O impossível museu
Os museus não são arquivos, tão pouco conjuntos de acervos reunidos. São sobretudo instrumentos de representação de poder segundo propósitos que são legitimados por uma determinada epistemologia e que, num contexto nacional, têm por objectivo produzir e difundir uma determinada memória de identificação nacional. Podem ainda ser decorrentes de subalternidades que se legitimaram como narrativas incontornáveis num dado período da democracia cujos melhores exemplos são alguns museus da memória e dos direitos humanos e alguns museus afroamericanos. Para tal a museografia é determinante na composição das narrativas e para o primeiro tipo de museus - os museus nacionais – a museografia serve como classificador e proclama uma patrimonialização que combina uma estratégia de implementação de uma narrativa, de uma história única, com um projeto de exportação de turismo nacional. “O turismo é o grande consumidor da tradição” (1), e a exibição das ‘maravilhas’ de um país, que segue a mesma lógica das competições internacionais, combina-se para sustentar os nacionalismos, mesmo em regimes democráticos. Não é por acaso que os que postulam a criação de um museu das descobertas o fazem no pressuposto de que tal é natural para os portugueses e que o debate sobre o mesmo seria um debate importado do estrangeiro. Este é um argumento que tem tanto de provinciano como da preservação de um sentimento de que há debates que só aos nacionais diriam respeito. Ora se neste debate há algo de fundamental que é conhecer e debater o espírito do nosso tempo à escala internacional, a expansão e os impérios europeus são temas incontornáveis. Mas regressando à patrimonialização veremos que esta é uma produção conforme a necessidades de proclamar uma ideologia de agregação do país em volta de uma narrativa adequada à mesma e que exclua quer os estrangeiros, quer os que na narrativa oficial foram vencidos pelos discursos nacionalistas. Sobre esta produção de um essencialismo patrimonial inventado, há muitos exemplos: seja na Boémia o património que é o castelo Konopiste de um esplendor gótico mas, na verdade, mandado construir, em 1887, pelo arquiduque François-Ferdinand; sejam os folclores nacionais que dão sempre a imagem de camponeses ancestrais alegres e felizes quando é um facto que as condições de vida destes eram miseráveis e sofríveis; ou até o exemplo de que ao criar uma nação é preciso criar-lhe uma língua, e daí o albanês imposta como língua nacional da Albânia a partir de um grupo absolutamente minoritário do norte deste território de longínquos dialectos (2).
A efabulação nacional das descobertas
Porque surge neste momento este projeto de um museu das descobertas em Lisboa este debate tão aguerrido?
Vale a pena regressar à criação, em 1980, da XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura, uma exposição organizada pelo governo português e patrocinada pela Presidência da República e pelo Conselho da Europa. Vale a pena voltar ao seu texto inicial:
“Esta Mostra torna-se assim um discurso cultural expressivo para os portugueses se reencontrarem com o seu passado histórico, não numa atitude exclusivista, mas conscientes da sua acção nos séculos XV e XVI quando foram elementos decisivos na descoberta de novos caminhos para um relacionamento humano numa dimensão pela primeira vez universalista.” (3)
O que temos aqui é um projeto de autoglorificação de um passado baseado numa mitologia ainda novecentista depois de ter atravessado um regime ditatorial mas face ao qual, e apesar da revolução, não houve uma ruptura narrativa. A XVII propunha um passado projetado para o futuro. Consultado o material editorial produzido por esta mostra não há qualquer referência a posições críticas face à expansão, nem qualquer narrativa originária das regiões “descobertas”. A XVII era então um cartão de visita para que Portugal fosse acolhido numa Europa cuja imagem de continente de colonização violenta e de guerras internas tinha, entretanto, aparentemente, sido limpa. Contudo, latente estava nesta adesão passados semelhantes aos de outros ex-Impérios que tinham fundado a CEE. E neste movimento de viragem para a Europa Portugal afastou-se do Atlântico Sul e da primeira possibilidade de interlocução com os “conquistados” da expansão com quem só iniciaria o debate mais de vinte anos depois e ainda muito timidamente. A Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (1986-2002), que sucede à XVII, foi já uma aposta de primeiros projetos de investigação de aspetos menos claros das descobertas e assumindo contradições resultantes de contributos de releitura desta empresa. Parte destes debates haveria de consolidar-se no Festival Europália 91, que já contemplava substantivamente a contemporaneidade, embora sem beliscar a narrativa oficial que perduraria até à viragem do milénio. E, entretanto, em 1992 inaugura-se o Centro Cultural de Belém e esse é sem dúvida, no momento em que é inaugurado, do ponto de vista simbólico, do investimento financeiro, político, do projeto de aglutinação dos portugueses, e como sede da presidência de Portugal na Europa, o primeiro Museu das Descobertas. Não por acaso a exposição inaugural do CCB como espaço museológico foi O Triunfo do Barroco (1993). Com esta exposição grandiosa e glamorosa, museograficamente correta, não se comemoravam as descobertas, mas mais do que isso. Justificava-se que o Barroco português e o das ex-colónias só tinha sido possível pela conquista, ocupação e exploração dos recursos naturais e da mão de obra que a expansão não só permitira como desejara. Ainda antes do projeto de museu com o mesmo nome a instalar em Sagres, que ciclicamente aparece como hipótese, ou o Museu dos Descobrimentos no Porto, inaugurado em 2014, uma versão miniaturista da Disneylândia, o CCB foi à época com esta exposição a atualização em pedra e espírito, o património do grande desígnio nacional vindo do passado para a Europa do século XX.
A Expo 98, herdeira um pouco bastarda da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, na sua ambição cosmopolita, permitiu que por arrasto os portugueses se confrontassem com dois aspetos resultantes da expansão: as representações através dos pavilhões e das festividades dos países colonizados, não só de Portugal mas de todos os ex-impérios europeus e, de igual maneira, com os milhares de trabalhadores imigrantes das ex-colónias portuguesas que contribuíram como mão de obra para a construção da Exposição. E assim os “outros”, originários dos países “descobertos”, deixaram de ser uma fantasmagoria, para serem visíveis no espaço público, com os seus corpos, as suas práticas culturais, os seus crioulos, a sua mestiçagem, a sua herança colonizada. Não por acaso foi neste momento que timidamente começaram os debates sobre colonialismo, pós-colonialismo, racismo, direitos à cidadania, por terra e não por sangue, com a contribuição de historiadores como Francisco Bethencourt, Diogo Ramada Curto, Anthony Disney, Isabel Castro Henriques entre outros.
E também não é por acaso que o debate regressa agora tendo por sintoma o museu das descobertas. Num tempo de explosão de nacionalismos, de descrença numa Europa que tem dificuldade em ultrapassar a sua ressaca pós-colonial, num país cuja língua está decepada pela construção de um acordo ortográfico, um modo de suportar a inquietude e a imprevisibilidade do presente é inventar algo que, ao glorificar um passado, numa melancolia colonial, regressa a uma narrativa mitificada ancorada numa efabulação poética como são Os Lusíadas, extraordinária narrativa, mas uma efabulação, como é próprio da epopeia, com heróis inspirados em outros heróis da Antiguidade em que as disputas se dão entre pares e entre heróis e titãs?
Como seria possível conquistar e ocupar tantos territórios e tantos povos sem violência e sem os subjugar? Já não deveria ser necessário afirmar isto: que os nomes dados às coisas têm uma intenção e o seu uso condiciona o que fazemos. O termo “descobrimentos” descreve, a partir de uma posição de supremacia, a conquista, a subjugação e a exterminação de povos e da natureza, de nações inteiras e de línguas porque as rotas da expansão foram quase sempre monolinguísticas. Como afirma Glissant: “a rota é monolingue”. (4)
Os museus hoje ou são pós-coloniais ou não são nada. O que quer isto dizer? Primeiro que esta posição tem antecedentes: nos efeitos da revolução pós-colonial protagonizada pela negritude, pelas independências, pelo pós-colonialismo nas suas várias expressões e pelo pensamento ameríndio contemporâneo, com um impacto e uma energia intelectual só comparável à revolução coperniciana. Do mesmo modo como não é equacionável fazer um museu da história da ciência que terminasse num planisfério em que o sol e todos os corpos celestes girassem à volta da terra, não é admissível pensar a expansão portuguesa e a europeia dissociadas das narrativas dos ocupados e dos vencidos, dos seus acervos, quando os há, e da sua narrativa sobre a expansão. Como também não é possível equacionar a expansão sem o atlântico negro, o colonialismo e o imperialismo.
Já o dissemos atrás. Um museu é tudo menos um receptáculo. Num museu contam-se histórias, compõem-se reportórios que organizados de uma determinada maneira, produzem um sentido comprometido com a razão de ser do projecto. Advogar um museu das descobertas é proclamar um memorial que imporia uma memória forjada, legitimando e institucionalizando um imaginário que negaria a existência e a epistemologia subsequente à revolução do pensamento pós-colonial e ameríndio e à investigação da nova história dos impérios. Seria uma regressão a um neocolonialismo europeu do espírito dentro da própria Europa. Ainda no domínio do conceptual caso a opção a seguir fosse a de um museu do colonialismo, nem por isso a opção seria de evidente e de clara execução. Primeiro porque expansão, ocupação, colonialismo e imperialismo estão associados, e, em segundo lugar, quem poderia na Europa falar em nome dos conquistados e colonizados? John Mackenzie, em Museums and empire (2009), e Marieke Bloembergen, em Colonial spectacles (2006), explicam bem como é difícil conceber tais museus, e na maioria dos exemplos na Grã-Bretanha, Holanda, Noruega e Dinamarca, o colonialismo é genericamente tratado em termos comparativos ignorando um fator essencial que são os aspetos, muitas vezes obscuros, ou menos estudados do colonialismo transnacional. Uma hipótese de trabalho seria recorrer à metodologia da “negociação cultural” entre os ex-impérios e os ex-colonizados mas só num tempo em que a pós-memória europeia e colonial o permita.
A não construção de um museu das descobertas corresponde a uma desvalorização absoluta da expansão? Não! A exposição 360º, de 2013 comissariada por Henrique Leitão foi uma mostra importante das consequências da expansão europeia. A literatura produzida, a alteração da dieta europeia, a produção do conhecimento que foi necessário experimentar e testar no domínio da ciência e da tecnologia são resultados positivos da expansão. Mas então, tal como agora, muita desta produção tecnológica e da experimentação científica tiveram como móbil a guerra, a construção de novos sistemas para uso guerreiro com consequentes experimentações nos territórios conquistados, a ocupação territorial, aliados a um programa de exploração de recursos em outras regiões do globo de que a dimensão, porventura mais bárbara, foi a do tráfico e do comércio de pessoas, no âmbito da escravatura. Ainda que outros o tenham feito e continuem a fazer o ato é sempre criminoso.
A coragem de uns homens e mulheres que participaram nesta empresa, a temperança ou a inteligência de alguns, a ousadia de outros é de considerar como factos, como também é de considerar que houve vilões, gananciosos e criminosos. Contudo a expansão marítima ultrapassa-os. Era um assunto de estados e de disputa entre reis e nações, entre hegemonias de reinos europeus de que nem o Vaticano estava ausente.
Depois de demonstrar a impossibilidade da construção de um tal museu das descobertas a partir do conceito de justa narrativa, permito-me demonstrar a sua impossibilidade técnica. A ambição afinal é bem pequena para os que advogam a construção de tal museu, aparentando mais um fétiche do que um verdadeiro objetivo. Que acervo existe específico das viagens da expansão e conquista? Haverá objectos dispersos por colecções nacionais e internacionais, mas que proprietários estariam disponíveis para os cederem para um museu de exposição permanente? E se o acervo disponível é parco, os objetos são escassos, a construção de réplicas com todas as embarcações das épocas em causa são técnica e financeiramente impossíveis, os despojos desaparecidos ou escondidos, os documentários ou ficções relativas ao mesmo inadequados a este tipo de contentor são financeiramente limitadoras. Seria um museu de miniaturas? E miniaturas de quê? E – o mais importante regressando ao problema das múltiplas narrativas, quem as iria narrar e com que material já que a maioria dos testemunhos plásticos ou literários existentes são de autoria europeia os portugueses ou em todo o caso dos europeus e não dos índios, dos africanos, dos indianos? E sendo um museu um instrumento fulcral de hierarquização de factos e de memórias (5) que lugar ocupariam os portugueses e que lugar ocupariam os povos e as nações conquistadas?
Há vestígios, (alguns dos quais objetos que também eles merecem reflexão quando são provenientes de pilhagem), como sejam artefactos ou narrativas contemporâneas da expansão em território nacional como em países que foram colonizados. Eles estão em depósito ou expostos em museus como de Etnologia, de Arte Antiga, Sociedade de Geografia, igrejas, palácios, Torre do Tombo, Biblioteca Nacional e em muitos outros lugares. Estes lugares constituem lugares de uma constelação que testemunha a expansão e o seu futuro. Reside nesta constelação de espaços, a ser organizada como um percurso, mapa, circuito, a possibilidade de nos podermos confrontar (em parte) com a época da expansão e suas produções às quais se podem acrescentar documentos contemporâneos que afirmem uma leitura deste período como a Cinemateca, a Biblioteca Nacional os Centros de Investigação científica, mas com uma condição a priori: que as leituras das obras e dos testemunhos, os comentários às pinturas e aos objetos relativos a este empreendimento considerem na linguagem e nas mostras o contexto em que as mesmas apareceram, os conhecimentos e as leituras produzidas pelos saberes desta atual revolução coperniciana. Tal projecto implica um programa de suspensão de todas as narrativas coloniais e neo-coloniais, permite a visibilidades das histórias legadas aos povos subalternizados e obrigaria à revisão da museografia adequando-a à actualidade e aos modos de circulação das pessoas e permitiria uma apropriação popular das tensões e da convivialidade possível de passados e de múltiplas histórias, muitas delas ainda em constituição. Este é o museu possível.
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(1) Thiesse, Anne-Marie (1999), La création des identités nationales: Europe XVIIIe-XIXe siècle, Paris: Points, p.257.
(2) Cf. Thiesse, Anne-Marie (1999), La création des identités nationales: Europe XVIIIe-XIXe siècle, Paris: Points, pp.133-137.
(3) Prefácio Pedro Canavarro, (1983), editor Presidência do Conselho de Ministros, Comissariado para a XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura, Lisboa, pp.20-21
(4) Glissant, Édouard (1999), Poétique de la relation (III), Paris: Caillois. p.7.
(5) Simpson, Moira G. (2001), Making representations, museums in the Post-Colonial Era, Londres: Routledge, p.119.
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