de redobrada atenção à cidade de Lisboa onde o narrador cresceu. Esta visita é inicialmente conduzida por Leopoldina que, no Jardim Tropical – um resto da Exposição do Mundo Português de 1940 – lhe revela o seu interesse na matéria do colóquio: Leopoldina seria ainda, de acordo com uma longa história familiar, descendente de escravos. E é assim que surge uma outra viagem que com a primeira se interceta: trata-se na verdade de uma peregrinação ao longo do rio Sado em demanda dos rastos de descendentes de escravos negros trazidos para esta zona, para o cultivo do arroz, no século XVIII, que se entrelaça com a vida de outros negros na Europa e da sua própria vida de mestiço, herdeiro de tantas cicatrizes, diásporas e cruzamentos, flagrados em histórias ocultas e silenciadas, em fragmentos dispersos, indícios, fantasmas.
“Fixo a minha sombra, a minha breve e insignificante silhueta, nesta paisagem, enquanto imagino o itinerário dos ancestrais deste homem, provavelmente escravos africanos. (…) Não existe melhor local para se interrogar a identidade, a grandeza e a condição humana do que um rio, pois nada é mais imperfeito do que o seu fluxo, mais incerto e irrepreensível do que a sua cor.”4
E é a partir desta reflexão ao longo do rio próximo das aldeias fantasmáticas que procura - São Romão e Rio de Moinhos – que vai tecendo laboriosamente uma teia de imagens, estórias, mitos de onde emergem escravos locais, serviçais, famílias mestiças e conhecidas personagens históricas negras presentes na Europa desde Portugal à Rússia, mostrando-nos que na Europa a escravatura, o colonialismo e a descolonização são presenças sem fronteiras, desde o século XV ao estabelecimento de imigrantes cabo-verdianos, a partir dos anos 60 do século XX. O que desfila diante dos nossos olhos são vidas dispersas, famílias fragmentadas, glórias e infortúnios sempre em algum momento pautadas por desvalorização, discriminação, preconceito e que de novo se condensam em torno da história da família do narrador espalhada pelo mundo, dispersa e afastada da terra natal e que e em si representa os movimentos históricos e intercontinentais de populações, compulsivamente transportadas ou levadas em circuitos de emigração ligados à pobreza, à falta de desenvolvimento, à guerra e geradores de novas identidades. São histórias a partir das quais o narrador desafia a ambiguidade do discurso da negritude e da branquitude, o racismo e o anti-racismo, a plasticidade da discriminação, a armadilha do estereótipo e a consciência do preconceito. São histórias que nos apontam para um passado comum de memórias muito diferentes.
Debaixo da nossa Pele – Uma Viagem, os trabalhos artísticos de muitos outros afro-europeus, o trabalho jornalístico de Joana Gorjão, o conceito subjacente ao itinerário “Testemunhos da Escravatura – Memória Africana” pelos espaços museológicos e arquivísticos lisboetas, concebido pelo Gabinete de Estudos Olisiponenses, no âmbito de “Passado e Presente. Lisboa Capital Ibero-Americana da Cultura”5, a proposta do Centre Caribéen d’Expressions et de Mémoire de la Traite et de l’Esclavage (Mémorial ACTe) são exemplos de propostas narrativas, artísticas e museológicas ainda à procura de leitura. São indícios de uma Europa complexa a desembaraçar-se do passado, a descolonizar-se das suas ex-colónias, a libertar-se das imagens do ex-colonizador e do ex-colonizado e, portanto, são sinais de uma Europa que, ao rever a sua narrativa aproximando-se das ilhas crioulas, equaciona outro futuro.
_________________
Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS – Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.
- 1. «Nous devons, nous les héritiers et enfants de la Guadeloupe, témoins et acteurs de l’histoire, créer un nouvel humanisme, porter l’entente et la fraternité des hommes. Ce ne sont pas des mots inutiles, face à un monde ou des sociétés en crise, mais une prière, une incantation, une action : rassembler, témoigner, se souvenir, construire, s’inscrire pour éviter l’oubli et pour que demain les pires moments de l’histoire ne se répètent plus. Voilà le sens et le témoignage du Mémorial ACTe». Acessível com mais informação no site do museu: http://memorial-acte.fr/ Acedido a 31 de Agosto, 2018.
- 2. Cf informação no site do museu: http://memorial-acte.fr/ Acedido a 31 de Agosto, 2018.
- 3. Amzat Boukari Yabara, “Contornos Pan-Africanos das Memórias Pós-Coloniais”, “Encarte Memoirs”, Público, 14 de Setembro, 2018, p. 14.
- 4. Joaquim Arena, Debaixo da Nossa Pele - Uma Viagem, Lisboa: INCM, 2017, p. 164.
- 5. Testemunhos da Escravatura – Memória Africana - http://testemunhosdaescravatura.pt/pt. Acedido a 31 de Agosto, 2018.