Em breve, este mundo, pleno de sinais de fim, iria desfazer-se: o Dr. Barbosa da Cunha regressaria a Portugal, Cartola de Sousa iria assistir, expectante, à partida dos portugueses, celebraria a independência com uma alegria contida e, ao mesmo tempo, a sua família começaria a desfazer-se: nascia Aquiles, assim batizado, devido ao calcanhar defeituoso, e a sua mulher ficava imobilizada na cama. Coincidindo, portanto, com a independência, a casa de Cartola de Sousa ficava assombrada pela doença, o que iria determinar para sempre a sua vida e da sua família. Nos anos 80, e seguindo a rota de muitos cidadãos africanos dos países de língua oficial portuguesa, Cartola de Sousa viajou para Lisboa com o seu filho Aquiles de 14 anos, para que o rapaz fosse submetido às operações aconselhadas e aos tratamentos médicos que, em princípio, resolveriam o problema. Em Luanda, ficaria Glória, presa a uma cama e entregue aos cuidados de Justina, a filha do casal. A viagem para Lisboa ativa uma série de sonhos, que vão da questão prática de resolver o problema de saúde do filho à ilusão de ir encontrar uma Lisboa que o acolheria como um português, um assimilado, que tinha imaginado Lisboa como a sua metrópole dos cartões-postais, os brancos como seres como o Dr. Barbosa da Cunha, e a si próprio como um português. Na verdade, nada, nem ninguém, o esperava em Lisboa: os contatos com o Dr. Barbosa da Cunha em breve desapareceriam, mentiria a si próprio sobre os papéis que o reconheceriam como português, o problema de Aquiles não se resolveria apesar das várias operações, a Luanda deixada para trás ia-se reduzindo aos pedidos e à voz distante de Glória. Aquiles faria 18 anos e as esperanças iam-se diluindo numa cidade que não os acolhe e Cartola de Sousa e o filho seguem o destino de muitos africanos em tratamentos entre o ritmo do hospital e as pensões baratas que os alojam, sem nunca os acolher, e onde se vão endividando e partilhando a infelicidade dos outros, até irem viver para o Paraíso, um bairro onde as condições estão perto da insalubridade. Pai e filho são atirados para um quotidiano de trabalho nas obras em que o corpo explode todos os dias, interrompidos por telefonemas e contatos com Glória até ela se tornar uma pura e distante abstração e, com ela também, Luanda e Angola. Esta existência mais ou menos infeliz é pontuada pela amizade de um galego, Pepe, tão pobre como eles, mas dono de um bar barraca, pela visita de Justina que vem de Angola reconfigurar a pobreza da casa, e pela presença constante de uma mala que os acompanha por onde vivem. Uma mala mais ou menos sempre feita, alimentando a ideia vaga de um regresso adiado e cheia de objetos e papéis que guardavam uma vida anterior de que Cartola de Sousa não tinha de pedir desculpa por ter sido feliz, e que em Lisboa lhe revelavam um estatuto perdido traduzido na inutilidade dos papéis. Ao contrário do filho Aquiles, que é um filho da independência e um imigrante angolano em Lisboa, saudoso da mãe, de Luanda e em luta por uma vida melhor, Cartola de Sousa transporta consigo uma identidade fantasmática, desaparecida com o fim do tempo colonial, uma identidade que o relaciona com o sonho de Portugal, como um lugar bom e ao qual ele também pertencia. Todavia, a sua vida em Portugal revela-lhe a cada passo a perversidade do assimilacionismo: o que relacionava Cartola de Sousa com Portugal era uma fantasia, e o reconhecimento da sua pertença seria sempre, como no tempo colonial, uma trágica farsa adiada. O que existia era a realidade que o tinha expulsado de Angola e a afirmação da sua condição subalterna, seja pelo lugar para onde acaba por ir viver – a periferia denominada Paraíso –, seja pela desvalorização das suas habilitações profissionais e a exploração do corpo do negro como força do trabalho. Ou ainda pela pobreza da qual não conseguiria sair, e ainda pela continuação da sua invisibilidade no cenário urbano lisboeta. Quantas vezes é que os portugueses que visitaram a Expo 98 e todo o novo bairro lisboeta à beira Tejo, e que, passados pouco mais de vinte anos da descolonização, comemoravam, mais uma vez, a gesta dos Descobrimentos, pensaram na cor que também o construiu? Quantas vezes é que os portugueses olharam no Metro estes conjuntos de homens trabalhadores de olhares cansados, vestimenta pintada e cor escura como parte de quem estava a construir esse Portugal de que hoje emergimos? Quem somos nós, portugueses, no pós-império? E Djaimilia Pereira de Almeida não situa a sua questão apenas do lado português. Afinal, o que é que a independência trouxe para estes angolanos, para esta família angolana? Também aqui o percurso é de perdas: Cartola de Sousa perdeu o seu estatuto social e profissional, Glória está acamada desde a independência, protagonizando uma fantasia cada dia mais irreal; Aquiles será para sempre o “preto coxo”; Justina regressa a Luanda sem mais dela se saber. Real é o Paraíso, a miséria do pai e do filho, universo apenas suavizado aquando da breve estadia de Justina, dos momentos de alegria com Iury, da amizade rude de Pepe, todos seres marginais e descartáveis onde se encontram. E mesmo este mundo de um aparente “cosmopolitismo de pobres” (2) desaparecerá: Justina parte, a pobre casa em que viviam é destruída por um incêndio, Iury sucumbe, Pepe morre. Cartola ficará de luto pelo seu amigo, sem forças e sem esperança, é um sobrevivente (3):
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