O Brasil e o seu mito
Numa padaria barata 1kg de pão francês (o pão mais popular) custa entre 7 e 15 reais (entre 2,25€ e 4,84€). O casamento de uma noiva da classe alta carioca pode custar entre 1 e 2 milhões de reais (entre 323.000€ e 646.000€), sobretudo se no banquete for servida alface orgânica (1kg custa 300 reais ou 97 €); e um vestido de noiva que se preze fica acima de 20.000 reais (6.500€). O salário mínimo no Brasil este ano é de 678 reais (219€). O salário base de um deputado federal é de R$ 26.723 (8.600€). A percentagem do orçamento federal na educação é 6,1% do PIB. Há 3073 livrarias no Brasil. O crescimento médio do Brasil nos últimos três anos foi 3,7%, o PIB per capita 9.049€, a inflação dos últimos três anos foi de 5,5%. Só em 2011 um actor negro – Lázaro Ramos – protagonizou pela primeira vez uma novela das 8h da Globo, “Insensato Coração”.
Factos, factos e factos são o único modo de conhecer o Brasil para lá do que é o Brasil e o seu mito. Para a criação desse mito contribuíram estrangeiros célebres que o visitaram — Stefan Zweig (1881-1942) afirmou ser este eternamente “o país do futuro”, Blaise Cendrars (1887-1961) abriu o seu romance Le Brésil, des hommes sont venus com a frase: “É o Paraíso Terrestre!” , em 2009 a revista Economist fazia a sua capa com um Cristo Redentor elevando-se nos céus como se fosse um foguetão acompanhado da frase “o Brasil levanta vôo”—, mas contribuíram ainda mais os próprios brasileiros, esses maiores especialistas do mundo em fazer marketing positivo do seu país. Em suma, o Brasil tem-se representado e auto-representado como um paraíso terrestre.
Assim, ainda que de uma forma peculiar, foram-se produzindo e difundindo imagens de um país que surge como o país da felicidade, do glamour e da diversidade, com o seu futebol-artístico, o carnaval feérico e uma música popular sofisticada cujo riquíssimo reportório elege o amor como grande tema existencial e redentor. Depois, a mais aperfeiçoada máquina de produção de imaginários a seguir a Hollywood produz há cinquenta anos novelas e séries que representam esse mesmo país. O maravilhoso filme “Orfeu Negro” retratava o Rio como um Olimpo, a negritude como a estética perfeita, e a utopia da convivência étnica como uma realidade local. “Gabriela, Cravo e Canela” invadiu o mundo como a telenovela que dava a vitória aos justos e elegia a diversidade étnica. Mais tarde, “Avenida Paulista” foi a série que apresentou os mais ricos na avenida mais rica da América do Sul, enquanto a “Avenida Brasil”, muito recentemente, revelava a gratidão dos brasileiros ao PT (partido doa trabalhadores)vpela ascensão à classe C de 40 milhões de pobres, a par da pacificação das ‘comunidades’ e, claro, do crescimento económico, essa fórmula abstracta, onde não contam as pessoas e as suas diferenças de rendimentos mas apenas os números. “Tamboro” (2009), de Sérgio Bernardes, é o excelente filme documentário que mostra o Brasil contemporâneo – da Av. Paulista aos índios da Amazónia, da música do Seu Jorge aos repentistas nordestinos — e anuncia a diversidade e a riqueza, combinando a favela com o glamour das artes.
Porém, este anúncio da riqueza da diversidade brasileira repetido à exaustão como se fosse a capa exterior do País escamoteia os problemas dessa diversidade, nomeadamente os problemas dos pobres, o desemprego, a iliteracia, a falta de qualidade dos hospitais públicos, das escolas públicas e da prestação de serviços. Consequentemente, falar em crescimento económico pouco diz à maioria dos 97,1% (dados de 2013, Rice University e FEA-USP) dos brasileiros que não beneficiaram directa e estrondosamente do crescimento. É conhecido, aliás, o deslize de Lula quando afirmou “que os ricos nunca tinham sido tão ricos” como depois de ele ser presidente do país.
A questão do crescimento económico só por si já não é central na vida actual, o que é uma perplexidade para os políticos tradicionais tanto da direita como da esquerda tradicional. As pessoas querem mais e, sobretudo, querem diferente do que apenas a possibilidade de consumirem. Este desejo — que é o desejo de outra qualidade de vida: vida sã, educação, hospitais públicos eficazes, boas escolas, boas redes de transportes, tempo — justifica muitos dos movimentos de revolta que acontecem no Brasil desde Junho mas que não são, não esqueçamos, exclusivos deste país.
De facto, nos países da América do Sul com os maiores índices de crescimento as revoltas, e este tipo de movimentos de massas, acontecem já desde 2011.
Primeiro foi no Chile — onde o crescimento médio nos últimos três anos foi de 5,7% e o PIB per capita de 11.603€. No Chile, milhares e milhares de manifestantes estudantes (apoiados a posteriori por sindicatos) bloquearam o país durante meses, reclamando por uma alteração radical que melhorasse o sistema de ensino — muito concentrado num sistema de ensino privado muito caro e inacessível para a maioria da população, modelo herdado do regime Pinochet. Situação esta muito semelhante à do Peru, o segundo país da América do Sul (depois do Panamá) que mais cresceu no ano passado (6,3%) mas que apresenta um PIB per capita muito mais baixo do que os seus vizinhos Chile e Brasil; o PIB per capita no Peru situou-se nos últimos três anos em 4.917€ (dados do Instituto Gertúlio Vargas). Também no Peru, depois do 17 de Junho, tem havido grandes manifestações de protesto, reunindo centenas de milhares de peruanos. Estas manifestações começaram quando foram nomeados para o Congresso deputados acusados de corrupção, eleição essa decorrente de pactos políticos conhecidos como la repartija. Reivindicam maior qualidade dos serviços públicos, uma escola pública mais apoiada e mais qualificada e, sobretudo, uma melhor qualificação dos seus governantes e legisladores — que os manifestantes consideram incompetentes e corruptos e aos quais não reconhecem qualquer tipo de representatividade. O nível de confiança dos peruanos no seu Congresso é o mais baixo da América Latina (segundo o Worls Economic Forum).
As actuais manifestações no Brasil partilham deste tipo de reivindicações. É essencialmente por já não se sentirem representados pelos órgãos dos poderes legislativos, executivo e até judicial que os brasileiros se revoltam.
O economista brasileiro André Lara Resende, analisando o fenómeno recente das manifestações iniciadas a 6 de Junho em S. Paulo — e que rapidamente alastraram por todo o país, com o Movimento Passe Livre, que começou por ser a contestação ao aumento do preço dos transportes (aumento dos autocarros na cidade de 3 para 3,20 reais) —, apresenta várias teses que têm a vantagem de avaliar o fenómeno ao longo de um tempo histórico mais longo.
Para Lara Resende trata-se de ver este fenómeno das manifestações — que chegaram a reunir mais de um milhão de pessoas — como a expressão visível de um descontentamento geral da população, um desencanto face à classe política no seu conjunto, classe essa incapaz de entender que está esgotado o modelo do crescimento tradicional que gerou a corrupção (que é transversal à sociedade brasileira), a impreparação dos serviços públicos mas também dos privados, e a apropriação pelas várias instâncias do poder que absorvem a maioria dos recursos tributários: “93% dos quase 40% dos impostos tributados vão para a rede de proteção e assistência social, que se expandiu muito além do mercado de trabalho organizado, mas, sobretudo, para sua própria operação. O Estado brasileiro tornou-se um sorvedouro de recursos, cujo principal objetivo é financiar a si mesmo”, afirma o economista e os escândalos de corrupção que aparecem recorrentemente são também uma prova de como o Estado Brasileiro é espoliado da sua riqueza.
Este economista descreve assim esta situação que, segundo ele, se inicia no princípio da década de 90: “Com a inflação estabilizada, a partir do início dos anos 1990, o Estado se reorganizou para arrecadar por via fiscal também os recursos que extraía através do imposto inflacionário. A carga fiscal passou de menos de 15% da renda nacional, no início dos anos 1950, para cerca de 25%, nas décadas de 1970 a 90, até saltar para os atuais 36%, depois da estabilização da inflação. O Brasil tem hoje uma carga tributária comparável, ou mesmo superior, à das economias mais avançadas. Apesar de extrair da sociedade mais de um terço da renda nacional, o Estado brasileiro perdeu a capacidade de realizar seu projeto. Não o consegue entregar porque, apesar de arrecadar 36% da renda nacional, investe menos de 7% do que arrecada, ou seja, menos de 3% da renda nacional”. ver aqui
Quem acompanhou a telenovela “Avenida Brasil”, ainda no ar em Portugal, deu-se conta de que há uma evidente alteração de paradigma comportamental. Existe, por exemplo, uma compulsão colectiva para o consumo, que inclui a classe C — formada por todos os que beneficiaram dos sistemas políticos de apoio e de impacto fundamental para acabar com a pobreza.
Se o Movimento Passe Livre começou em S. Paulo, onde o governo é do PSDB (centro-direita), a contestação alastrou a muitas outras cidades, indiferentemente do partido ou partidos que as governam. Muito surpreendente para a esquerda brasileira tradicional foi o PT ter passado a ser considerado um partido semelhante aos outros e, como tal, ter sido acusado de, no Governo, se ter revelado flagrantemente retrógrado por ser um projecto em torno do nacional- desenvolvimento. Na verdade, é aqui que o projecto político do Partido dos Trabalhadores se esgotou e decepciona hoje toda uma esquerda esperançosa de mudança: ao assentar a sua política social essencialmente no crescimento que conduz ao consumo, num igualitarismo – aparente – baseado na possibilidade de crescer consumindo.
Esta é uma ideologia anacrónica, incapaz de responder às necessidades reais de hoje e às preocupações, que devem ser globais e que incluem: a delapidação dos recursos naturais; a sua exportação ilimitada; a ausência de modelos alternativos à mobilidade com base no automóvel privado, com a consequente ocupação de todo o espaço público e produção de poluição. O carro próprio tem subjacente um incentivo ao consumo e à ideia de que o carro é uma marca de distinção social; consequentemente, o transporte público é de péssima qualidade, perigoso, ineficiente, e assente na concessão pouco clara a um conjunto de empresários do sector.
O PT, depois de ter aparecido, sobretudo com a eleição de Lula, como a esperança de uma outra política — o que no primeiro mandato se confirmou, com um conjunto de medidas de protecção social para a maioria da população brasileira —, cedo veio confirmar o habitual: que a seguir à tomada do poder vem a obsessão por manter o poder a todo o custo e que isso, em si, é uma finalidade, um projecto.
O mundo à volta mudava e o PT não via; foram os seus quadros os primeiros a não entender as revoltas sociais. O PT deixava de estar do lado da contestação e da alternativa e passava a ser mais um partido conservador, do establishment brasileiro. Assim, era o primeiro destinatário das revoltas populares sem, no entanto, compreender nem a linguagem nem as estratégias de comunicação ali presentes e que muitos comparam aos mecanismos de utilização das redes sociais das revoltas da Primavera Árabe ou dos movimentos Occupy.
Tal não é verdade para o primeiro caso, em primeiro lugar porque, ao contrário do que acontece nas ditaduras desses países árabes, o Brasil é um país democrático e a liberdade de expressão existe. Por outro lado, as organizações que lideraram e colocaram em marcha a comunicação — com o recurso a toda a parafernália da tecnologia das redes sociais mais avançadas — já existiam antes das manifestações, nomeadamente o grupo NINJA - Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação. E isto a acrescentar a uma produção de informação alternativa muito criticada pelos media tradicional, acusando-os de falta de qualidade de informação, de edição e de activismo subjectivo.
Os jornalistas dos media tradicionais não entenderam que, apesar de todas as críticas que se podem fazer a este processo de produção de informação, ele corresponde à crise de um mundo velho da comunicação e ao início de um mundo outro de onde irão surgir novas formas de comunicação global, interactiva, activa e muito mais complexa que os media.
Por seu lado, a similitude com os movimentos Occupy tem algum sentido embora haja uma agenda reivindicativa precisa, que apresenta algumas contradições mas que ostenta um radical statement político.
Em causa não está uma luta de ideologias, afirmam os porta-vozes do MPL, mas sim um conflito de imaginários, traduzidos por um ‘mosaico de parcialidades’. As parcialidades não são pacíficas entre si e serão, até, contradições irresolúveis.
Sendo a reclamação pelo fim da corrupção um dos objectivos destas manifestações, como vai ser com todos aqueles, e são muitos, que no seu quotidiano utilizam o ‘favorzinho’ para resolver seja o que for? Como será possível cumprir todas as medidas reclamadas, algumas de grande gratuitidade e com uma forte componente populista?
Ainda há uma década era comum que, no momento de pagamento, os taxistas cariocas arredondassem o preço para baixo. Se a corrida custava 18,70 reais, facilmente se faziam pagar 18 reais apenas. Hoje é muito mais possível que na mesma cidade se arredonde por cima o custo da viagem de táxi, com o taxista a ‘fazer-se’ à gorjeta. E assim, descaradamente, o dinheiro tornou-se objecto de idolatria, assumindo a sua condição de fetiche do capitalismo. Também é um objecto de culto que ultrapassa em muito a sua função mediadora.
Se há um problema nas artes do Brasil, ele é o da degradação em que se encontra a maioria dos museus que não possuem os recursos mínimos para funcionarem. Ao mesmo tempo, ali ao lado inauguram-se outros museus onde é óbvia a ostentação, a espectacularização glamorosa do dinheiro –lembrando muito o recente casamento pomposo de Dona Baratinha, neta do “rei dos ônibus” do Rio, no Copacabana Palace.
E quem não tem dinheiro, o que faz? Passa horas em autocarros superlotados, carrinhas com motoristas que conduzem sob a ajuda de estimulantes para poderem cumprir os absurdos horários de trabalho. Como vão estas pessoas qualificar-se profissionalmente? Como conseguem viver em cidades que são das mais caras do mundo ou nos seus subúrbios, a 50km do local de trabalho? E porque é que esta gente não se tinha ainda revoltado?
O Brasil é demasiado complexo para respostas definitivas e imediatas. Há, contudo, explicações possíveis.
A esmagadora implantação, no seio das populações, das igrejas evangelistas e afins, apelando a comportamentos regidos pela submissão, pelo cumprimento da ordem e pela negação do desejo — enfim, uma espécie de irracionalidade comportamental – está com certeza ligada à aceitação comum da subalternidade. Depois, existe o mais perverso instrumento financeiro de dependência: o crédito comum, dito parcelar. Quando um telemóvel de 70 euros pode ser pago em parcelas sem juros e em doze meses, este facilitismo está a ser usado para “agarrar” o mais humilde dos consumidores e para o conservar refém de uma promessa de futuro onde será, imagine-se!, proprietário de muitos bens de consumo.
Não é só o sistema bancário que estimula o consumo; o Governo faz o mesmo, através de vários cartões de crédito — Minha Casa Melhor, por exemplo —; as próprias igrejas evangelistas fazem o mesmo, a ponto de algumas emitirem cartões de crédito, proclamando que “se há consumo, então há paz”.
As contradições do país vai mais longe. Os seus habitantes, falantes de português, são tão inventivos que estão com certeza entre os maiores criadores de neologismos do mundo: diariamente driblam a língua, tornando quase inacreditável o facto de serem eles os habitantes desse Brasil tão conservador nos costumes e de moral rígida, tão conservador também nas formas de contestação.
Aliás, por que razão não surgiram movimentos revoltosos nas favelas? Aí, os habitantes enfrentavam dois inimigos : os bandidos do tráfego de droga, que controlavam as favelas; e o Estado repressor. Não há como rebelar-se contra esses dois titãs ao mesmo tempo. Então, deixou-se que fossem as ONGs, quase sempre — com honrosas excepções — compostas por elementos exteriores à favela, a mediarem as reivindicações. Ora, isto tornou-se mais um modo de mitificar a existência de uma diferença intransponível entre a favela e a cidade. A reafirmação de que a favela é o habitat natural dos pobres.
O que fazer no dia seguinte é a questão fundamental que se coloca a quem participa nas manifestações ou deseja a mudança. Ao contrário dos que defendem — como os movimentos Occupy — a recusa do Estado e a criação de um modelo alternativo, exterior ao sistema, de formas sociais de distribuição mais justa dos bens necessários com recurso à criação de bancos e moedas paralelas, é importante considerar que, sem a intervenção do Estado como regulador, como cumpridor dos objectivos dos programas de mudança eleitos, não é possível outra vida.
O Estado, seja no Brasil como no Peru ou em Portugal ou na Alemanha, está impregnado do Capital. Os governos são associações de empresários ou advogados dos grandes negócios com as empresas privadas. Daí a tese de Slavoj Zizek (entrevista ao L’Humanité.fr, 5.8.2013) que faz aqui todo o sentido: o poder do Estado deve ser tomado porque “eu não quero ser apenas alguém que é mobilizado todos os dias para uma manifestação”.
publicado originalmente no jornal Público 30/08/2013