À espera do próximo futuro (II)
Em 2011, Patrick Chabal, um dos célebres nomes das conferências do Próximo Futuro, no âmbito das Grandes Lições, declarava que estávamos a viver um momento claro e novo. Anunciava assim esse “próximo futuro”:
O futuro do Ocidente está estreitamente ligado ao do mundo não ocidental. As questões ambientais que o mundo enfrenta e o crescimento inexorável do poder económico da China e de outros países asiáticos fazem com que o Ocidente não possa olhar “para o que vem a seguir” da mesma forma que o fazia antes. Mas o desafio é bem mais profundo do que o atual debate sobre o “declínio do Ocidente” sugere. A minha intervenção centrar-se-á no modo como o desafio pós-colonial colocado à perspetiva que o Ocidente tem do mundo e a influência de cidadãos não ocidentais a viver no Ocidente se juntaram para evidenciar os limites daquilo a que posso chamar o racionalismo ocidental - com o que me refiro às teorias que utilizamos para entender e agir sobre o mundo. (1)
Este era o momento, o longo momento que hoje estamos vivendo, e portanto a pergunta inicialmente colocada pelo programador-geral António Pinto Ribeiro – “Podemos intervir no futuro, no próximo futuro? Podemos, certamente” – não se esgotava na sua dimensão temporal. Era uma pergunta estética, ética e política que determinaria não apenas a metodologia de programação do Próximo Futuro, mas sobretudo o seu conteúdo, sabendo que nesse “futuro”, há sempre o lugar para ver de novo, e até de re-descobrir – e portanto todo o espaço para o improviso –, no que ele sempre nos reserva de inovação e de atenção ao contemporâneo. Esta é para mim uma palavra que pode descrever este programa, na sua capacidade de combinar elementos, disciplinas, geografias e formas artísticas diferentes, ou até aparentemente sem ligação, mas cujo resultado produz algo de novo. A outra seria cosmopolitismo, que em si contém a ideia de uma mobilidade produtiva como desejável e não como um problema, definindo o Sul como um “nexo de cosmopolitismos locais e movimentos e diásporas intercontinentais.” (2) Finalmente e definitivamente o Próximo Futuro é pós-colonial, construindo o momento em que a partir de uma geografia europeia se reconhece que grande parte da sua história se passou fora dos limites territoriais europeus e se vai à procura dela, não nos óbvios sinais que deixou, mas do que transformou e do qual também a própria Europa terá saído transformada. Próximo Futuro é o momento em que Portugal e a Europa se encontram com o mundo no século XXI para gerar futuro.
A programação deste vasto e multiforme programa é ambiciosa, requereu meios financeiros consideráveis, capacidade de gestão, produção, realização, muita imaginação e inteligência emocional e negocial. Decorre de uma metodologia atenta, interdisciplinar e cuidadosa que articula dois eixos fundamentais para pensar e compreender o presente e pensar o futuro. Próximo Futuro tece-se a partir de uma estrutura que articula linhas de debate, pensamento e teoria nas áreas das artes, ciências sociais e humanas – de que os workshops, com participação de investigadores nacionais e estrangeiros e os ciclos das “Grandes Lições”, com grande nomes como Achille Mbembe, Elikia M´Bokolo, Homi Bhabha, Arjun Appadurai, Alan Pauls, Gayatri Spivak, Mamadou Diawara, Néstor Garcia Canclini, Ticio Escobar, Lilian Thuram, Kole Omotoso ou Patrick Chabal são exemplo – com um outro eixo, ligado à cultura artística e que traz os espetáculos de dança, teatro, música, cinema e as exposições de artes visuais. Revisitando o site e percorrendo os jornais e o blogue do Próximo Futuro, vemos como a cultura visual é um registo a par de outros mais tradicionais, ligados ao texto escrito e musical. Todos são portadores de inovação e mediadores das variadas formas de representação dos espaços, pessoas, sensibilidades e atualidades das geografias em destaque no Programa. Todavia, não há dúvida que a enorme presença da fotografia – com espaços dedicados à divulgação dos Encontros de Fotografia de Bamako, do fotógrafo sul-africano Pieter Hugo, ou da moderna fotografia brasileira – e das artes visuais, com a sua capacidade imediata de produção de imagem e de imaginários, mudou o olhar sobre estes espaços para a maioria do público. Finalmente, um outro aspeto que me parece muito importante na conjugação de todas estas pessoas e espaços de reflexão e criação que este Programa promoveu foi a capacidade de produção e realização de múltiplas obras artísticas, teóricas e literárias para o próprio Programa, o que permitiu a um conjunto de pensadores, investigadores e artistas jovens pensar e realizar, a partir do seu lugar, uma obra capaz de participar numa plataforma de criação e diálogo nova como foi a proposta de Próximo Futuro. Este movimento de cruzamento e produção de conhecimentos vários com a participação de jovens artistas – que não estariam de certo habituados a trabalhar para instituições como a Fundação Gulbenkian –, a ocupação de espaços menos esperados do edificado da Fundação como a garagem para os bailes e concertos, das zonas exteriores como os jardins e mesmo de outros espaços na cidade de Lisboa, criaram uma zona de diálogo, intervenção e fruição capaz de atrair outros públicos e de viver em pleno a possibilidade da democracia pela arte, e da interculturalidade como um desafio e não como uma ameaça, e portanto como possibilidade de um próximo futuro.
Pelos espaços de consumo de arte e cultura, e de formação e criação que teve, o Programa marcou definitivamente as artes contemporâneas de que hoje vemos os resultados: internacionalização, diálogo e alinhamento dos temas destes espaços e geografias na agenda artística internacional, assim como a presença assídua de muitos destes pensadores, artistas e escritores na cena cultural contemporânea europeia e mundial. Como refere António Pinto Ribeiro no balanço que faz do Programa em 2011, ou seja, após três anos do Próximo Futuro “o conhecimento e o confronto com estes protagonistas originários de África e da América Latina permitiu-nos, a todos, alargar os horizontes e melhor entender o mundo.” (3)
Assim, a pergunta inicial, não enunciada, mas que subjaz à programação – como entender, no Ocidente, as artes não ocidentais para além do paradigma saído do mundo colonial – tinha obtido respostas. Deste modo, um dos grandes desafios metodológicos e éticos deste Programa e, de certa forma, a grande mudança que introduzia, tinha-se cumprido. A primeira metodologia era mostrar as obras e os seus protagonistas não como africanos ou como latino-americanos, mas como artistas, pensadores e produtores de conhecimento. A segunda era captar as obras – nas artes visuais, performativas, no cinema, na literatura e na música – capazes de fazer o trânsito entre um olhar europeu ainda colonial na perceção destes espaços e sujeitos e a novidade, o chique urbano, cosmopolita e moderno de artistas latino-americanos, africanos ou de ascendência africana, colocados eles próprios entre uma afirmação política de diferença das sociedades do Norte e uma ansiedade celebratória das suas sociedades à procura de si mesmas e em intenso processo de recriação e descolonização. Para além da qualidade indiscutível das obras e curadorias que compuseram o Programa, e não sendo uma programação temática, os temas deram-lhe a forma e construíram as âncoras para esta nova navegação: fronteiras, identidades, memórias, cidades, mobilidades, migrações, resistências, crises, novas economias de produção, zonas de contato foram temas que, pela interpelação que lançaram e que ainda hoje nos interrogam, marcaram um novo olhar sobre estes espaços.
E qual foi a experiência deste olhar? Entre outras, a capacidade de entender melhor o mundo, que explica, por exemplo, o fascínio e a aptidão de, perante um momento de revolução e novidade tão grande como foram as designadas “Primaveras Árabes” nos países do Magreb, o Próximo Futuro teve a capacidade de revolucionar a sua programação lançando-se para outro universo e dar resposta a esta demanda de possibilidade de entendimento do que se estava a passar naquela parte do globo, simultaneamente tão próxima e tão longínqua da Europa ocidental. Também aqui era fundamental entender e desfazer estereótipos com a espessura de séculos, e era essencial lidar com o grande fantasma do Ocidente – o Islão. Finalmente, a tradução para português do belo poema “Casa”, de Warsan Shire, que parece uma explicação-diálogo com o Ocidente do drama dos refugiados, mostrava já como o tema do Oriente e do Magreb teria de ser contemplado num programa com a ambição de olhar o contemporâneo como o Próximo Futuro. Neste ano de 2012 é dada hospitalidade à criação contemporânea do Magreb - do design e à moda, à literatura e ao pensamento, ao cinema e à música. A mobilidade destes artistas concretiza-se, em grande medida para a Europa e em particular para o sul de França, num movimento esperado e que hoje marca definitivamente a cena artística e literária francesa, mas que também encontrou neste Programa, em Portugal, um espaço de divulgação das suas histórias, ansiedades e sonhos numa altura de rutura com um passado opressivo e um futuro incerto e potencialmente problemático.
De 2013 a 2015, o Programa entra numa outra fase, a fase das grandes reflexões. A edição de 2013 começa com a declaração definitiva e perturbadora proferida pelo bispo sul-africano e Prémio Nobel da Paz, Desmond Tutu, “Lamento dizer-vos mas somos todos africanos” (4), aquando da sua conferência na Fundação sobre a paz no mundo e o desenvolvimento sustentável. Criador de um dos mecanismos mais produtivos, democráticos e humanos de justiça pós-conflito – as Comissões de Verdade e Reconciliação da África do Sul, reproduzidas em muitos outros países africanos e latino-americanos – Desmond Tutu falava, a partir de Lisboa, ao coração de todos os europeus. Falava não apenas da revolução que esta afirmação trazia às suas narrativas tão pouco questionadas, mas à sua própria humanidade, vinda de África. Desmond Tutu introduzia assim o tema do desenvolvimento sustentável pelo viés da história e do poder da narrativa. Apelava a responsabilidades históricas e éticas dos europeus, não apenas no sentido de pensar mecanismos de restituição e cooperação, mas sobretudo no sentido contemporâneo de capacidade de audição dos outros e das suas narrativas, por forma a garantir que, hoje, situações que provocaram discriminação, inferiorização, racismo, exploração e destruição de pessoas e de civilizações, não se repetissem num futuro que se quer sustentável para a toda a humanidade. Sustentável, portanto, não apenas no sentido económico, político, social e ecológico, mas também filosófico, psicológico e simbólico. Esse era, na perspetiva de Desmond Tutu, o compromisso para o Próximo Futuro do antigo continente colonizador que foi a Europa, clarificando assim o que a atual Presidente da Fundação, Isabel Mota, tinha enunciado no seu texto inicial do número 13 do jornal do Próximo Futuro, quando falava de “representações pouco claras” e “clichés” que dominavam as representações e, com elas, as relações entre Europa e África.
É a partir desta afirmação que o Programa vai fazer uma mostra de África sem precedentes, focando-se nas mais variadas áreas artísticas – cinema, música e teatro – e dando uma enorme atenção à cultura visual, através da mostra de parte da 9 edição dos “Encontros de Fotografia de Bamako”, sob o tema “Para um mundo sustentável” e da exposição Present Tense, com curadoria de António Pinto Ribeiro.
Esta exposição apresentou, no seu conjunto, trabalhos de fotógrafos do sul de África como Délio Jasse, Dillon Marsh, Filipe Branquinho, Guy Tillim, Jo Ractliffe, Kiluanji Kia Henda, Mack Magagane, Malala Andrialavidrazana, Mauro Pinto, Paul Samuels, Sabelo Mlangeni, Sammy Baloji, Tsvangirayi Mukwazhi e Pieter Hugo, a quem é dedicado também o número 15 do jornal Próximo Futuro, (Março 2014), com a exposição internacional “Este é o lugar”. Coloco aqui todos estes nomes, a que poderia juntar outros, como Kader Attia, Ayana Jackson, Zined Sedira, Neïl Beloufa, Mohamed Bourouissa, Katia Kameli, Nu Barreto, Pauliana Valente Pimentel, Mónica Miranda, Ana Vidigal, Francisco Vidal, Nuno Nunes-Ferreira, Tatiana Macedo, pois são eles que hoje preenchem uma vanguarda expressiva da cena artística europeia e internacional. Com a sua sensibilidade, as suas imagens, mas também a sua coragem e exposição, estes artistas contribuíram para a mudança de imaginário europeu sobre África e o Magreb no Ocidente, mostrando-nos o seu presente e daqueles que com eles vivem, trabalham, lutam e amam no dia a dia neste imenso e diverso lugar a que chamamos África, composto de tantas Áfricas.
Quando hoje, no âmbito do projeto Memoirs: Filhos de Império e Pós-Memórias Europeias, procuro estes outros olhares sobre as antigas colónias europeias e sobre a Europa e, em 2018, vejo Kiluanji Kia Henda e Délio Jasse no Maxxi (Museu de Arte Contemporânea, em Roma). Vejo em grande plano, a fotografia “Rochers carrés” (2009), hoje tão sensorialmente atual com aqueles miúdos nos blocos de concreto em Argel olhando o Mediterrâneo de costas para nós, e que anuncia a grande exposição de Kader Attia, na Hayward Gallery, em Londres, tendo antes visto em Lisboa, no mesmo ano, na Culturgest, “As raízes também se criam no betão”, também de Kader Attia. Em Paris, vejo no Centro George Pompidou Mohamed Bourouissa, como Prémio Marchel Duchamp 2018, e, ao lado, na galeria Nathalie Obadia encontro a primeira exposição individual de Nu Barreto em Paris, Africa: Renversante, renversée. Vejo Sammy Baloji no renovado Africa Museum, em Tervuren, na Bélgica e em Portugal. E lembro-me que já os tinha visto a todos na Fundação Calouste Gulbenkian nas atividades do Próximo Futuro. Reconheço Lisboa como uma capital europeia, orgulho-me que Portugal seja um país importante nas rotas artísticas de todos estes inovadores artistas e nos seus imaginários, e percebo o impacto internacional do Programa Próximo Futuro na cena artística contemporânea. Aqui estão eles hoje compondo o nosso presente, no que entre 2009-2015 era o Próximo Futuro, e este exercício breve que acabo de fazer relativo às artes visuais é válido para todas as outras formas de expressão artística do Programa.
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