La ramasseuse des mains coupés | 2014 | Aimé Mpane Enkobo (cortesia do artista)No primeiro artigo desta série “Obras de arte na condição da pós-memória” referíamo-nos, entre outros aspectos, ao facto de as obras de vários artistas afro-descendentes das segunda e terceira gerações, vivendo na Europa, terem um lugar de destaque na arte contemporânea europeia, não só pela sua qualidade artística, mas também por um conjunto de características de natureza formal, temática e estética, que lhes dão uma identidade muito própria dentro da cena contemporânea. Estes artistas agregam no seu processo criativo inúmeras influências, como a presença de tradições culturais oriundas das ex-colónias (ritmos, tapeçaria, pintura sobre areia, escultura em couscous, formas narrativas como o griot ou o rai), traços dos modernismos alternativos (fotografia do Mali, de Moçambique, pintura dos modernismos marroquinos, etc.), e ainda, a desconstrução sistemática da iconografia e estatuária pública, tanto nos países europeus como nas ex-colónias, a revisão e desconstrução da história de arte universal, a crítica ao afro-pessimismo, a denúncia e luta contra o racismo.
Há, nas obras destes artistas, um questionamento sobre identidades, sobre cultura, e sobretudo subjaz a todo o processo criativo uma interrogação que é a base de constante pesquisa e reinvenção, e uma das características mais identificadoras destas obras da pós-memória. Para além do vocabulário, a que recorrem, transnacional e transcontinental que reconhece e legitima estas obras na condição da pós-memória, que outros aspectos, a haver, se podem distinguir? Desde as primeiras exposições de obras de artistas oriundos de África, organizadas em museus e galerias europeias e norte-americanas, até ao presente, deu-se um grande passo em termos de autonomia artística e de alteração da figura e do estatuto dos artistas afro-descendentes (aliás, o mesmo para artistas de outros territórios ex-colonizados ou apenas não europeus). Neste percurso curatorial descolonizador foi determinante o pioneirismo da curadoria do comissário Jean-Hubert Martin, na Exposição Magiciens de la Terre, realizada em 1989 no Centro Georges Pompidou em Paris. Esta exposição teve o mérito de abolir as fronteiras de preconceito e de discriminação que separavam os artistas e as práticas artísticas europeias, consideradas geralmente arte e reconhecidas artisticamente, dos artistas e das práticas artísticas não europeias (que ainda representavam apenas 50% da exposição), mas que até então eram consideradas produções de carácter popular e artesanal. Nesta altura, estávamos ainda no início dos debates sobre o pós-colonialismo e não havia uma reflexão aprofundada sobre o contexto de produção das obras de artistas afro-descendentes. Uma geração mais tarde, assiste-se a uma reflexão teórica e a uma produção académica e literária que estuda e reconhece os artistas afro-descendentes como artistas da pós-memória. As suas obras têm um lugar no panorama da arte contemporânea. Destacam pela expressão de continuidade de um universo veiculado por memórias de vivências diferidas, ou seja, não experienciadas na primeira pessoa, que permanece como inspiração, e através do qual se convocam novas formas de inquirir o real e de produzir novas representações pós-imperiais do mundo. A sua expressão artística desenvolve-se numa apropriação sem limites e sem restrições de tudo o que possa ser material, estratégia, técnica ou tecnologia de produção artística, na qual integram a experiência, maior ou menor, de tradições familiares ou de grupos com ascendentes comuns. Por exemplo, o artista belgo-congolês Aimé Mpane, ao mesmo tempo que utiliza a performance, a instalação, a pintura e a escultura e recorre a obras de referência da história de arte europeia, é um exímio escultor em madeira, prática e conhecimento adquiridos na sua infância e adolescência em Kinshasa junto de seu pai, o escultor congolês Placide Mpane. A consulta, a investigação e o uso de arquivos privados e públicos tornou-se uma prática corrente na arte contemporânea. Serão muitos os motivos e, mais ainda, as estratégias para tal uso. No caso de muitos destes artistas – Katia Kameli, Kader Attia, Délio Jasse entre outros –, o recurso aos arquivos é a base da investigação a partir da qual se questionam de modo muito objectivo e concreto as narrativas oficiais do período da colonização, o que leva estes artistas a expor o conflito existente entre estudos da memória e relações históricas construídas na perspetiva do colonizador. Nas suas expressões artísticas, o reconhecimento de memórias das gerações precedentes é um material constitutivo fulcral de revisão e de criação de novas narrativas, desenvolvidas nos suportes mais diversos, através de objetos, instalações, filmes, pintura, entre outros. A partir destas pesquisas e deste trabalho de desconstrução, surgem também outros protagonistas da história. Assim, do mesmo modo que as galerias de arte antiga como as de arte contemporânea nos apresentam colecções intermináveis dessa representação do poder que são os retratos de homens e mulheres poderosos, de generais, de escritores ou mecenas, também estes artistas retratam aqueles que são os seus heróis – os das independências e os da actual vida quotidiana, como o faz Francisco Vidal nos seus retratos de heróis, sejam eles Amílcar Cabral, Miriam Makeba ou os seus contemporâneos: Dj Nervoso, Marfox, Nigga Fox, Dj Nídia e Dj Firmeza. Na verdade, desde os princípios da década de 1990 que se assiste à afirmação de um conjunto de atitudes artísticas e de cidadania, de que apenas enumerei algumas com os exemplos apresentados, e cujo propósito maior é a descolonização das artes. Estas questões são actualmente representadas, entre outras atividades, por grupos como Décoloniser les Arts, do qual faz parte o artista Kader Attia, autor de uma produção particularmente expressiva como denúncia da violência europeia nos antigos impérios e dos traumas que esta gerou desde a Primeira Grande Guerra aos anos do neocolonialismo. Estes temas, recorrentes na sua obra, são também abordados por outros artistas, como Sammy Baloji, Katia Kameli, Djamel Kokene, Adel Abdessemed, Pedro A. H. Paixão, a par de outras questões como a da Reparação a realizar pelos países ex-colonizadores relativamente aos territórios e às pessoas colonizadas. Trata-se de um trabalho exigente, comprometido com o presente, e que implica a coragem de revelar narrativas alternativas, desocultando factos e protagonistas que, por vezes, têm origem nas memórias pessoais ou de grupo, o que implica o confronto, nem sempre pacífico, com as narrativas dos historiadores que desconsideram radicalmente as subjectividades dos testemunhos da memória. É conjugando o rigor da investigação com materiais provenientes de memórias subjetivas que estes artistas da pós-memória levam à prática objetos e temas, numa abordagem criativa eficaz e iluminadora, através da qual questionam a violência, o trauma, a emigração, e todo um universo ligado ao colonialismo e aos seus prolongamentos na atualidade e nas suas expressões globais. Na verdade, se houve violência no tráfico de pessoas escravizadas, e se é violenta toda a vivência colonial, também a natureza não foi poupada a essa violência. A natureza foi e continua a ser explorada, expropriada e destruída, considerada pelas lógicas do colonialismo, do neocolonialismo e do capitalismo como um recurso de exploração absoluta. Todos estes temas estão subjacentes na expressão criativa destes artistas. As obras de Ntjam Josèfa e Otobong Nkanga são disto um excelente exemplo. Estes artistas movem-se, portanto, num campo de trabalho plural que lhes oferece temáticas, técnicas e formatos, na sua maioria globalizados a partir das escolas de formação artística e do sistema das artes ocidental, através dos quais vão desenvolver os seus processos criativos, participando activamente na dinâmica da arte contemporânea com um papel fundamental na descolonização das artes.
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