Na Europa andam fantasmas coloniais à solta
No dia nove de abril de 2018 comemoraram-se os 100 anos da Batalha de La Lys. Os presidentes das Repúblicas Portuguesa e Francesa e o Primeiro Ministro António Costa participaram nas comemorações e as televisões e os jornais referiram marcadamente o evento. Marcelo Rebelo de Sousa destacou a importância do sacrifício humano e a necessidade de reconhecimento; Emmanuel Macron designou o cemitério militar português de Richebourg como um “símbolo da amizade e solidariedade europeia e não de rancor nacionalista”, assinalando este “passado comum” como um espaço de memória de partilha das gerações seguintes. Na mesma linha António Costa, na cerimónia de encerramento, sublinhou que “cem anos depois, celebramos a paz e a reconciliação entre os povos europeus e a sua vontade de construirmos juntos um futuro comum”. E foi inaugurada a exposição Racines sobre descendentes de soldados portugueses em Richebourg, em resgate deste passado familiar, nacional e europeu, que nos convoca para uma reinterrogação deste passado comum, de memórias tão diferentes, na sua relação orgânica com o presente em Portugal, em França, na Europa.
Na história europeia, 1918 assinala o final da Grande Guerra e, com ela, a desintegração de três grandes impérios – germânico, austro-húngaro e russo – e a emergência de nove estados – Áustria, Hungria, Jugoslávia, Checoslováquia, Polónia, Lituânia, Letónia, Estónia e Finlândia. O redesenhar desta parte do mapa da Europa, de vocação imperial intra-europeia, mostra-nos as fraturas, as fronteiras traçadas nos vastos territórios outrora imperiais em que o nacionalismo atuou em vários sentidos libertadores. As utopias, as novas identidades, as transformações sociais e a criatividade que desenharam estes inícios determinaram a vida política e cultural destes espaços na construção do futuro das suas nações, que assim iniciavam um diálogo tenso com as grandes linhas do primeiro século XX – a democracia de tipo ocidental, o comunismo e os inícios do que se desenharia como o nacional-fascismo. Noutras partes do globo, controladas pelo imperialismo europeu de vocação ultramarina, nomeadamente na Ásia e em África, ações nacionalistas davam os seus primeiros passos, na sequência da participação destes territórios na Grande Guerra ou da participação de contingentes de soldados destas regiões na Europa. Mas seria só após a Segunda Guerra Mundial que esse movimento de emancipação e descolonização, chegaria ao hemisfério sul, começando assim a desintegração dos impérios europeus da Europa ocidental de vocação ultramarina – Reino Unido, França, Holanda, Bélgica, Portugal.
Em 1947, com a Europa em escombros e face à pressão dos movimentos nacionalistas, os britânicos reconheciam a independência da Índia e da Palestina, em 1949, os holandeses despediam-se da Indonésia, os franceses iniciavam a guerra na Indochina e, por todo o hemisfério Sul, tinham lugar lutas, reuniões, conflitos, reivindicações, guerras de libertação. Os processos de descolonização constituíram, portanto, um fenómeno capital da história do século XX e dos pós-guerras europeus, provocando grandes ruturas de consequências imediatas e, nesta fase, planetárias. De um ponto de vista global, no pós-Segunda Guerra Mundial assistimos ao redesenhar da geopolítica europeia, asiática, africana e mundial com o nascimento de novas nações, a emergência do poder soviético e americano e o declínio do poder das antigas metrópoles europeias. O refazer das imagens nacionais impunha-se pelos acontecimentos, mas, num primeiro momento, não iria muito além dos tratados de independência e do refazer de mapas. Todavia, a chegada à Europa de grandes contingentes de população, com vivência colonial sob a forma de ex-colonizadores, ex-colonizados ou ex-combatentes das guerras coloniais, corporizava a realidade distante dos impérios perdidos e perturbava traumaticamente a narrativa europeia. Estas populações e a história de que eram portadoras denunciavam a relação organicamente imperial europeia e iriam compondo parte das sociedades multiculturais europeias que ocultamente emergiam.
A análise dos seus prolongamentos atuais, sob a forma dos “descendentes” e de uma cultura outra, exige-nos a inscrição da violência colonial, pública e privada, na história das referidas violências do século XX, enquanto espaços reais das tensões fundadoras da história europeia após a Segunda Guerra Mundial e também após as descolonizações, com todas as consequências inerentes a este reestruturante processo histórico, a sul e a norte.
Pensar a Europa pós-colonial implica, portanto, perceber que aquilo que mais definiu a Europa foi a sua vocação imperial – nas suas várias declinações – e que, consequentemente, a descolonização não foi apenas um movimento a Sul e que atingiu os países descolonizados. Foi também um movimento que atingiu e atinge radicalmente o continente colonizador que foi Europa e que precisa de ser descolonizado, ou seja, precisa de reler o passado e a linguagem imperial em que foi narrado para melhor compreender o presente e pensar o futuro, produzindo outras narrativas e criando, de facto, uma verdadeira hipótese de comunidade e de futuro. Mas é desta forma mais pronunciada pelo tempo do que pela vontade política, entre memórias consentidas, dissonantes ou silenciadas, que esta história chega e se reflete hoje nas gerações seguintes que a reinterrogam a partir do seu contemporâneo e dos seus lugares identitários diversos. Assumir politicamente esta comunidade europeia, analisar o seu impacto a partir das memórias herdadas pelas gerações seguintes e das suas produções culturais é o objetivo principal do projeto de investigação europeu, Memoirs – filhos de império e posmemórias europeias, a decorrer no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, com financiamento do European Research Council.
Projeto MEMOIRS.