Fantasmas do Império
Os impérios são sempre ficções, para quem os administra, a partir das metrópoles, para quem os sonha, a partir de vidas falidas, para quem, estando do outro lado, respira quotidianamente a opressão e imagina uma metrópole distante, mas omnipresente, e poderosa. São imagens que dão aparente realidade a esta ficção. Construídas pela literatura, pelo cinema, pela fotografia, pelos museus, pelas exposições, pela arte e pelas histórias populares estas imagens alimentam um arquivo, que contribui para a criação das fantasias imperiais que hoje nos abordam sob a forma de fantasmas. No filme de Ariel de Bigault tudo começa pelo nome – Fantasmas do Império. Um nome, um título que lança um olhar e constrói um contexto que nos mergulha num arquivo-memória nacional de imagens apresentado como um álbum de fotografias de família, que os herdeiros vão comentar real e ficcionalmente. Os herdeiros têm nome – Fernando Matos Silva, João Botelho, Margarida Cardoso, Hugo Vieira da Silva, Ivo M. Ferreira, Manuel Faria de Almeida, Joaquim Lopes Barbosa – e os seus filmes dialogam com esta fantasmagoria imperial, os seus resultados, os seus equívocos e as suas sombras. Este arquivo é-lhes distante e simultaneamente familiar, como os álbuns de família, em que já mal identificamos os nossos bisavós, mas em quem, paradoxalmente, reconhecemos um olhar que também é nosso.
Numa das primeiras cenas do filme “Fantasmas do Império” o actor Ângelo Torres, qual côro de uma tragédia recente, dirigindo-se a José Manuel Costa, o director da Cinemateca Portuguesa, evoca a teoria privada do cinema do realizador chileno Patricio Guzman: “Un país sin cine documental es como un familia sin álbum de fotografías. Una memoria vacía ». José Manuel Costa responde que se tal é verdade, também é verdade que as imagens deste filme são património comum dos portugueses e dos africanos que nelas aparecem, são património comum de quem as filmou e de quem foi filmado. As duas afirmações são basilares para se entender a oportunidade histórica deste filme e o debate fundamental que o mesmo pode provocar sobre estas imagens do arquivo e sobre os imaginários que as mesmas produziram então, e que hoje, continuam a produzir. Para tal a mestria da montagem da realizadora Ariel de Bigault foi perfeita. Em face das imagens do cinema colonizador, produzido pelos realizadores do regime colonialista, a realizadora contrapõe trechos de filmes da autoria de realizadores que questionam o regime colonial, a nostalgia colonialista, ou tão só o que permaneceu fantasmagórico na declinação do império. O que daqui resulta é um filme que é uma epopeia contra-epopeia. As imagens dos filmes de propaganda (as primeiras datam de 1923), tecnicamente muito bem feitos, não tinham como objectivo apenas impor a narrativa de uma nação que se expandia no ultramar e seduzir os espetadores. Estas imagens eram instrumentos poderosos de representação do outro, filmes encenados de um modo que humilhava, subalternizava e reduzia os corpos a pura força de trabalho e os seres humanos negros a pessoas infantilizadas. As cenas em que estes corpos estão a trabalhar como apenas braços em série ou as que os africanos são obrigados a imitar danças do folclore português, despersonalizam, infantilizam, reduzem as pessoas. Os zoos humanos em que africanos e timorenses são apresentados a viver numa paisagem totalmente construída e ficcional, como num parque temático avant la lettre, demonstram uma violência sem limites do que foi a força do Império e a dimensão da palavra performativa autoritária do colonizador – a sua lei, a sua língua, a sua força, mas também o seu feitiço, o poder da sua imagem única, sem contraditório.
O cinema foi das artes que mais cedo iniciaram um processo de colocar sob suspeita a narrativa colonial visualmente intensa e discursivamente excessiva destes filmes ainda durante o regime ditatorial e intensamente no regime democrático. Mas se há filme em que a montagem é definitivamente um acto político como o afirmava J.L Godard, “Fantasmas do Império” é exemplar. Num trabalho hábil entre a selecção das imagens de arquivo dos filmes colonialistas em contraponto com os filmes de desconstrução do colonialismo a montagem de Ariel de Bigault joga em permanência com o contra-ponto, os contra-tempos e as variações reforçados pelas vozes e pelos testemunhos dos realizadores portugueses convocados e dos atores africanos, Ângelo Torres e Orlando Sérgio. A partir de outro lugar eles interrogam as imagens e o estatuto destes filmes. E uma outra teia mais discreta sustenta esta narrativa visual. Trata-se da sequência das imagens montadas cinematograficamente segundo a lógica do “bom vizinho” na expressão de Aby Warburg.
Imagino que alguns dirão que estes filmes portugueses não tiveram o contraditório do cinema africano das ex-colónias portuguesas mas, de facto, a pergunta não faz sentido porque nem havia cinema africano realizado para se confrontar com estes filmes, nem este filme precisa de se legitimar como um cinema anti-colonial e pós-colonial através de outros filmes. E ainda assim há a presença do que se passava do outro lado, nomeadamente através das imagens dos territórios da Guiné-Bissau controlados pelos guineenses na luta de libertação do filme “Acto dos feitos da Guiné” de Fernando Matos Silva. Há um importante debate no interior do filme e o vasto conjunto de perguntas enunciadas precisa de resposta. De entre elas há uma, inadiável, colocada pelo Ângelo Torres quando pergunta qual a resposta que os realizadores africanos podem dar, na actualidade, a estas fantasias coloniais criadas pelo Império?
E o que fazem com estas imagens as gerações seguintes de realizadores portugueses trazidos para a cena do filme?
É através dos seus olhares de realizadores do tempo pós-colonial que vivemos que vemos que aquilo que vimos ou que os nossos antepassados viram nos filmes do regime colonialista, não é o que hoje vemos, mesmo que obviamente estas imagens não tenham mudado. Mas os sujeitos de receção são outros e os contextos da receção mudaram, mudando-se assim as imagens e o diálogo que com elas podemos estabelecer. A sedução da grandeza imperial apresentada como uma marcha triunfal, é a interrogação que todos colocam nos seus filmes sobre os pilares em que esta grandeza assentava; os corpos negros jovens e aparentemente alegres à espera da civilização, são corpos violentados; as paisagens sem fim nem horizonte, são territórios ocupados; as cidades modernas e desenvolvidas, ocultam a cor de quem as construiu a partir de baixo; a civilização trazida pelos colonizadores que os filmes documentam numa encantatória harmonia, apaga as resistências e as lutas contra esta ação colonial. Hoje, estes são filmes muito silenciosos sobre todos estes aspetos, mas também muito ruidosos pelos silêncios que constroem. Fantasias ou fantasmas? As fraturas estão lá e não se pode forjar um passado comum, de memórias tão diferentes. Como nos mostra esta extensa conversa brilhantemente orquestrada por Ariel de Bigault, dispor de um passado comum, não significa de imediato partilhá-lo.
Por uma simplicidade de categorização Fantasmas do Império é um filme pós-colonial mas ao testemunhar no presente o que foi um determinado passado e ao constatar que o presente está cheio desse passado, ele tem toda a força de um filme de luta anti-colonial, situado num mundo que nos é contemporâneo. Um mundo em que os vestígios do passado que permeiam o nosso presente sob a forma de fraturas, são objeto de um trabalho simbólico que começa a produzir novas formas híbridas e cosmopolitas de cultura próprias de um novo tempo pós-colonial, transnacional e pós-migratório.
*MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624); MAPS - Pós-Memórias Europeias: uma cartografia pós-colonial é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT - PTDC/LLT-OUT/7036/2020). Os projetos estão sediados no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.